Eros na política e a construção de frentes amplas
Na psicanálise, chaves para pensar a unidade política. Diante da barbárie, o afeto torna-se essencial. Garante pluralidade de vozes e o contato com o estranho. Converte o conflito em potência para habitar a diferença e construir o Comum
Por Nora Merlin | Tradução: Rôney Rodrigues | Imagem: Gustav Klimt, Vida e Morte (1915)
O neoliberalismo está ligado à pandemia de coronavírus, à virtualização da vida e à guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Essa ligação exacerbou a face mais cruel do capitalismo financeiro global e está produzindo, em um mundo que se reconfigura para o multipolar, enormes danos vitais e culturais: fomes, pragas, falta de recursos energéticos e aumento da desigualdade. O poder tornou-se ainda mais concentrado e a realidade tornou-se sinistra no sentido freudiano: o modo de vida habitual, o familiar, tornou-se estranho.
O neoliberalismo levou, entre outros males, a uma subjetividade idiotizada, fascinada por um consumo desenfreado, voltado ao individualismo mais extremo e à depressão generalizada.
A pandemia de coronavírus foi um trauma coletivo que desorganizou a vida e as identidades de forma brutal. O evento violento e inesperado do vírus maldito rompeu os suportes imaginários e simbólicos que estabilizavam a subjetividade.
Desde 2020, a vida transcorreu entre uma emergência sanitária, mortes, colapso da ordem, crises subjetivas, trabalhistas e econômicas. O perigo ameaçador desenvolveu uma sociedade mortificada (entre o sofrimento e a morte) feita de corpos sobrecarregados e uma epidemia de angustia.
A virtualização da vida, processo que estava em curso e que o coronavírus precipitou, está produzindo uma mudança radical nos laços sociais e na sensibilidade pela falta de afetos corporais recíprocos.
A guerra entre a Rússia e a Ucrânia, surgida em um cenário planetário em que tudo desaba e não há horizonte de futuro, veio para acrescentar mortificação.
De forma urgente, a política e os Estados devem tomar para si a tarefa de uma reparação coletiva baseada na pulsão de vida: Eros, o amor político, é o poder capaz de limitar o nó tanático comandado pela pulsão de morte, que leva à desintegração do sujeito e da subjetividade.
O amor político
O ódio é a paixão fundamental usada pelo nazismo e pelo neoliberalismo para disciplinar e colonizar o social. Freud, em Por que a guerra? (1932), afirmou que frente ao Mal não se trata de opor o Bem, mas o Amor. O amor é o afeto necessário, no sentido de que não pode faltar nas construções da vontade popular ou coletiva em termos gramscianos, mas não é o amor à identificação ou à massa que anula as tensões e leva à destruição do diferente.
Com Lacan, a partir do Seminário mais, ainda, podemos pensar em um novo enfoque do amor: não se já trata do ilusório ou narcísico que não quer saber nada da diferença ou da falta, que tende ao Uno ou ao fechamento. Ao contrário, é um amor político que reconhece o outro e se mostra capaz de construir o comum com esse outrx estranho com o qual não há nada em comum.
O amor ao comum não anula as diferenças, ele as reconhece e as valoriza porque elas contribuem com enorme potencial para as construções frentistas e do povo, ambas constituem as figuras privilegiadas de um contrapoder democrático. Este é um ponto crucial onde a psicanálise encontra a política.
Para limitar o sinistro avanço compulsivo e tanático do dispositivo neoliberal que reproduz a si mesmo, é preciso pôr em ação uma potente política de Eros. Jogar a favor, como Friedrich Engels argumentou em A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1884), que os poderosos são incapazes para o amor, os únicos que têm essa aptidão e poder são os despossuídos
Trata-se da construção de unidades eleitorais amplas, abertas, de coalizões ainda mais amplas em termos em extensão e qualidade, para exercer o governo. A emergência em quase toda a região de um novo e essencial agente político: a frente, para derrotar o dispositivo neoliberal e sua amarração.
