terça-feira, 11 de outubro de 2022

 

I. A restauração da ordem ontológica

por: Luiz E. Soares

A tempestade feminista varreu certezas, referências e toda a arquitetura patriarcal e falocêntrica que organizava homens, mulheres, adolescentes e crianças em torno de papéis consolidados e funções padronizadas – sociais, econômicas, culturais e reprodutivas –, cada qual com suas contrapartidas psíquicas, isto é, afetivas e libidinais. A luta das mulheres por igualdade não se esgotou nem se esgota na paridade salarial, na redistribuição do trabalho doméstico, no direito ao voto, à representação e à propriedade. Avança no campo das autoimagens e das imagens sociais, reconfigura a sexualidade, reestrutura os vínculos entre sexo e moralidade, erotismo e reprodução, amplia o espectro semântico e político da liberdade e dos direitos, e reivindica o controle do próprio corpo.

O capitalismo e a ideologia liberal demonstraram plasticidade suficiente para absorver parte substancial das energias precipitadas pelos movimentos das mulheres, mas sinalizaram dificuldades para conviver com as interseções entre as mobilizações feministas e as lutas antirracistas, que trouxeram consigo as contradições entre as classes (as quais já atravessavam as pautas e as linguagens feministas). As tensões se intensificaram quando, a essa pororoca de protestos, reivindicações e intervenções cívicas, culturais e políticas, se somaram, progressivamente, as lutas LGBTQIA+. Deu-se um nó no trânsito da política tradicional pelas novas esquinas da história. A retórica, o horizonte do possível, o princípio de realidade e os procedimentos da política liberal institucionalizada foram abalroados por novos projetos e desejos e subvertidos pela babel (ininteligível e chocante às sensibilidades convencionais) de aspirações, estéticas e modalidades organizativas. Não se tratava do mesmo indivíduo, o cidadão racional da República democrática, que simplesmente passava a acumular alguns itens originais à sua agenda, assim como o empresário liberal acrescenta papéis à sua carteira de negócios. A praça ficou grande demais, agitada demais, febril e incandescente demais, imprevisível e incompreensível demais para caber no mercado.

O liberalismo, radicalizado por seu rebento monstruoso, o neoliberalismo (que não pervertia a origem, apenas a revelava com mais crueza), não demorou a desmascarar sua natureza excludente, autoritária e brutal, desde os primeiros confrontos com sindicatos de trabalhadores (lembremo-nos da resposta de Thatcher aos mineiros). Pois o desafio seria bem mais complexo do que as greves na Inglaterra prenunciavam. O fim da Guerra Fria não implicaria o desaquecimento das tensões sociais, até porque as desigualdades, os processos neocoloniais, as manifestações crescentes e contínuas do aquecimento global e os antigos mecanismos repressivos se expandiam, suscitando novas formas de consciência e distintas modalidades de resistência. Entretanto, e essa é a beleza da história (beleza trágica e sangrenta), por mais que a primeira-ministra britânica decretasse o fim da sociedade e a primazia absoluta do indivíduo, inaugurando a era da precariedade generalizada – salvo para os salvos do dilúvio, evidentemente – e debilitando as organizações populares e as concepções coletivistas, novas individualidades eram gestadas, envolvendo revoltas políticas de novo tipo, a invenção de comunidades experimentais e a emergência de inesperadas solidariedades transversais. Essa energização recíproca – apesar de contradições internas aos múltiplos movimentos e, em parte, graças a elas – alcançou patamares surpreendentes com a disseminação das redes sociais e das tecnologias digitais de comunicação. Os tipos de individualidade surgiram, paradoxalmente, da exacerbação do individualismo neoliberal, mas transcenderam os limites do figurino moldado pela economia, na medida em que precisavam, para se viabilizar, de ações coletivas e acolhimento mútuo, que apontavam para projetos políticos socializantes e radicalmente democráticos. Essas individualidades originais que transbordavam o capitalismo neoliberal (e foram se constituindo em meio a saltos e recuos, encontros e desencontros, graças às mobilizações feministas e LGBTQIA+) exerciam uma estética de si que pressupunha inusitado campo de liberdade e apontava para alianças não apenas táticas com movimentos antirracistas e aqueles assentados na luta de classes: à sua coragem libertária devemos a conquista extraordinária que correspondeu à dissociação entre corpo, gênero e sexualidade. Assim, a anatomia deixou de ser um destino; o gênero se rendeu à vontade política e às sinuosidades do desejo, explodindo a camisa de força das classificações e suas canalizações institucionais, familiares e sociais; e o sexo abriu-se à arte indeterminada das experimentações.

