quarta-feira, 5 de outubro de 2022

 

O que veio e o que ainda vai vir

 

Passamos o fim de semana monitorando desinformação nas redes bolsonaristas, em uma parceria com os sites Aos Fatos e Núcleo Jornalismo, organizações que estão se consolidando na investigação de Fake News com o uso de tecnologia. O que vimos não foi nada fora do esperado: houve uma cacofonia de diferentes correntes desinformativas, desde histórias antigas sobre urnas que já traziam votos ao PT até urnas alteradas no Japão para mostrar 12 em vez de 22. As redes sociais e o TSE estavam atentos e derrubaram com extrema celeridade a Fake News que talvez fosse considerada como a “bala de prata” do bolsonarismo nessas eleições: um suposto áudio do Marcola, publicado pelo site Antagonista, que demonstrava preferir Lula a Bolsonaro. O Antagonista manchetou: Exclusivo: em interceptação telefônica da PF, Marcola declara voto em Lula. ‘É melhor, mesmo sendo pilantra”.         

Não foi o que disse a suposta gravação, que vem de dentro da PF com digitais bolsonaristas – mesmo que ela seja verdade. Não há declaração de voto. Alexandre de Moraes foi duro: “Tal contexto evidencia, com clareza, a divulgação de fato sabidamente inverídico e descontextualizado, que não pode ser tolerada por esta CORTE, notadamente por se tratar de notícia falsa divulgada na véspera da eleição”.     

O Antagonista protestou mas tirou a nota do ar. Mas, é claro, o gênio estava fora da lâmpada. O conteúdo foi rapidamente reproduzido por sites bolsonaristas como Terra Brasil Notícias, Jornal da Cidade Online e pela Jovem Pan. Bolsonaro e sua tropa publicaram posts sobre a mentira no Twitter e Bolsonaro mencionou o mesmo na sua “live”. 

O Youtube agiu rapidamente. Mas apenas os videos postados no canal de Youtube da Jovem Pan tinham 1,7 milhão de visualizações antes de sair do ar. Nossas equipes ainda estão apurando, mas no Gettr, rede social fundada pelo ex-porta-voz de Trump, conteúdos produzidos a partir do vazamento estavam rodando livremente, sem monitoramento das autoridades – o Gettr diz ser uma rede “contra a censura” e “a favor da liberadade de expressão”. 

Como já falamos aqui trata-se de envolver veículos de imprensa em uma campanha orquestrada de desinformação.  E, diga-se de passagem, não é nada inédito. Lembrei do episódio do vazamento de outro áudio, pela revista Veja, também às vésperas de uma eleição – e, coincidentemente, também contra o PT. Foi no dia 23 de outubro de 2014, poucos dias antes do segundo turno que daria vitória a Dilma Rousseff na sua reeleição, e era uma delação de Alberto Youssef à polícia federal. Nele, o famoso doleiro que se tornaria o grande pivô da Lava Jato afirmava “O Planalto sabia de tudo!”. Não tinha mais nada pra comprovar. Era só isso. Mas saiu assim a capa da então maior revista do Brasil. 

Sim, caro leitor, é impossível não ver a coincidência. No entanto, o que temos de novidade é a infraestrutura da desinformação, que hoje prescinde de um grande veículo que seja canalha o suficiente para publicar uma informação frágil como essa (as duas, na verdade) às vésperas de uma eleição. O Antagonista, sim, fez esse papel. Mas não precisava:  a história podia sair na Jovem Pan ou em outros sites bolsonaristas que continuam a atingir milhões de leitores, para daí se espalhar como fogo. 

Veja, não acredito que essa Fake News tenha tido grande impacto na eleição, até porque os votos de Lula se mantiveram dentro da margem de erro. Acho, ainda, que essa circulação ficou restrita a redes e sites mais radicalizados. O que importa, para mim, nessa Fake News, remonta também a outra narrativa que Bolsonaro tentou emplacar no debate da Globo: a de que o PT é um partido de bandidos. Ele acusou, mais uma vez, o PT de ter “matado Celso Daniel”. Trata-se de uma história antiga e desbancada milhões de vezes, antes e depois da internet se tornar o principal vetor de debates sobre a eleição. 

A iniciativa de associar o PT ao “crime” vem de uma visão de mundo que eu apontei ontem, no Spaces da Agência Pública, e que tem respaldo no sistema de crenças que embasam o bolsonarismo – que sobrevive, como vimos, com ou sem Bolsonaro.


 

É um sistema de crenças que acredita que criminosos são maus por índole e a repressão ou o extermínio é o melhor caminho e, talvez, a única solução possível. É a visão que acredita que é justificável o abuso de autoridade, a tortura, a violência, para “extirpar” o mau maior – a criminalidade que assola o nosso país. Essa visão, sim, vai crescer no segundo turno, com as mesmas Fake News voltando para nos assombrar a todos.    

 

Mas elas funcionam, apenas, como hipérbole de uma narrativa que foi construída ao longo de uma década contra o PT, e que nessa eleição chega com um gosto amargo: a teoria do Lula Ladrão, o mais corrupto da história etc etc. Digo isso não porque ache que não houve corrupção do PT. Houve, está mais que provado. Mas Lula foi condenado em um processo viciado e parcial, como o próprio STF reconheceu, mas não recebeu esse tratamento da imprensa – talvez pela empáfia de assumir que errou. Há um debate que eu considero bizantino que ocorreu muitas vezes, publicado em muitos veículos diferentes, dizendo que “Lula não foi inocentado, mas tem presunção de inocência”.  Até os checadores caíram nessa. 

Lula não é tratado como inocente. Pior: não é tratado como um homem que passou um ano na cadeia injustamente e que merece ser tratado como uma pessoa que ficou injustamente presa, como muitos. Gente: um injustiçado que volta à cena política com 5 milhões de votos a mais que o atual presidente da República é um fenômeno em qualquer país. E, no entanto, isso não é falado. A imprensa parece mais ocupada em provar que estava certa quanto à “corrupção do PT”. 

Não acho que tudo seja culpa da imprensa. Acho que boa parte da mentalidade que associa o PT ao crime faz parte da raiz racista e xenófoba que é arraigada na nossa sociedade e que o Bolsonarismo acolhe e fortalece. A mesma raiz que soltou ontem, e vai soltar nos próximos dias, ataques pesados aos nordestinos, responsáveis pela liderança de Lula. Comentários como esse, que tive a infelicidade de ver no meu feed do Twitter: 

- Nordestinos ganharam água, rodovias Auxílio Brasil, evotam no Lula? Que traição!
- Esperar o que dessa gente? 
- Povo ingrato, gosta de viver de bolsa isso, bolsa aquilo, trabalhar que é bom nada.  

Apertem os cintos, pessoal. Será um segundo turno feio.    



Natalia Viana
Diretora Executiva da Agência Pública

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