segunda-feira, 31 de outubro de 2022

 

Dowbor: o fascismo cotidiano – e como vencê-lo

Os homens e empresas que constroem o poder dos Bolsonaro não pronunciam discursos raivosos. Alimentam, silenciosos, as engrenagens que sugam as riquezas coletivas e produzem desigualdade e miséria. Ódio e rancor são consequências

Que o fascismo seja forte no Brasil não é novidade. Podemos chamar de diversos nomes, mas ao olhar de mais perto temos segmentos diferenciados. No topo da força política temos os grandes interesses das corporações financeiras internacionais. Hoje aparece com muito mais clareza o interesse dos Estados Unidos, mas também da França (Total) e outros pelo petróleo brasileiro, inclusive o seu papel no golpe. O que servia, no quadro do regime de partilha negociado por Lula, para financiar educação, saúde, ciência e tecnologia, bem como reinvestimento na própria empresa, hoje alimenta as contas dos acionistas internacionais, e seus aliados internos. É o caso também dos grandes grupos dos traders de grãos, como o “ABCD” – ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus – que hoje controla 80% do comércio de grãos no planeta, em particular soja, milho, arroz e trigo, ou seja, o alimento do mundo. Com a Lei Kandir, de 1996, que isenta de impostos quem produz para exportação, temos um país que na última safra de grãos colheu o equivalente a 3,7 quilos por pessoa por dia, mas que tem 33 milhões de pessoas com fome, e 125 milhões em insegurança alimentar.

A dimensão desses interesses que são globais, ainda que muito centrados nos Estados Unidos, é pouco compreendida. O tamanho dos gestores financeiros mundiais e o seu poder global são subestimados. Lembremos que três grupos de “asset management”, gestão de ativos, ou seja, de fortunas – BlackRock, State Street e Vanguard – administram 20 trilhões de dólares, quando o PIB dos Estados Unidos é de 21 trilhões. Larry Fink, presidente da BlackRock, administra 10 trilhões de dólares, o orçamento do Biden é de 6 trilhões. Esses grupos não produzem, mas têm os seus tentáculos em praticamente todos os países, drenando inúmeras atividades, sob forma de dividendos e de apropriação de recursos naturais. A Vale, que nada em dinheiro, foi privatizada em 1997 e está exportando um recurso natural, minério, que é do solo brasileiro, para proveito dos traders, com prioridades que ficam claras quando preferem aumentar os dividendos dos acionistas do que reforçar barragens. A Billiton agradece, Mariana padece.

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Esses interesses internacionais, com a dimensão e escala que vimos, estão presentes dentro do país, no Congresso, no Judiciário, no Executivo, e sobretudo numa classe de extratores e exportadores de commodities. O sistema internacional de extração de riquezas se apoia numa classe de aliados internos, que encontram o seu lucro numa articulação com as corporações financeiras e corporativas globais, mais do que com o interesse nacional. A autorização, no Brasil, do uso de agrotóxicos proibidos em outros países resulta dessa articulação. O fechamento de refinarias para favorecer a exportação de petróleo bruto e a importação de refinados, e a adoção na Petrobrás de preços de paridade com o mercado internacional, gerando lucros astronômicos, idem. As queimadas na Amazônia e no Cerrado e os lucros da JBS, idem. A fragilização do SUS para forçar mais pessoas a recorrerem ao sistema privado – a NotreDame Intermédica, por exemplo, tem a BlackRock entre seus acionistas – assegura que os consumidores contribuam para os lucros financeiros de corporações de diversas partes do mundo. Os associados nacionais agradecem, e se tornam fortes aliados.

É importante entender que a privatização hoje significa desnacionalização, oportunidade para os gestores mundiais de ativos e de commodities comprarem ações e colocarem as suas prioridades dentro de cada conselho de administração empresarial. A prioridade passa a ser o aumento de dividendos, o país se desindustrializa e se concentra na produção e oferta de bens primários. Tecnologia de ponta a serviço do atraso. Esses grupos, como vimos nos debates eleitorais, dão todo o apoio à manutenção do sistema que tanto os favorece. A mágica no processo é que as pessoas que compram ações da Petrobrás, por exemplo, tanto no Brasil como no resto do mundo, lucram, mas não se sentem responsáveis pelo fato de as famílias no Brasil não conseguirem pagar o botijão de gás. O enriquecimento nos “mercados financeiros” inocenta a exploração, disfarçada pelo véu das cotações nas bolsas. E ainda gera uma massa de apoio ao processo.