Um novo agente político: a Frente
Dado que o poder neoliberal se reproduz e a nova direita — agora sem véu democrático – foi crescendo, a “lógica do partido” é atualmente uma categoria insuficiente para travar batalhas emancipatórias. Nesse contexto, as construções frentistas nasceram em vários países da América Latina, constituindo uma estratégia fundamental para enfrentar as forças neoliberais e impedir a ascensão de governos. Argentina, Chile, Peru, Colômbia e Brasil vivem a complexa experiência de formar amplas coalizões frentistas.
No Brasil, Jair Bolsonaro, apesar de seu governo deficiente, tem força e aspira à reeleição. A gravidade que essa situação representa para o campo popular que se opõe ao neoliberalismo exige a união de forças muito heterogêneas que confluam em uma frente política.
Luiz Inácio Lula da Silva compartilha a fórmula de sua candidatura ao Executivo com o ex-governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, que até recentemente pertencia ao Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), da direita moderada brasileira.
Não podemos ignorar os problemas que a construção de uma frente pressupõe, uma unidade de diferenças que não se anulam, na qual convergem projetos, formas e tempos políticos muito heterogêneos. No entanto, a afirmação dessa unidade é possível a partir de uma rejeição ou negação radical que implica o traçado de uma fronteira antagônica e a delimitação do principal conflito político que divide os dois campos. No caso do Brasil, Bolsonaro é o significante que encarna e condensa a negação radical que divide as águas entre a frente e o poder conservador de direita.
Devemos estar muito atentos e lembrar que as frentes não são construções homogêneas, mas que apresentam conflitos internos. O poder entende o conflito como um fracasso cuja existência é um sinal de deterioração da democracia. Ao contrário, a partir da concepção que subscrevemos que afirma as democracias populares, sustentamos que a pluralidade de vozes e o conflito, longe de significar um problema, expressa uma tensão, e também uma virtude e uma possibilidade, se formos capazes de habitar a diferença.
A heterogeneidade frentista é um benefício não só pelas razões óbvias de somar votos de distintas vertentes, mas também porque a articulação de tradições, a mistura ideológica, o conflito e a crítica constituem a materialidade do “político”. A pluralidade de vozes é conflituosa, mas, ao mesmo tempo, se apresenta como um poder que não se anula em um consenso ou se resolve em um diálogo racional entre as partes, mas causa o político.
O conceito de “político” inclui antagonismo, pluralismo e conflito que se apresentam como obstáculos, mas que, em sentido estrito, podem se tornar frutíferos, pois impedem o fechamento totalitário da unidade, baseado no discurso único e na homogeneidade que tende à massa. Por outro lado, essas categorias resgatam a dimensão relacional das subjetividades políticas, ao mesmo tempo em que reconhecem e especificam a existência do “outro”.
Em outras palavras, o conflito dentro de uma frente de diferenças, a batalha hegemônica por significados, não constituem fracassos, mas, ao contrário, revitalizam a construção na medida em que implicam uma experiência pedagógica e democrática, no sentido de aprender a conviver e amar as diferenças.
A articulação
Antonio Gramsci concebeu a política frentista não como algo momentâneo ou conjuntural, mas como uma “tática permanente”, uma forma de construção da política para o campo popular. Em um dos capítulos de seus Cadernos do Cárcere, ele se referiu à passagem da guerra de manobras e de ataque frontal para a guerra de posição. O fundador do Partido Comunista Italiano usou a metáfora militar da Primeira Guerra Mundial, dando-lhe uma tradução política. Ele propôs para a Europa Ocidental a guerra de posição ou trincheiras, implicando a batalha pela hegemonia dentro das organizações da sociedade civil, o que supõe ganhar o poder pela disputa, a capacidade de convencer e conquistar o consentimento das maiorias sociais.