Por óbvio, não estamos diante do velho personagem: o indivíduo-consumidor de mercadorias, que aluga a força de trabalho. Estamos frente a frente com a persona gestada por um complexo processo político consciente e inconsciente, em (re)construção permanente, que evoca a linguagem da solidariedade, da liberdade, da participação e de um protagonismo cívico-político inusitado. Não se trata de fantoche produzido pelo neoliberalismo, nem seu apelo político radical à individualidade corresponde ao que se convencionou denominar individualismo. A gestação das novas individualidades significa, do ponto de vista do capital, uma anomalia, justamente porque realiza uma de suas tantas contradições estruturais. Isso não significa, por exemplo, que todas as mulheres sejam revolucionárias, até porque o machismo não faz a cabeça somente dos homens. Mas não é coincidência que os fascistas se oponham tão ferozmente ao que denominam “ideologia de gênero”. Eles não odeiam as mulheres, individualmente, mas o feminino como signo de um mundo que ignoram e temem, um mundo que poderia vir a ser hostil ao autoritarismo falocêntrico e à exploração mercantil. Eles odeiam o potencial de construção política do feminino. Eles odeiam a população LGBTQIA+ porque temem a subversão dos papéis tradicionais, promovida por quem ousa privilegiar a liberdade fluente do próprio desejo e experimentar a indisciplina no jogo das identidades. Às vezes, na esquerda, nós escorregamos, seja por negligenciar como “identitárias” as lutas que não compreendemos, seja por compartilhar preconceitos patriarcais.

E aqui chegamos ao ponto que importa diretamente à análise do bolsonarismo e das lutas políticas em curso no Brasil, que agora se conectam com a disputa eleitoral. Não apenas os fascistas estão desnorteados ante o tensionamento dos arquétipos. O macho está desnorteado – o que inclui as mulheres que assimilaram a estrutura mental do patriarcado. E não só no Brasil, mas, agora, é do Brasil que se trata. O fascismo bolsonarista é (entre muitas outras coisas) uma das respostas ao desespero dos que sentem o chão tremer sob os pés e, sem norte, se agarram ao último fio de esperança que os ligue à ilusão de que poderiam ver restaurada a ordem ontológica subvertida. Bolsonaro endereça seu discurso, seus atos, sua performance aos machos em agonia, homens e mulheres que se veem na beira do abismo da própria insegurança. Se o ser é movimento, se corpo, gênero e sexo não formam uma unidade inquebrantável, sancionada por Deus e pela natureza para todo o sempre, se não há uma essência substantiva que ancore aquilo que cada um(a) é, no âmago de seu ser, orquestrando seus afetos fundamentais, se a família patriarcal não é a única forma sadia e sagrada de união, como cada um e cada uma pode se reassegurar contra a correnteza de incertezas? Insegurança e medo clamam por ajuda, apoio, resposta. Bolsonaro se dirige a esse medo matricial com performances que evocam tanto o tio do churrasco, racista, homofóbico e misógino, quanto o Deus de Primeiro Testamento, um deus de fancaria, mas que faz sentido para o homem sem norte. A coreografia com a arminha é a cena grotesca e canhestra dessa mensagem: eis-me aqui, o macho grosseiro, tosco, rude, sou pura violência vingadora, vim expulsar o Outro que encarna o mal e as perversões, que é a anti-natureza – o anti-Cristo. Quem protege a natureza sou eu, ele dirá, a verdadeira Amazônia é o falo inflamado pelo poder que impõe a ordem definitiva. Bolsonaro é o esboço de tirano imbrochável, sem amarras, que não conciliará com a alteridade. O Outro será expurgado de nossa pátria. Ela é o solo comum sobre o qual se sobreporão novamente (tratar-se-ia de repetição, de recuperação do passado idealizado) o mandamento divino atemporal, a essência do homem e da mulher, e a natureza humana imutável. O Outro e a história serão banidos. E todos estarão armados para essa guerra terminal. Bolsonaro inscreveu na política a promessa de restauração da ordem ontológica fraturada pelos movimentos emancipadores e libertários. Essa é a segurança que de fato importa, a outra – onde policiais caçam bandidos – é menor e vicária.

É possível viver de formas diferentes o desmonte progressivo do poder falocêntrico. Por exemplo: aderindo ao desmonte; recalcando o incômodo perturbador com mais ou menos sucesso (isto é, formando neuroses ou psicoses); buscando ajuda em terapias; aproveitando sua adesão religiosa para elaborar a resistência nos termos simbólicos de cosmologias teológicas; ou passando ao ato com a violência de linchamentos ou de ataques individuais, abusos e violações, disseminando preconceitos e discursos de ódio, e/ou vinculando-se ao bolsonarismo, ao integralismo e a outros movimentos neofascistas.

A hierarquia de classes e o racismo estrutural também se articularam, historicamente, com os pilares arquetípicos da família patriarcal. Somos uma sociedade forjada na escravidão. Não à toa a Casa-grande é a síntese do poder no Brasil. Portanto, a pirâmide toda parece balançar quando o masculino e o feminino se desgarram de sua ancoragem supostamente natural e não apenas quando os trabalhadores se organizam e os movimentos antirracistas se afirmam. O imaginário da Casa-grande, dominante na elite branca, sempre foi retrátil: contrai-se feito sanfona quando se esgarçam direitos e liberdades, na esteira das lutas sociais, mas permanece armado sobre a base que lhe dá tração, mantendo-se pronto a estender-se a qualquer momento, encerrando sob a noite política os episódicos experimentos democráticos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário