terça-feira, 11 de outubro de 2022

 

 A história ao alcance da mão, o fetiche do protagonismo digital e o garimpo libidinal no inferno da culpa

Veja como se dá a infiltração afetivo-cognitiva e a difusão contagiante do que poderia ser chamado imaginário retrátil do bolsonarismo, que se expande e retrai conforme as circunstâncias, amalgamando figuras dissonantes em sua nebulosa ideológica inconsistente, e parasitando fragmentos culturais dispersos. Homens e mulheres, jovens e idosos, em todas as partes do Brasil, manipulam celulares e acessam o aplicativo WhatsApp, entre outros. Observe que a manualidade das operações se confunde com protagonismo e a comunicação de fake news, sussurrada ao pé do ouvido, nos áudios, ou escrita “só pra você”, envolve cada pessoa nas malhas do segredo e proporciona a experiência valiosa do pertencimento a um grupo exclusivo. Você é o escolhido, a escolhida, como não acreditar? A crença é um hábito mental, que se transfere do intelecto às mãos, aos gestos, às práticas, e que percorre o mesmo caminho em sentido contrário, o que é ainda mais fascinante: também vai dos gestos à consciência. Como dizia Pascal: “ajoelha-te e acreditarás”. Hoje, não é preciso ajoelhar, basta abrir o WhatsApp e descobrir que o compartilhamento com você da (suposta) informação lhe dará a sensação de exclusividade – exclusividade o/a fará sentir-se escolhido(a) – e soará como segredo. Ter acesso ao segredo, àquilo que poucos sabem, pressupõe o pertencimento a um clube seleto (exclusivo), uma espécie de família extensa, envolvendo identificação (que implica reconhecimento, adesão, constância, fidelidade, confiança) e estimulando a reiteração do movimento: você repassará a mensagem e/ou abrirá de novo, mais tarde, o WhatsApp. Você fará isso, ligando, conectando, abrindo, fechando, escrevendo, redirecionando, repassando mensagens. Você é parceiro, cúmplice, os outros confiam em você e você pagará essa confiança com lealdade. Nada disso se vincula a questões epistemológicas, que se refiram a métodos de verificação. A verdade aqui corresponde a acolhimento, valorização, reconhecimento. Se você é alçado à posição de sujeito (imaginariamente), há verdade aí, porque, sentindo-se potente (protagonista), você se liberta das subordinações que o humilham e oprimem. Ora, como você leu na Bíblia que “a verdade liberta”, você deduz que a comunicação virtual contém a verdade, porque o(a) faz sentir-se livre.

O que aconteceu em 2 de outubro de 2022 e nos dias imediatamente anteriores era previsível e reproduz, supõe-se que em escala ampliada, o que houve em 2018: uma descarga torrencial de fake news e mensagens geradoras de adesão eleitoral a Bolsonaro e seus aliados. A tática é conhecida e tem sido aplicada em diferentes países pelos movimentos neofascistas. Requer financiamento vultoso e uma estrutura de comunicação de alcance gigantesco. A carga venenosa funciona como arma de destruição em massa porque os efeitos se espalham velozmente, sem que haja tempo para respostas dos adversários, e provocam danos em um raio vastíssimo. No entanto, note que o abalo só é efetivo porque havia solo fértil, previamente adubado. A mensagem encontra estrutura de receptividade solidamente montada, fidelizada, conferindo plausibilidade aos conteúdos transmitidos. Eleitores e eleitoras se engajam na medida em que não se sentem meros receptores passivos mas, sim, imbuídos de uma missão: repassar a mensagem, transmitir “a palavra”, contaminar outros eleitores, gerar um tsunami pandêmico e votar.

Por outro lado, para que tudo funcione é preciso que haja o longo e paciente cultivo do terreno da comunicação, o que inclui desde a formação de grupos à proliferação de canais liderados por influenciadores bolsonaristas, testando e consolidando múltiplas dicções, repisando temas-chave com vocabulário comum. O imaginário tradicional conservador é reavivado e atualizado com focos variáveis, conforme as conjunturas. É indispensável que as mensagens do front, emitidas na véspera da batalha, sejam amparadas por estruturas de plausibilidade que lhes confiram verossimilhança e as façam circular em redes já enlaçadas por lealdade e confiança.

Em contraponto ao pertencimento e à identificação, afetos opostos e negativos vão sendo aquecidos em fogo lento para que, uma vez lançada a maldição sobre o inimigo, a crítica se transforme em repulsa e ódio. A intensidade anima o engajamento e fortalece a hostilidade aos competidores.

A estética, a gramática e a apologia do ódio e do aniquilamento ganharam espaço e tornaram possível a montagem da máquina de guerra comunicacional bolsonarista, que é também política libidinal, porque se endereça à demanda por restauração da ordem ontológica. Esses ingredientes estéticos e afetivos, sem cuja maturação anterior o bolsonarismo não teria encontrado tração na sociedade, ajudam a compreender a captura das energias babélicas de 2013 (que eram plurais e contraditórias na origem) pelo neofascismo, o golpe parlamentar de 2016, os movimentos da guerra híbrida que aproximaram militares e a ultradireita transnacional, a Lava Jato como operação midiático-jurídico-política, destinada a desaparelhar setores do capital nacional e a excluir Lula das eleições de 2018, e finalmente o triunfo do bolsonarismo.

