Luiz E. Soares: Brasil em contagem regressiva
Há chances consideráveis de que Lula vença. Nesse caso, terão início as imensas tarefas da reconstrução. Espero que valorizem as lutas que sacodem o patriarcado e a herança colonial — e foram tantas vezes desdenhadas como apenas identitárias
Por Luiz Eduardo Soares | Imagem: Mariza Dias Costa
Não estamos entendendo nada, ou quase nada. Dia 2 de outubro caiu como uma bomba de efeito retardado: intuímos, ao fundo, o rumor da contagem regressiva rumo à regressão incalculável. Esse é o fato, pudicamente coberto por conversa fiada mais ou menos vulgar e eventualmente adornada pela sofisticação dos ilustrados. Aqui e ali, lemos textos e declarações que normalizam o escândalo na vulgata da ciência política positivista, cuja indigência fora demonstrada à exaustão na última década. As instituições estão funcionando, eles dizem, e, conforme venho repetindo desde 2013, continuarão a funcionar como o ventilador no fim do mundo, girando até a bateria acabar. Como é possível que alguém minimamente informado continue funcionando como um adulto racional e afirme essa barbaridade, depois de quatro anos em que um presidente cometeu todo tipo de crime sem ser molestado pelos bravos e republicaníssimos checks and balances? Não raro, nas redes e na mídia, topamos com truísmos, platitudes e exaltações da prudência ante o enigma – menos mal –, ou com o exibicionismo narcísico da inteligência impotente, que apenas circunscreve com elegância a própria ignorância. Por outro lado, ouvi e li intervenções desbravadoras, corajosas e criativas, diferentes entre si, mas poderosas e verdadeiramente inspiradoras, de Manuel Domingos, Gilberto Maringoni, Bruno Torturra, Ferrez e Ronilson Pacheco. Certamente, há muitas outras manifestações importantes e esclarecedoras. As redes são incansáveis e eloquentes.
Acho que é o momento de ousar, reconhecer a perplexidade e dar nome à nossa limitação (conceitual, vocabular, intelectual e perceptiva) para entender o curto-circuito societário que nos assombra: afasia. É hora de reaprender a falar – e escrever. Mas longe de mim a pretensão de ensinar. O melhor que posso fazer é errar erros novos.
Começo pelo que me parece óbvio e faz com que a leitura de artigos normalizadores me deixem exasperado: estamos diante de um processo eleitoral que dá tração a um assalto fascista ao poder. Ou seja, não estamos diante de um processo eleitoral, stricto sensu, mas ante uma ameaça existencial. De meu ponto de vista, quem não partir desse pressuposto corre o risco de, mesmo involuntariamente, fortalecer a ameaça. Uma boa alma indagaria: isso não restringiria o espaço para o diálogo e não conduziria a julgamentos morais – não apenas intelectuais e políticos – sobre os portadores de perspectivas divergentes? Sim, sem dúvida. É isso mesmo que estou fazendo.
Se colegas intérpretes do Brasil preferem aplicar ao assalto que denominei “fascista” outro adjetivo, não me oponho. Empreguem o que considerarem mais adequado no repertório das qualificações para o bolsonarismo. Se tampouco se satisfizerem com o uso da categoria bolsonarismo, recorram a outros epítetos. Não me oponho, desde que não se rendam às falácias em voga: “direitista”, “ultradireitista”, “populista de direita”, que têm servido para naturalizar (e portanto legitimar) o fenômeno em curso, inscrevendo-o numa série homogênea, numa linha contínua, em que também se localizariam Lula e outras lideranças do campo democrático, como se as diferenças não fossem de natureza, mas de grau. Nada melhor do que essa geometria simplória para tornar mutuamente comensuráveis o PT e a abominação bolsonarista, a proposta política petista e a ameaça existencial à sociedade e à própria vida no planeta. Não quero perder tempo com disputas conceituais em torno da pertinência ou não da referência ao fascismo. De meu ponto de vista, me dou por satisfeito com a afirmação de que a coisa em foco nada tem a ver com disputas políticas eleitorais, nem se relaciona com a experiência democrática. Por isso mesmo requer, de quem repele a barbárie, audácia e energia para pensar e agir, antes que o segundo turno eventualmente a consagre.
Segundo ponto: perdoem reiterar o óbvio, mas sempre haverá quem critique generalizações, que não fariam justiça à gigantesca heterogeneidade do universo de eleitores de Bolsonaro. E mais: é preciso salientar que eleitores não são necessariamente adeptos do bolsonarismo, seja lá o que isso signifique, ou melhor, não são nem fanáticos, nem fascistas. Nem mesmo se identificam com os valores que o líder postula. Há graus distintos de adesão. Muitos, muitíssimos serão perfeitamente capazes de criticar o presidente e de se posicionar numa ou noutra direção, de acordo com pautas e conjunturas. Eis aí a sociologia liberal racionalista de volta, uma espécie curiosa de antropologia de centro, ou talvez a mera racionalização da ideologia rastaquera que opera com o modelo liberal do homem que calcula, do empreendedor utilitário movido por interesses, legitimamente egoísta. Legitimamente, sim, uma vez que, afinal, como Mandeville nos ensinou, no mercado, vícios privados redundam em virtudes públicas. Mercado que, por sua vez, também legitimamente, se refletiria nas escolhas políticas. Tudo bem, mesmo descrendo nessa teoria de araque sobre o ser humano e lamentando a pobreza sociológica do utilitarismo projetado sobre a política, posso conceder tudo isso. Trata-se de um universo plural e internamente diverso. Contudo, as miríades de diferenciações internas à galaxia bolsonarista sucumbem frente ao voto, a diversidade é abolida no momento da escolha derradeira, quando as variações torrenciais são condensadas (não se trata de subsunção ou síntese, pelo contrário) pela exclusão prática, naquele gesto trivial e épico do voto. O que me autoriza um juízo ético-político e intelectual unívoco, não somente a análise. São todos cúmplices do genocídio, da degradação ambiental e da brutalização de nossa sociedade – nesse caso vale inclusive indagar: sociedade?
Em dramas sociais, como são as eleições, estão presentes as mais diversas dimensões que compõem a vida em sociedade. Por esse motivo, faz todo sentido refletir sobre as conexões entre interesses e voto, renda e voto, classes sociais e voto – eis aí o mapa para uma genealogia da cumplicidade. Assim como entre faixas etárias, escolaridade, adesões religiosas, regiões, raça ou cor, gênero e voto. Em outras palavras, todas essas relações merecem ser objeto de reflexão e pesquisa, e devem constituir focos da campanha de Lula, sem nenhuma dúvida. Todavia, é evidente que isso não basta. Não bastou e não bastará. Por este motivo, a contribuição que pretendo oferecer põe em circulação hipóteses relativas à relevância de outras dimensões, entre elas, e em primeiro lugar, a demanda, amplamente ativa na sociedade, pela restauração da mais profunda e matricial das ordens, aquela que, abalada, provoca insegurança mais intensa e dramática do que a violência e a criminalidade. Uma ordem que não se promove com polícia e justiça criminal. Refiro-me à ordem no plano matricial – que é imaginária mas vivida como o pressuposto mais essencialmente real da existência –, plano que delimita e suporta o próprio ser de cada sujeito humano, define seu destino e lhe dá sentido, plano que merece ser denominado “ontológico”.
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