Apenas dois subsistemas econômicos funcionam e se enchem de dinheiro no Brasil: a produção e exportação de bens primários que vimos acima, e a intermediação financeira. Aqui a agiotagem é generalizada. Na fase da hiperinflação que durou até meados dos anos 1990, os juros eram astronômicos e apresentados em taxas mensais, já que ninguém sabia qual seria a variação da moeda no mês seguinte. A hiperinflação foi contida, mas os juros diminuíram apenas parcialmente, e a apresentação de taxas ao mês foi mantida, quando o resto do mundo usa a taxa anual. Vale dar uma olhada na pesquisa mensal de juros da Anefac (Associação Nacional de Executivos de Finanças), que apresenta o chamado “custo efetivo total do crédito”, ou seja, os juros que a população e as empresas efetivamente pagam. Os dados para setembro de 2022 apresentam juros no comércio de 88% (na Europa raramente passam de 8% ao ano), juros no cartão de crédito de 400% (no Canadá 11% ao ano), e juros médios para pessoa jurídica atingindo 60%. Trata-se de um dreno impressionante sobre as famílias (neste final de 2022, 79% das famílias estão atoladas em dívidas, 30% delas em bancarrota pessoal) e sobre as empresas. Na China, a taxa média de juros para tomador final é de 4,6% ao ano. Com inflação de 2%, o juro real ao ano é de 2,6%. Dá para uma pessoa pegar um empréstimo, abrir uma empresa, pagar a dívida e ainda lucrar. E os bancos lucram, com juro baixo, mas volume elevado.

Nessa nossa economia administrada por um banqueiro, com o Banco Central na mão de bancos, e taxas de juros disfarçadas com apresentação “ao mês”, a evolução dos lucros financeiros foi impressionante. As famílias pagam juros escorchantes, as empresas idem, e a elevação da Selic sobre a dívida pública drena a capacidade de o Estado financiar o desenvolvimento. A farra é resumida pela própria Anefac: “Ressaltamos que no período de janeiro/2021 a setembro/2022 o Banco Central elevou a taxa básica de juros Selic em 11,75 pontos percentuais (elevação de 587,50%) de 2,00% ao ano em janeiro/2021 para 13,75% ao ano em setembro/2022. Neste período a taxa de juros média para pessoa jurídica apresentou uma elevação de 19,27 pontos percentuais (elevação de 46,77%) de 41,20% ao ano em janeiro/2021 para 60,47% ao ano em setembro/2022.” A elevação dos lucros dos bancos no Brasil – e isso envolve também as financeiras e os crediários nas grandes lojas – gera também aqui acionistas felizes que querem manter o sistema. Lembremos que o artigo 192 da Constituição, que definia agiotagem como crime, foi tirado em 2003, por emenda constitucional e por pressão dos bancos. A agiotagem deixou de ser crime. Hoje, esses grupos simplesmente querem que a farra continue.

É assim que temos interesses internacionais e associados nacionais articulados em um sistema que espolia o país, mas que apresenta bons resultados na Bolsa e deixa os intermediários financeiros felizes. A publicação da Forbes, que apresenta os 315 bilionários brasileiros, os mostra sorridentes na foto. Ter gente com fome, desindustrialização, catástrofes ambientais, são impactos que eventualmente as elites lamentam, mas no sentido “parlamentar” da palavra. É essencial constatarmos que não se trata de lucros sobre produção, que envolveria geração de empregos, bens e serviços e impostos para o Estado prover políticas sociais e infraestruturas. Trata-se de rentismo, lucros sem a contribuição produtiva correspondente. Lembrando que no Brasil “lucros e dividendos distribuídos” são isentos de impostos. Essas são as nossas elites.

Em outro nível, temos um segmento da classe média que participa mais modestamente da farra, fazendo “aplicações financeiras”, que os bancos preferem chamar de “investimentos”. Quem aplicou a sua poupança em ações Petrobrás, mesmo que em quantias moderadas, por exemplo, ficou surpreso como seu dinheiro valorizou recentemente. Com a paridade com preços internacionais, o botijão de gás passou para 130 reais. Na prática, o dinheiro que cada família precisou pagar a mais agora para comprar o botijão é que valorizou e garantiu os lucros dos acionistas. É lucro sem contribuição produtiva, “rent” como é hoje chamado na literatura econômica internacional. Alimenta precisamente os acionistas internacionais, os grandes investidores institucionais, e em particular tantos pequenos poupadores, que ficam entusiasmados com a renta gerada, sem precisarem criar empresas ou construir casas: eles apenas “aplicam”. Basta um “Enter”. Isso gera uma faixa muito mais ampla de apoiadores do sistema financeirizado, dando um lastro político ao mundo corporativo transnacional, simplesmente ao distribuir migalhas.

Arentabilidade do dinheiro, sem aumentar a capacidade de produção do país, desvia inclusive o interesse em criar pequenas e médias empresas. Boa parte das empresas industriais que fecharam migraram para aplicações financeiras. Como Piketty demonstrou tão bem, hoje rende mais fazer aplicação financeira do que investimento produtivo. E o dinheiro vai para onde rende mais. Boa parte da classe média que apoia essa nossa versão do “fascismo” está se agarrando à parte que lhe cabe no latifúndio financeiro transnacional. A mídia comercial informa regularmente quanto rendem as diversas ações. Não é ilegal, mas em outros tempos, esta classe média estaria criando empresas, produzindo. Hoje, ela apenas “investe”, no sentido financeiro da palavra. Torna-se aliada natural do sistema improdutivo de exploração.