Conforme procurei demonstrar em meu livro Dentro da noite feroz: o fascismo no Brasil (Boitempo, 2020), a passagem da compaixão à indiferença e daí ao ódio, como afetos dominantes em distintos momentos estruturais de nossa história, conta como se deu o trânsito sinuoso e convulsivo da hierarquia autoritária católica, engatada ao capitalismo nascente – em cujo âmbito prevaleciam o favor, o patrimonialismo, o compadrio e a escravidão –, ao neoliberalismo ultra-individualista globalizado sob hegemonia do capital financeiro. No mesmo livro, trabalhei as relações do bolsonarismo com a morte, que constituem objeto importante do qual não tratarei aqui, porque nos levaria muito longe. Essencial e urgente, no momento, é tentar entender a postura alucinatória implicada no remédio tóxico (gerador de traumas que voltarão no futuro a assombrar a sociedade brasileira) que o bolsonarismo oferece aos brasileiros para curá-los da culpa, a culpa tremenda que sentem não só pelos desejos inconfessáveis – já amplamente tematizados, acima –, mas por conviverem com o escândalo normalizado. O escândalo das desigualdades abissais, da violência racista, das violações de mulheres, da devastação ambiental meticulosamente executada. A culpa profunda leva à prostração, à apatia (a depressão se alastra), e quão mais impotente o sujeito se sente, mais culpado por negar-se a ver as abjeções e reconhecê-las como tais, ante seu testemunho inerte. O discurso liberal da meritocracia não basta, é hipócrita demais, contrasta demais com a empiria observável no dia a dia. O individualismo convencional brasileiro tampouco funciona, porque é permeável a ideias e afetos coletivistas: fraternidade, solidariedade, corresponsabilidade.

Restou a Bolsonaro o garimpo libidinal que extrai ouro do nariz dos mortos e suscita prazer. Vejamos: o imaginário alucinatório do capitalismo neoliberal que Bolsonaro encampa e aprofunda precisa levar o culto à indiferença (a ode ao “foda-se”) às últimas consequências. Precisa assentar em bases firmes seu projeto e, portanto, necessita de mais do que o mero apaziguamento que a indiferença proporciona. É nesse ponto que o messias da revolução destrutiva propõe a solução óbvia, o ovo de Colombo: sugere a metamorfose da voz interior que causa culpa – o senso autocrítico de moralidade – em acusação pública contra aqueles que tenderiam a suscitar empatia e seriam alvos da compaixão. Bolsonaro interpela as vítimas e convoca os culpados a exorcizar até a última gota seu senso de responsabilidade e empatia, passando ao ato. Eis em suma o sentido de sua performance essencial: convoca sua militância a acusar as vítimas – vitimismo –, os pobres, ultrajados e explorados – coitadismo –, as mulheres violadas – mimimi. Bolsonaro decreta, assim, a alforria a quem ainda se deixava prender ao sentimento de corresponsabilidade. Sentimento, aliás, do qual a culpa representa uma versão psiquicamente mal elaborada, autopunitiva, cujo efeito acaba sendo paradoxal: a dissolução do amor e da empatia no ácido da ira e da vingança.

Enquanto as esquerdas vacilavam, com seu punitivismo estúpido e demagógico, em reconhecer que responsabilidade é uma virtude e um dever, dos quais a culpa constitui um espelho negativo – espelho que adoece e inibe seu portador, e expele o chamado à ação –, enquanto isso, Bolsonaro se apropriava dessa problemática central para a organização da sociabilidade e dos afetos, soltando as amarras da matilha de cães selvagens. A matilha feroz é o espírito humano, instalado no corpo impotente, interpelado pela fome, a injustiça, o desejo de sentir-se livre e a vontade de poder. O militante modelar está livre para odiar, humilhar e aniquilar os que refletem sua própria impotência. Impotência que ele amargava pelo viés neurótico da culpa. Culpa que agora o eleitor bolsonarista pode purgar, culpando a vítima pela violência, o miserável pela miséria. A elaboração saudável teria de integrar a culpa, convertendo-a em senso de responsabilidade e disposição para agir politicamente em direção à solidariedade.

Há chances consideráveis de que Lula vença o segundo turno. Ou as trevas sepultarão qualquer futuro minimamente decente e desejável para nosso país. Lula vencendo, terão início as imensas tarefas de reconstrução. Espero que uma delas inclua o abandono do punitivismo e a valorização das lutas emancipadoras que o neofascismo tem alvejado com fúria e que os progressistas tantas vezes desdenham como identitárias, por não compreender seu alcance histórico e civilizador.

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