II.1. A brutalidade visceral da normalidade política conservadora
por: Luiz E. Soares
Na medida em que a chamada “descompressão” avançava, na segunda metade dos anos 1970, delineando no horizonte a promessa de um retorno à democracia, a tradição dos estudos empíricos sobre voto, eleições e sociedade começou a ser retomada no Brasil. Surgiram aos poucos as pesquisas sobre clientelismo, não mais no âmbito do coronelismo em um país rural, mas em favelas e bairros populares, no rescaldo de uma urbanização célere e brutal. A redemocratização trouxe consigo o refinamento de dados e percepções: na academia, a política de clientela, resistindo a preconceitos elitistas, foi conceitualmente incorporada ao vasto repertório da política democrática. Resignamo-nos ao fato de que não só de ideias e programas vive a disputa política, sua dinâmica turbulenta e conflitiva envolve também negociações pragmáticas: a bica d’água pode representar muito para a comunidade e, portanto, trocar o voto por um benefício coletivo talvez não seja alienação ideológica, mas estratégia de sobrevivência. O ganho privado do mediador local (pago pelo candidato que classifica o gasto sob a rubrica dos custos de operação) talvez não merecesse, afinal, avaliação moralista, mas um lugar na análise sobre a cadeia de interesses que se interconectam e retroalimentam. O mercado eleitoral mobilizaria uma espécie de nanoeconomia e a bica d’água, a rua asfaltada e a grana no bolso do broker não passariam da versão popular, em pequena escala, do acordo que move a política, entre representação, economia e dominação de classe. A importância desse tipo negocial de vínculo foi se tornando maior na mesma medida em que os juízos complacentes e sua avaliação como mecanismo político natural em eleições democráticas foram se mostrando mais discutíveis e talvez sintomáticos do processo de despolitização e institucionalização das ciências sociais, contrapartida do flerte de seus profissionais com o mercado.
O fenômeno transcendeu a bica d’água, o asfaltamento e melhorias tópicas, benefícios significativos, uma vez que deputados passaram a controlar clínicas e centros de atendimento social, apropriando-se de políticas públicas, privatizando o Estado e mercantilizando a política eleitoral. Tais elos eram distintos dos anéis que ligavam a burocracia estatal à burguesia, de que nos falava Fernando Henrique Cardoso, nos anos 1970, identificando estruturas corporativistas no modo como a ditadura organizara a cooptação das elites e operava sua política econômica. Depois da transição, a desideologização – antes imposta pela repressão e na sequência promovida pela própria dinâmica da democracia liberal, reproduzindo tradições arcaicas que remontavam à primeira República com inovações e muitas mediações que as complexificavam – em vez de indiciar apenas a afirmação do pragmatismo nas decisões de voto, preservadas ilhas de opinião, veio acompanhada da criação de máquinas cada vez mais portentosas e temíveis, orientadas não propriamente para interferir no mercado de votos, mas para submetê-lo à oligopolização. Tratava-se de máquinas azeitadas por recursos públicos e privados, entre os quais a força de constrangimentos armados, dos quais as milícias fluminenses oferecem testemunho ostensivo e hiperbólico.
