Brasil profundo
27.11.2012 13:39
Drama e sonho ribeirinho
Por Maria Emília Coelho*
“Saí sete horas. Quando foi três da tarde baixaram de voadeira com gasolina e tocaram fogo”. Três anos se passaram e dona Joana não esquece o dia 16 de dezembro de 2009. Pela manhã, foi despejada com o marido e o filho da terra onde morou por mais de 40 anos. Horas depois, soube que sua casa na comunidade Mato Azul havia sido incendiada. Hoje, a senhora de 58 anos não tem onde morar, vivendo de favor. “Quando acaba o movimento na dona Raimunda coloco a minha rede para dormir. Nos expulsaram, sem direito a nada”.
Dos mais de 700 ribeirinhos previstos, apenas cerca de 150 ribeirinhos comparecerem na entrega dos TAUS pela equipe da SPU. Fotos: Maria Emília Coelho
O TAUS é emitido pela SPU, através do projeto “Nossa Várzea: Cidadania e Sustentabilidade na Amazônia”, e se aplica exclusivamente às comunidades tradicionais. Sem esse documento que regulariza a sua posse, o ribeirinho não tem acesso às políticas públicas de crédito e benefícios, como a aposentadoria rural. Entre os seus objetivos está o combate à grilagem de terras e à exploração da mão-de-obra em condições análogas ao trabalho escravo. Também visa prevenir os conflitos fundiários que se alastram na região sob a omissão do Estado.
Estima-se que cerca de 60% das terras do Amazonas sejam áreas de várzea. Dessas áreas, em torno de 70% são margens de rios federais. Desde 2010, a SPU realiza os trabalhos de cadastramento das populações ribeirinhas do estado. Manicoré é o quarto município onde acontece a emissão de TAUS.
Depois de muitos anos de espera, o ribeirinho conquista o tão sonhado documento que lhe dá a segurança da terra
No encontro de novembro, realizado no Centro Juvenil Salesiano da cidade amazonense, cerca de 150 ribeirinhos esperavam ansiosos a entrega dos TAUS pela equipe da SPU. Através de um termo de cooperação técnica, o órgão federal pediu o apoio da prefeitura para mobilizar os comunitários até a sede do município. A expectativa dos organizadores era entregar cerca de 700 termos. Mas, por falha na mobilização, menos de um terço dos ribeirinhos esperados estiveram presentes no evento.
Dona Joana e os ribeirinhos da comunidade Mato Azul, que sofrem com ameaças e a queimas de suas casas e roçados por conta de conflitos com fazendeiros
Comunidade Mato Azul X Fazenda Ribamar
Esse é o caso da comunidade Mato Azul da dona Joana, do seu Benedito, e de 17 famílias que todos os meses pagam renda ao suposto proprietário da área. João Ricardo dos Reis Moraes e sua família alegam que o lugar, chamado por eles de Ribamar, é de “terra firme”, e que têm, dessa forma, títulos válidos pelo Instituto de Terras no Amazonas (ITEAM). “Herdeiros” dos coronéis de barranco, e influentes na política local, os fazendeiros são acusados de explorar e expulsar os ribeirinhos.
Em Manicoré, municipio às margens do Rio Madeira, ribeirinhos recebem o documento da SPU que regulariza a sua ocupação nas várzeas dos rios federais da Amazônia
Indignado com o despejo da sua vizinha, a dona Joana, e testemunha do incêndio em sua casa, o agricultor Benedito Aparecido Rodrigues, liderança comunitária, iniciou em 2009 a luta para a regularização da área. Em maio de 2010, encorajou os moradores a fazerem um abaixo assinado denunciando as ameaças e agressões que estavam sofrendo.
No ano seguinte, foram realizadas diversas reuniões entre a comunidade e a SPU para tratar do assunto. Ações de cadastramento na área estavam previstas para o final do ano passado, mas não aconteceram. Os donos dos títulos ganharam tempo e acionaram a justiça local, alegando o fim do contrato de arrendamento. No dia 22 de agosto de 2011, Benedito e sua família foram despejados.“Nossos objetos estão até hoje lá jogados. Fogão, motor, tudo enferrujando.”
Benedito conta que, nessa época, tirava de 50 a 80 cachos de banana por corte. Era a comida que levava para suas quatro crianças todos os dias. Hoje, está sem trabalho e vive da ajuda de alguns vizinhos da comunidade. “Meu cacau está produzindo mas não posso tirar porque a área está em litígio. Quero saber por que não posso tirar a minha plantação e o cara lá pode tirar para ele o que eu plantei para os meus filhos? Qual o motivo para a gente ser tão humilhado?”
O funcionário da SPU, Alexandre Leme, disse aos ribeirinhos da comunidade Mato Azul que um juiz do estado do Amazonas, que deu a reintegração de posse aos fazendeiros, julgou em jurisdição federal onde não deveria ter julgado, e que o caso foi levado à AGU (Advocacia Geral da União). “Para nós, foi pedido a caracterização da área. A gente fez e enviou à AGU. Agora o processo está correndo”.
Direito de ribeirinho
João Raimundo Correia da Silva também se sente injustiçado. Seu roçado foi cadastrado pela SPU, mas ele não recebeu o TAUS durante o evento porque mora em Boa Nova, outra comunidade ribeirinha de Manicoré em situação de litígio. “Estamos pagando renda em uma terra que não é para pagar renda, que é da União. Somos filhos de seringueiros, nossos pais nasceram e se criaram aqui. Nós não temos direito nenhum?”
Já o casal Alcilene Cunha de Figueiredo e Francinaldo Rodrigues da Costa está feliz porque vai levar o TAUS para sua casa na comunidade Porto Seguro, a cinco horas de barco de Manicoré. Assim que o receberam, foram a uma papelaria plastificá-lo. “Temos que cuidar do nosso documento. Morávamos em lote dos outros, né? E faz muitos anos que ameaçam tirar a gente de lá, mas agora não vão mais”, contou a mulher com o filho no colo e o sorriso de quem conquistou a segurança da terra. “A gente planta banana, cacau, milho, macaxeira. Tudo dá no nosso roçado.”
Para a engenheira agrônoma com especialização em Ciências do Ambiente, Francivane Fernandes, assessora técnica do Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), ONG que atua no sul do Amazonas para a capacitação e o fortalecimento das populações ribeirinhas, o TAUS é um instrumento valioso para esses pequenos agricultores e extrativistas terem acesso à recursos para melhorar e aumentar as suas produções. “Manicoré é hoje o maior produtor de banana e de melancia do estado. Essa é uma oportunidade de desenvolvimento econômico sustentável para o município.”
Dos 704 TAUS levados à Manicoré, apenas 232 foram dados aos moradores das várzeas. Os termos voltaram para Manaus e serão entregues em outra data ainda não marcada pelo órgão federal. Segundo a equipe da SPU, desta vez, para facilitar a vida dos ribeirinhos, os documentos serão entregues em dois polos próximos às comunidades. Enquanto isso, segue a tensão dos conflitos fundiários à beira do Rio Madeira. Desde 2006, ao menos nove pessoas foram mortas por denunciarem os crimes ambientais e de propriedade da terra no Sul do Amazonas – a última, na semana passada. Ciente dos riscos, dona Joana disse que nunca mais voltou para a visitar a sua terra e sua comunidade. “Se têm coragem de queimar minha casa, têm coragem de me matar”.
*Maria Emília Coelho é jornalista, documentarista, e assessora de comunicação do Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB).
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