Os traumas coletivos de um povo
Ditadura foi varrida para debaixo do tapete da história, resultando em período de latência. Passado e traumas ficaram insepultos. Resultado: o retorno do recalcado sob o golpismo de Bolsonaro. Deixaremos também abertas feridas da pandemia?
As ameaças golpistas do atual presidente não são uma novidade. A legitimidade das urnas eletrônicas e do Supremo Tribunal Federal, para mencionar somente dois exemplos, tem sido alvo constante de suas investidas. Essas ameaças não começaram com sua eleição para presidente, mas já em uma entrevista de 1999, quando ainda era deputado federal, acreditava que somente uma “guerra civil” resolveria os problemas do Brasil.
O atual presidente sempre foi um outsider da política. Não penso que essa condição diga respeito à sua trajetória política, pois vinha ocupando cargos legislativos desde 1989 até 2019, quando assumiu o maior cargo executivo do país. Não, não é a trajetória política do atual presidente que o caracteriza como um outsider, e sim seu discurso político. Naquilo que ficou conhecido como contradição performativa, o atual presidente há trinta anos retira seus rendimentos mensais de seu exercício na vida política, ao mesmo tempo em que ataca a legitimidade das instituições.
Se o atual presidente fosse um caso isolado… mas não é o caso. Principalmente desde 2014, a emergência pontual de falas e textos golpistas rapidamente se ampliou para um verdadeiro movimento que incitava o fechamento do STF e a intervenção militar na política brasileira – ou seja, um golpe que instituísse uma ditadura militar. Mas o discurso golpista se enraizou justamente ao adiar o golpe para o dia seguinte. Há anos políticos e militantes vem alertando que o último limite da democracia foi ultrapassado. Porém, a vida parece “voltar ao normal” logo em seguida para, depois de algum tempo, novamente o “último limite” ser ultrapassado. Nesse compasso de “festa do estica e puxa”, aguardamos o anunciado golpe, sem nos apercebermos que já vivemos em um discurso golpista há muitos anos – talvez, muito mais do que imaginam os mais pessimistas.
Não faltaram teorias para explicar o golpismo do bolsonarismo. Uma delas afirma que o bolsonarismo permitiu que a violência enrustida de boa parcela do povo brasileiro pudesse, finalmente, sair do armário. A ascensão do atual presidente teria permitido que uma tendência coletiva até então socialmente condenável pudesse se expressar nas redes sociais ou nas vias de fato. De fato, essa teoria faz muito sentido, mas creio que precisamos dar um passo a mais. De onde surgiu essa tendência? Qual a relação entre essa tendência e as experiências coletivas e traumáticas da história do Brasil?
Para Freud, não havia um abismo intransponível entre a psicologia do indivíduo e a psicologia das massas. Seria possível reconhecer nas massas os mesmos processos psíquicos que se encontram no indivíduo. Assim como uma criança se identifica com sua irmã e idealiza seus pais, também um adulto pode se identificar com seus aliados e idealizar seu líder. A analogia também pode ser aplicada a respeito da experiência traumática. Os efeitos de uma experiência traumática sobre um indivíduo podem sofrer uma espécie de retardamento. Logo depois do trauma vivenciado por um indivíduo, pode se seguir o chamado período de latência, durante o qual se torna quase imperceptível notar quaisquer vestígios daquela experiência. Mas os efeitos finalmente retornam, e as marcas do trauma se tornam visíveis. Inconscientemente, o indivíduo havia recalcado os efeitos do trauma, mas como o recalque fracassou em sua tarefa, aqueles efeitos retornam, deformados e adiados, mas retornam.
Essa sequência que vai da experiência traumática e de seu recalque, passa pelo período de latência e desemboca no retorno do recalcado também foi utilizada por Freud para investigar uma experiência traumática coletiva. Seu objeto de estudo foi o povo judeu. De acordo com uma hipótese pra lá de polêmica, Moisés teria transmitido uma doutrina monoteísta com acentuado tom moral para o povo judeu, mas essa doutrina foi recusada, e Moisés foi assassinado. Permaneceu um frágil monoteísmo sem nenhuma orientação moral. Séculos depois, pela voz dos profetas, ressurgiu a doutrina original de Moisés na forma de um monoteísmo ético. A experiência traumática do assassinato de Moisés e de recusa de sua doutrina foi recalcada, seguindo-se um período de latência para, somente depois, retornar no povo judeu.
Desde o fim da ditadura militar, parece ter havido um “período de latência” na história brasileira, aparentemente mais acentuado durante os dois mandatos de Lula. Esse período de latência ocorreu na sequência de uma experiência traumática coletiva: a ditadura militar. A gravidade dessa experiência se revela principalmente pelo fato de não ter sido entendida como um trauma coletivo. Notem que fizemos uma transição gradual entre a ditadura e a redemocratização, estabelecemos uma anistia ampla, geral e irrestrita, atenuamos os solavancos que porventura pudessem surgir dessa mudança. Entretanto, não existe nem diferença de grau nem solução de continuidade entre esses dois regimes: há somente ruptura de um para o outro.
Pagaríamos caro – e continuamos pagando – por não reconhecer essa ruptura, por não elaborar devidamente esse trauma coletivo. Vejam que sequer instituímos um marco de memória para não nos esquecermos do que não deve se repetir e sequer inventamos um feriado nacional para celebrar aquilo que deve ser relembrado: a democracia. Resultado: depois de um período de conciliação do inconciliável, depois de um período de pactos impossíveis, depois de um período de latência, eis que os traços autoritários, violentos e corruptos da ditadura militar retornam com toda a sua força, com toda a sua potência no cenário social e político.
Uma experiência se define enquanto traumática quando não é capaz de ser reintegrada no psiquismo – ou na história. Não fomos capazes de punir adequadamente torturadores, não fomos capazes de rever a formação das PMs, não fomos capazes de investigar os casos de corrupção, não fomos capazes de reavaliar nossa educação. A ditadura militar é contada em detalhes nos livros de história, mas pode acabar sendo lida como se estivesse atrás de uma vidraça, como se estivesse separado e não comprometido com aqueles terríveis eventos. A gravidade daquela experiência traumática se mostra justamente pela facilidade com que se lembra da ditadura como um período idílico, como se compara ditadura e democracia como duas categorias afins e, principalmente, pela facilidade com que se repete e se reivindica o que deveria ter sido enterrado.
Falhamos. E estamos novamente falhando ao rapidamente nos esquecermos das vítimas da pandemia de covid-19 por conta do genocídio deliberado de nosso atual presidente. E é nisso que reside a face mais surpreendente do trauma: a experiência é esquecida, mas não deixa de se repetir.
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