Ditadores brasileiros, cães de guarda do anticomunismo
por Rodrigo Martins
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publicado
29/07/2015 04h23
O regime militar cogitou invadir o Uruguai para evitar uma vitória da esquerda
El Popular
Segundo documentos dos EUA, a invasão ocorreria se a Frente Ampla ganhasse as eleições de 1971.
A correspondência integra um lote de 538 documentos
secretos dos anos 70 que tiveram o sigilo desclassificado total ou
parcialmente pelo governo de Barack Obama, em decorrência da recente visita de Dilma Rousseff aos EUA.
A maioria dos papéis foi produzida pelo Departamento de Estado,
especialmente pelas embaixadas e consulados no Brasil. São telegramas,
memorandos e relatórios. O acervo revela que os americanos estavam muito
bem informados sobre as mortes e graves violações aos direitos humanos
nos porões da ditadura, mas optaram por esconder os pecados de seu
principal aliado na luta contra os movimentos de esquerda no continente.
Menos de um mês após o desaparecimento de Rubens Paiva,
Washington foi informada de que o ex-deputado não havia resistido ao
interrogatório dos agentes da repressão. Temia-se que o episódio viesse a
público e comprometesse a imagem do presidente Richard Nixon, aliado do
regime brasileiro. Da mesma forma, os Estados Unidos souberam que
Virgílio Gomes da Silva, mentor do sequestro do embaixador americano
Charles Elbrick, em 1969, morreu sob a custódia do Estado. E jamais
acreditaram na versão oficial sobre o atentado no Riocentro, tramado pelos próprios militares.
No caso do Uruguai, o
telegrama de Rountree lança luzes sobre um episódio tratado por muitos
anos como teoria conspiratória. Desde 1964, o país era observado com
muita atenção pelos militares nativos. Além da posição geográfica
estratégica na região platina, o vizinho abrigava grande número de
exilados, entre eles, o ex-presidente João Goulart e o ex-governador
gaúcho Leonel Brizola, observa Ananda Simões Fernandes, do Arquivo
Histórico do Rio Grande do Sul. A historiadora sustenta que o plano de
intervenção emergiu logo após a formação da Frente Ampla, em 1971. Para o
governo dos EUA e a ditadura brasileira, havia o temor de a esquerda
conquistar o poder, a exemplo do ocorrido no Chile dois anos antes, com a
vitória da Unidade Popular, de Salvador Allende.
“O Brasil arquitetou um plano de invasão a
Montevidéu, que ficou conhecido, nos meios militares, como Operação
Trinta Horas. Tal plano seria executado em caso de vitória da Frente
Ampla nas urnas”, afirma a pesquisadora. O jornalista Paulo Schilling,
assessor e braço direito de Brizola, foi o primeiro a denunciar a trama,
ainda no início dos anos 1970, nas páginas do semanário uruguaio Marcha.
Desacreditado por sua militância de esquerda, Schilling viu suas
denúncias serem corroboradas em meados dos anos 1980 pelo coronel
brasileiro Dickson Grael, oficial que apoiou o golpe de 1964, mas,
desiludido com os rumos da ditadura, registrou em livro um detalhado
depoimento sobre o episódio.
Segundo Grael, a Operação Trinta Horas
foi montada no III Exército. À época, o coronel era oficial do
Estado-Maior do Quartel-General da 2ª Divisão de Cavalaria, sediada em
Uruguaiana, fronteira com a Argentina. Novas declarações vieram a
público em janeiro de 2007, quando, em um programa de tevê gaúcho, o
general Ruy de Paula Couto, ex-chefe do III Exército, afirmou ter sido o
então presidente uruguaio Jorge Pacheco Areco quem solicitou
apoio das tropas brasileiras. A coalização de esquerda saiu derrotada
da disputa presidencial, mas elegeu cinco senadores, 18 deputados e 51
vereadores. Com o golpe de 1973 no Uruguai, a intervenção foi
definitivamente descartada.
“A Frente Ampla se espelhava na Unidade Popular do Chile, com forte
discurso anti-imperialista. À época, Allende era a principal ameaça aos
EUA no continente, pois chegou ao poder pelo voto, desmistificando a
tese de que o socialismo era incompatível com a democracia”, avalia a
historiadora Fernandes. “O Brasil insere-se, nesse contexto, como o
principal aliado da administração Nixon na América do Sul. Não por
acaso, a ditadura brasileira participou ativamente do golpe na Bolívia
em 1971 e financiou grupos extrema-direita no Chile para derrubar
Allende. Esse telegrama revelado agora mostra como o Brasil exerceu
ingerência sobre o Uruguai.”
No informe, Rountree observa um esfriamento das
relações entre Brasil e Uruguai por causa do fracasso nas negociações
pela libertação do cônsul brasileiro Aloysio Gomide, sequestrado pelos
tupamaros em 1970. O diplomata só seria libertado após sete meses de
cativeiro, mediante pagamento de resgate pela família. Embora
considerasse improvável uma intervenção direta no Uruguai, o diplomata
pondera que o Brasil poderia patrocinar um golpe preventivo de Pacheco.
“A ajuda provavelmente se daria na forma de armas, treinamento,
assistência financeira etc.”