Eis o campo fértil em que prosperaram máfias diversas: dos transportes, da coleta de lixo, dos serviços de saúde, das empreiteiras de pequeno porte, da grilagem de terras públicas, das chantagens em fiscalizações, das renúncias fiscais, multas e anistias, das licitações dirigidas por conluios entre empresários e gestores públicos, dos pagamentos seletivos da dívida pública mediante contribuições para caixinhas eleitorais, da distribuição de cargos municipais, na ausência de servidores públicos devidamente concursados – indispensáveis ao funcionamento de um Estado republicano, comprometido com o bem público. Como se deduz, políticas imediatistas, voluntaristas, falta de planejamento e de investimentos de longo prazo não derivam apenas da falta de visão de políticos e gestores, mas dessa infraestrutura que subordina os executivos, sobretudo municipais, a uma lógica de tomada de decisão reativa e defensiva, equilibrando-se entre parâmetros constitucionais e chantagens venais em certos Tribunais de Contas e algumas Câmaras Municipais. Os recursos públicos, desviados para ações de interesse coletivo (ou simplesmente distribuídos, privadamente) patrocinadas por políticos locais, são drenados para a formação de blocos de apoio eleitoral. O mecanismo, ora aplicado no escandaloso orçamento secreto do Congresso Nacional, há décadas vinha sendo ensaiado em escalas modestas em estados e municípios, quando os Tribunais de Contas eram manietados pela indicação política de seus membros, anulando sua independência e os incluindo no pacto de espoliação. Eis aí os anéis da nova democracia brasileira, que emergiu dos anos 1980, sem Justiça de transição, mudando regras mas conservando práticas, procedimentos, mecanismos, valores e visões de mundo: clientelismo político degradado, aliado à economia de baixo teor republicano, buscando a privatização do Estado, acoplado a um mundo popular superexplorado e submetido, se necessário pelas armas (legais e ilegais), às contingências da sobrevivência.
À voracidade predatória dessa fatia do empresariado atuante nos municípios de pequeno e médio portes – e não só –, mais ou menos vinculado à grande burguesia e ao capital financeiro, inexoravelmente presente na fluidificação dos negócios de todas as magnitudes e latitudes, juntou-se o empreendedorismo diretamente criminal, em que se irmanaram bicheiros, traficantes de armas e drogas, ex-membros da repressão na ditadura e policiais corrompidos – atuando em núcleos autonomizados como scuderies, esquadrões da morte, segurança privada ilegal e informal, depois milícias. As milícias são a expressão extrema desse pacto, porque sujam as mãos de sangue, mas apenas traduzem sem mediações, com maior nitidez, os valores e as práticas com que se identificam os demais parceiros do conluio: a força se autolegitima e é esteio do poder, reconhecido pelas instituições. O exercício da força prescinde de regras e intervenções externas, alheias aos limites ditados pelo pacto. Se algum prefeito ou vereador ousar romper a omertà será enquadrado pela ameaça de impeachment ou por emboscadas mais rústicas. As armas e os artifícios normalizados variam de acordo com a necessidade e a conveniência. No município, como nas lutas sociais no meio rural, “polícias privadas” substituem intervenções das Forças Armadas. Os coronéis locais, com aviões e seguros de saúde que lhes garantem atendimento cinco estrelas em São Paulo, prescindem de exegeses enviesadas do artigo 142, nem precisam invadir o STF. O crime político lá é cotidiano e faz parte das dinâmicas rotinizadas em que o bolsonarismo se enraizou, organicamente. O conservadorismo boquirroto do Brasil profundo (e não apenas) é o bolsonarismo, agora em versão 3.0, com capacidade de comunicação e mobilização de massa. O conservadorismo – edulcorado por palavras gentis e benignas como tradição e rotina – à era sanguinário; a diferença é que agora se prepara para o assalto ao poder total.
De fato, como se vê, o bolsonarismo não se ajustou à realidade política capilarizada, ele sempre foi isso, nunca foi senão a superestrutura “natural” – sem mediações cosméticas – da modernização selvagem do capitalismo brasileiro. Se o bolsonarismo empolgou os operadores desse pacto degradado de poder local foi porque seus protagonistas eram bolsonaristas avant la lettre, antes de Bolsonaro inscrever seus valores comuns na política nacional. Nem sempre é assim a realidade do campo, nem sempre é essa a política do interior, nem sempre funcionam assim as cidades pequenas e médias, não tome a Baixada fluminense por modelo, dirão os críticos de minha análise. Claro que não. Mas o que descrevi é a história que Bolsonaro encarna, representa, atualiza e reproduz. Esse é o Brasil de Bolsonaro. Certamente, há outras conexões, outros atores e outras formas de participação. Trato delas, a seguir.
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