Ernesto Laclau, iluminado pelo farol gramsciano, estabeleceu em A razão populista (2005) a categoria “articulação das diferenças” como elemento central na construção da hegemonia. Esta categoria é de crucial importância para aplicar à atual lógica frentista, na medida em que se constrói uma unidade, uma solidariedade que não anula nem sintetiza diferenças e interesses.
A articulação traz uma novidade para a teoria política: permite sair do individualismo ou do gozo narcísico em que caem as ideologias que afirmam uma identidade dada e fechada.
Em outras palavras, a articulação nos obriga a sustentar questões como “o que eu quero nessa luta?”, “quem sou eu?”, pois a identidade surge como uma resposta que não é possuída previamente, mas emerge na práxis como vontade coletiva, provisória e aberta. A articulação das diferenças dará origem a uma nova identidade se formos capazes de nos abrir ao insólito, ao inaudito e ao não-saber.
Esse novo sujeito popular, a frente, está processando suas tensões em decorrência de sua heterogeneidade que o transforma constantemente e, por isso mesmo, apresenta uma temporalidade e fragilidade constitutiva. A unidade, longe de ser homogênea ou harmoniosa, enfrentará ameaças externas ou perigos colocados pelo poder e outros internos que surgem como resultado dos obstáculos subjetivos que são efeito das tendências destrutivas inconscientes que habitam o sujeito e o tempo em que operam contra si mesmo e contra a construção alcançada. A frente terá que encontrar caminhos comuns que a guiem para defender a unidade.
Obstáculos subjetivos na construção frontal
Dentre os maiores obstáculos subjetivos que surgem dentro dessas construções, queremos destacar dois deles, porque se manifestam em todos os casos e se repetem como uma compulsão desintegradora na relação política que deve ser considerada numa frente.
O primeiro é a confusão que implica tomar o “adversário companheirx” como inimigo, ignorando a oposição radical que existe entre os dois e negando as tensões que são permanentemente despertadas pela articulação de diferenças que não são anuladas nem sintetizadas.
O segundo obstáculo que nos interessa destacar é o sectarismo, que consiste em outra forma de não querer saber nada sobre as diferenças. Embora seja apresentada com declarações populares, é uma posição autoritária, narcísica, que se apega a convicções que gozam da ignorância ao rejeitar a política plural e a aceitação da alteridade.
Em suma, os dois obstáculos levantados, confundindo a relação política ao tomar o adversário por inimigo e o sectarismo, expressam, saibam ou não, consciente ou inconscientemente, uma postura conservadora que busca manter a ordem estabelecida ou o sistema de crenças e valores, funcionando como um dogma congelado que se opõe à criação inovadora.
A diferença impede o fechamento de um sistema e exige romper com pensamentos ou divisões binárias estabelecidas, bem como uma plasticidade capaz de desconstruir a identificação fascinada. Se não souber lidar com a diferença, que por definição compõe a materialidade da frente, será impossível essa construção do “nós”, que constitui a garantia de enfrentar o verdadeiro poder capitalista que hoje se chama neoliberalismo e seja possível a perseverança democrática.
A construção da frente exige uma unidade que saia do individualismo para que se teça uma generosa inteligência coletiva que debata e organize democraticamente as peças que se juntam e que permanecerão misturadas e separados ao mesmo tempo. Sem nostalgia conservadora, com projeto e insistência, gerando renovados significados que dialetizam sedimentos naturalizados.
Terá de ser uma unidade cada vez menos de cima para baixo, mais horizontal e democrática, que articule politicamente as ideologias e limite ao máximo a inevitável interferência fantasmagórica dos líderes.
Para concluir: na situação atual do nó entre neoliberalismo, virtualização da vida pandêmica e guerra, não é exagero afirmar que não só a democracia está em jogo, mas também a vida do planeta. A esperança mais importante pode estar enraizada na unidade frentista de que não se desencadeie um novo ciclo neoliberal em que o Mal reinará.
Embora o futuro seja incerto, o campo popular tem uma oportunidade histórica de transitar para outra matriz civilizatória.
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