Cabe aqui acrescentar, aos parceiros do capital improdutivo, a existência de uma classe média burocrática, ou tecnocrática, constituída pelos técnicos que gerem o sistema, e recebem bons salários, o que os torna solidários. Quando vemos o sorriso dos jovens que organizam o sistema de drenagem online por meio de “produtos” financeiros cada vez mais complexos, a partir da Faria Lima, e com boas conexões internacionais, fica claro que eles não se lembram que o dinheiro que ganham resulta do que uma pessoa paga como tarifa ao utilizar o cartão de crédito, como preço ao encher o tanque do carro ou do caminhão. Trata-se de bons técnicos, muitos formados com financiamento público nas universidades federais ou estaduais, que tendem a ver os seus salários e bônus como remuneração da sua competência pessoal, e não como efeito indireto de um sistema de dreno da economia, que gera fortunas e bons salários de um lado, e uma economia estagnada, fome e desemprego em outro.

Ao falarmos em classe média, portanto, dos pequenos aplicadores financeiros que dependem da rentabilidade de papéis, e que se tornam solidários do sistema, temos de acrescentar uma classe, bastante ampliada hoje, de engenheiros, advogados, técnicos em informática, comunicadores, políticos e tantos outros profissionais que gerenciam e mantêm o sistema, colocando o país a serviço das elites, enchendo-nos de mensagens e ofertas que nos assaltam no celular, comercializando informações privadas colhidas por “cookies”, construindo condomínios luxuosos para a classe média alta, empurrando “reciprocidades” nos bancos – tantas atividades de gente competente que poderia ajudar a construir país que funcione, em vez de se colocar a serviço de elites que o paralisam. Não precisam ser tropa de choque da elite do atraso, e muitos estão em conflito interno. Gostariam que o que aprenderam fosse fonte de remuneração, sem dúvida, mas também que suas atividades fossem socialmente úteis, ou pelo menos não nocivas ao país e ao planeta.

Em outro nível, o que temos chamado de “massas populares” são pessoas que não “investem”, pelo contrário estão atoladas em dívida (os 79% vistos acima) e mal conseguem fechar o mês. A sua exploração se dá tanto pelos juros como pela inflação em geral: o que a população paga a mais para encher o tanque ou para comprar gás e alimentos se transforma em lucros dos acionistas. Para esta população – que é a explorada, a que contribui – a estratégia das elites não é de melhorar as suas condições, e sim de lhes oferecer narrativas. Aqui o discurso, por meio da mídia comercial, dos políticos e das igrejas pentecostais, inclusive das milícias, não se dirige ao cérebro, à razão, dirige-se ao fígado, às tripas, ao sentimento latente de frustração e de impotência que sentem tantas pessoas jogadas no limbo econômico. Aqui efetivamente o discurso ideológico é fascista.

Estamos no campo preferencial dos demagogos: aparece um pilantra que passou a vida vivendo dos recursos públicos, da política, em nome de ser contra a política, dizendo que vai destruir tudo, comunicando com o andar de baixo como porta-voz do ódio acumulado. O discurso do ódio gera eco nas almas de tantos oprimidos, injustiçados neste país profundamente desigual. Nada original, o mesmo discurso que já foi de Mussolini ou Hitler, hoje ecoa nos discursos de Orban, de Kaczynski, da Meloni, do Duterte, do Trump. De um lado o ódio, que gera identificação. De outro, a promessa de invadir o templo, trazendo a ira divina, com Deus, pátria, família, o mesmo slogan que ouvimos na semana passada da fascista italiana, recém-eleita. Os demagogos sabem, não é programa de governo, mas funciona. Identificação pelo que há de mais sagrado, na voz dos mais completos pilantras. Não à toa se vestem de bandeira os que entregam a pátria.

Estamos elegendo um presidente da República que deve administrar o orçamento, construir ferrovias, financiar a saúde e a educação, eliminar a fome, cuidar das atividades político-administrativas. Eu não preciso de um político que me ensine como devo amar a pátria, me relacionar na família, rezar ou amar. Trata-se aqui de um empréstimo de valores para encobrir a mais vulgar ganância. “Ouçam o que eu digo, não olhem o que eu faço”. Nunca os ricos ganharam tanto dinheiro no Brasil, e nunca ouvimos tanto falar em “valores éticos”. O cinismo é total, mas convence: os mais explorados, frustrados e desamparados precisam sim, e muito, de Deus, Pátria e Família. Como se sentem as dezenas de milhões de famílias com crianças passando fome? As elites e seus associados internacionais lucram, as classes médias lucram menos mas acompanham, e ao povo, à imensa massa de trabalhadores, com ou sem emprego, restam apenas narrativas, fome e frustração.

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