Discurso religioso: modos de usar
O pesquisador Paolo Demuru dedicou um capítulo do seu livro “Um bufão no poder” para política e religião. Na obra, ele analisa estratégias de comunicação do governo Bolsonaro junto com a também pesquisadora de comunicação Yvana Fechine. Demuru acredita que o uso mais intenso de signos religiosos nos discursos destas eleições se deu porque, desde o começo do ano, havia a compreensão de que o voto evangélico seria fundamental na disputa.
No livro, ele explica que Bolsonaro usa uma narrativa escatológica em suas falas. Ou seja, ele ativa palavras e uma imagética que suscita a ideia do apocalipse bíblico, e isso “contribui para formar o discurso conspiratório”, na qual ele “emerge como um messias salvador da nação”.
Emanuel Freitas, professor de teoria política da Universidade Estadual do Ceará, cujos estudos também têm foco nos discursos políticos e na religião, observa que houve um esforço por parte dos candidatos de modular os discursos para se aproximar do eleitorado evangélico e católico carismático. “No início da campanha, o PT achava que Lula não precisava ir para o discurso religioso. Se achava que o candidato atingiria o público evangélico mais pobre falando de fome, desemprego, porque afinal são dificuldades que essas pessoas enfrentam. Mas isso me parece ser um profundo desconhecimento do partido desses religiosos para quem a situação econômica também diz respeito à providência divina, à prosperidade”, observa.
Para ele, há maior aderência do público evangélico e católico conservador ao discurso de Bolsonaro, que passou os “quatro anos de mandato visitando templos, fazendo medidas que contemplam o segmento cristão e falando sobre temas caros a esse público, como combate ao aborto e à ‘ideologia de gênero’”. “Ele produziu imagens e deu elementos factuais para sustentar suas falas diante desse público, ou seja, a fala não ressoa apenas como palavras vazias”, considera Freitas.
Há, no discurso de Bolsonaro, uma estratégia que Freitas chama de “pânico moral”. “Ele repete a ideia de que há um perigo rondando – o perigo do aborto, da ideologia de gênero. Em 2020 foi a mentira do ‘kit gay’. É uma estratégia discursiva antiga”.
A pandemia terminou funcionando para estreitar ainda a comunicação de Bolsonaro com segmentos cristãos conservadores, segundo Freitas, porque o presidente saiu em defesa da abertura das igrejas durante a crise sanitária, uma pauta defendida por muitas lideranças evangélicas. “Quando Lula chega tentando uma aproximação, ele é desacreditado porque essas principais lideranças do meio estão com Bolsonaro. E muitas falas de Lula mostram um desconhecimento do segmento evangélico e católico carismático, como quando ele falou de ‘facção religiosa”, diz.
Demuru observa que Lula passou a mobilizar mais termos relacionados à fé cristã no seu discurso. Isso se deve, na opinião do pesquisador, ao fato de que o PT perdeu muitos votos em 2018 desse público, sobretudo de evangélicos periféricos, que foram cooptados por lideranças aliadas a Bolsonaro, como o pastor Silas Malafaia, da Assembleia Vitória em Cristo, e o bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus. “Lula usa um contexto discursivo que inscreve Deus muito mais se referindo a evangélicos de periferia. Ele ativa os elos entre a religião e as demandas das periferias – como trabalho, comida na mesa, pensando em cidades onde esse eleitorado vive”.
No caso dos candidatos Ciro e Tebet, embora os termos religiosos não recebam destaque nas falas, foram feitos outros acenos. Na pré-campanha, Ciro gravou vídeo com a Bíblia e a Constituição, afirmando que não eram “livros conflitantes”. “Talvez esses candidatos não tenham entrado tanto no discurso porque talvez não seja um público alvo. Enquanto estratégia de discurso eleitoral, já é um espaço saturado, muito ocupado por Bolsonaro, e que agora também está em disputa por Lula”, analisa Paolo Demuru.
Renascimento conservador
Política e religião andam juntas há bastante tempo. Há ciclos históricos, contudo, onde acontece uma espécie de renascimento e ondas conservadoras que já tinham emergido em outros momentos voltam a ter destaque. Isso não acontece apenas no Brasil, explica o pesquisador Paolo Demuru. “Populistas de direita reatualizaram discursos políticos religiosos fascitas e nazistas em todo o mundo. Nos últimos anos, houve uma virada no discurso religioso. Basta observar lideranças como Trump (EUA), Orbán (Hungria), Putin (Rússia). No Brasil, o representante dessa onda é Bolsonaro”, diz.
Para o doutor em Semiótica, o que liga o discurso de todas as lideranças da extrema direita internacional são teorias da conspiração como o ‘globalismo’ e a ‘cristofobia’. O pesquisador e professor Emanuel Freitas considera que “Bolsonaro é hegemônico no discurso religioso dentro da política brasileira”. Ele é, portanto, o agente que estabelece o tom das falas, que terminam sendo replicadas pelos concorrentes e também por políticos que estão nas disputas estaduais.
“A coisa que eu mais vi no Ceará este ano foi a quantidade espressiva de candidatos compromissados com esses mesmos temas relacionados à fé cristã, como aborto e combate à ideoligia de gênero. Então a estratégia de dominação do discurso religioso deu certo pela mobilização do segmento evangélico e pelo número de candidatos que replicam essa gramática”. Nossa cobertura eleitoral é financiada por leitores como você. Ajude doando mensalmente ou faça um pix para contato@apublica.org.
ENTRE EM CONTATO
Bruno Fonseca
bruno@apublica.org
@obrunofonseca
Leia mais do autor
Mariama Correia
mariamacorreia@apublica.org
@MariamaCorreia
Leia mais do autor
Nenhum comentário:
Postar um comentário