Sobre o desaparecimento de
Rubens Paiva, um memorando, datado de 11 de fevereiro de 1971 e
assinado pelo diplomata John W. Mowinckel, é taxativo: “Paiva morreu
durante o interrogatório, de ataque cardíaco ou de outras causas”. No
texto, ele pede ao embaixador para “convencer” o governo brasileiro a
“punir ao menos alguns desses responsáveis”. Embora destacasse o
episódio como mais um exemplo das táticas “irresponsáveis” da ditadura,
Mowinckel parecia mais preocupado com a repercussão do crime nos Estados
Unidos. “Quando os fatos vierem à tona, não será possível varrê-los
para debaixo do tapete”, observa. “Os pecados do governo brasileiro
respingarão sobre nós, causando assim mais um problema no Parlamento e
na imprensa para a administração Nixon.”
- Em nenhum momento a versão oficial para as bombas do Riocentro convenceu a diplomacia dos EUA. Créditos: Otavio Magalhães/AG. O Globo
Luiz Antônio Dias, chefe do Departamento
de História da PUC de São Paulo, observa que o documento foi produzido
menos de um mês após a prisão e o desaparecimento de Paiva. À época, o
Exército divulgou a versão de que ele havia sido resgatado por um grupo
de terroristas durante sua transferência para uma unidade militar.
“Ninguém jamais acreditou nessa falácia. Mas, naquele momento, a família
ainda tinha esperanças de encontrá-lo vivo. Preso e possivelmente
submetido à tortura, mas vivo.”
Somente 15 anos depois surgiram as
primeiras revelações sobre o real destino de Paiva, brutalmente
assassinado sob a guarda do Estado. Em 1986, o tenente-médico do
Exército Amílcar Lobo confirmou à Polícia Federal ter atendido o
ex-deputado às vésperas de sua morte. Em seu relato, ele enfatiza que o
preso chegou aos seus cuidados em situação deplorável, “na condição de
abdome em tábua, o que em linguagem médica pode caracterizar uma
hemorragia abdominal”.
Outro telegrama, datado de 30 de setembro de 1969,
confirma a prisão de Virgílio Gomes da Silva por agentes da Operação
Bandeirante (Oban). Segundo o texto, produzido pelo consulado dos EUA em
São Paulo, o militante da Ação Libertadora Nacional “morreu enquanto
estava sendo questionado”. A correspondência ressalta que “possivelmente
a polícia vai não dar conhecimento público de que ele foi preso”.
Silva havia sido
assassinado no dia anterior, aos 36 anos, após ser preso em uma
emboscada na Avenida Duque de Caxias, na capital paulista. Encapuzado,
foi encaminhado diretamente à sala de tortura, de onde sairia morto após
12 horas de suplício, concluiu a Comissão Nacional da Verdade. Vários
presos políticos presenciaram os maus-tratos sofridos por ele e as
denunciaram em auditorias militares. Apesar das significativas
evidências que atestam as circunstâncias de sua morte, os órgãos de
segurança até hoje não se posicionaram de forma clara sobre o caso.
Um relatório do Ministério do Exército, emitido pelo CIE
em outubro de 1969, afirma que Silva teria se “evadido” após a prisão. O
Serviço Nacional de Informação de São Paulo emitiu outro documento, em 3
de outubro de 1969, afirmando que o “terrorista” Virgílio Gomes da
Silva, vulgo “Jonas”, teria falecido após resistir à prisão. Já o
Relatório dos Ministérios Militares, emitido em 1993, o aponta como
“desaparecido”.
Os EUA também tinham conhecimento da farsa montada pelos militares no atentado do Riocentro,
em 1981. “De nosso ponto de vista, não há dúvida de que tanto o
sargento Guilherme Pereira do Rosário, morto, e o capitão Wilson Luís
Chaves Machado, gravemente ferido, eram os pretensos autores e não as
vítimas de um ataque à bomba”, diz um relatório, preparado para o
Departamento de Defesa. “Parece claro que os dois indivíduos, como
membros do DOI-Codi, agiam sob ordens oficiais no momento em que a bomba
acidentalmente explodiu no carro deles.”
Os norte-americanos nem
sequer cogitaram aceitar a versão oficial: “Porta-vozes militares de
alta patente anunciam continuamente que os socialistas/comunistas tentam
comprometer a abertura política e frustrar os esforços do presidente
para desenvolver uma democracia. Isso tem sido repetido tantas vezes que
alguns estão começando a acreditar, mesmo que não haja nenhuma
evidência para apoiar a acusação”.
Os documentos desclassificados comprovam
que os Estados Unidos jamais deixaram de monitorar a situação no Brasil,
e sua influência não ficou restrita ao golpe de 1964, avalia Dias: “A
violência praticada pelo Estado foi percebida pelos americanos. E eles
sabiam que não eram casos isolados perpetrados por alguns ‘desajustados’
dentro do sistema repressivo montado. Por mais que recriminassem os
excessos da ditadura, pareciam satisfeitos com o papel desempenhado pelo
Brasil na contenção aos movimentos de esquerda, dentro e fora das
fronteiras”.
*Uma versão desta reportagem foi
originalmente publicada na edição 859 de CartaCapital, com o título "Os
cães de guarda da ditadura"
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