sábado, 29 de dezembro de 2012


No Mato Grosso do Sul, guaranis-caiovás e fazendeiros vivem mundos opostos
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Nicolas Bourcier
No Mato Grosso do Sul, os guaranis reivindicam o direito de retomar suas terras ancestrais. Um conflito com os proprietários de terras que simboliza o abandono ao qual foram largados os povos indígenas do Brasil.
Até o vento parou. Os homens ajeitam as penas em suas cabeças e se dirigem para as fileiras de arame farpado que cercam a comunidade. Eles carregam bastões de madeira esculpida. Os arcos estão retesados. Tudo pronto para romper a monotonia de uma linha de frente onde o lodo vermelho-sangue se mistura e gruda na pele. Ao longe, um veículo dá meia-volta antes de desaparecer na paisagem. A guerra não será para agora.
Passo Piraju é uma terra atormentada e sob tensão, um dos lotes mais antigos reocupados pelos índios guaranis-caiovás nos terrenos dos pecuaristas e cultivadores de soja do Mato Grosso do Sul. Uma ocupação ilegal, segundo os fazendeiros, em conluio com as autoridades locais.
O local tem a característica das vilas de pioneiros: as construções em tijolo e madeira, inacabadas ou abandonadas, se avizinham a barracas de plástico e galhos finos. Vinte famílias decidiram se instalar ali em 2002, para reivindicar o direito de recuperar parte de suas terras ancestrais. "Porque as reservas nas quais estamos confinados se tornaram pequenas demais, superpovoadas e muito violentas", resume em um só fôlego Carlito de Oliveira, conhecido como Jeguakai, cacique de Passo Piraju, que voltou para se assentar junto aos seus.
Desde então, o movimento das "retomadas" se ampliou. Trinta e três lotes de terra hoje são ocupados pelos guaranis-caiovás nessa parte do sudeste brasileiro. Alguns chegaram a se instalar no Estado vizinho do Paraná, onde há cerca de vinte deles. Todos remetem a uma imagem da mais completa pobreza. Todos cercados na prática pelos fazendeiros que reinam quase sozinhos na região, um dos polos agrícolas mais prósperos do Brasil.
Dois mundos envolvidos em um conflito que simboliza de maneira brutal o abandono no qual se encontram os povos indígenas. Quase todos os dias eles sofrem perseguições, racismo e represálias. Segundo o relatório anual sobre violência elaborado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi, próximo dos movimentos católicos progressistas), mais de 500 índios foram mortos no Brasil desde 2003.
O Estado mais violento, de longe, é exatamente o Mato Grosso do Sul, com uma média de mais de 55% dos assassinatos perpetrados no Brasil. Quase 70%, se contarmos a partir de 2007. A eles se somam o dobro de tentativas de homicídio de qualquer outro lugar, e isso em total impunidade. Fazendeiros raivosos, capangas e pistoleiros contratados, protegidos por influentes autoridades locais: a maior parte dos autores de crimes, como lembra a ONG Survival International, nunca comparece aos tribunais, apesar das promessas do governo.
"A situação dos guaranis-caiovás no Mato Grosso do Sul é uma das piores tragédias já vividas por um povo indígena no mundo," se revolta Deborah Duprat, procuradora em Brasília. "E a situação só piora com o tempo."
Dos 8 milhões de hectares de terras que eram ocupadas pelos caiovás na região dois séculos atrás, somente cerca de 300 mil hectares lhe são concedidas hoje. Ou seja, menos de 1% do território atual do Mato Grosso do Sul. É pouco para uma população indígena de 42 mil indivíduos, a maior do país. Sobretudo se comparado com os 12% de terras brasileiras ocupadas pelo conjunto das comunidades indígenas, estimadas em 897 mil indivíduos segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Índios guaranis-kaiowás brigam por seus territórios em Mato Grosso do Sul

Foto 2 de 33 - Desde crianças, os índios dependem de doações dos brancos em Dourados, cidade a 224 Km de Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul Mais Ademir Almeida/UOL
Essa marginalização dos guaranis-caiovás começou nos anos 1920, quando as autoridades decidiram delimitar suas terras para abrir aos colonos os amplos espaços virgens do território. Em 1928, os limites de oito reservas de 3.600 hectares cada uma foram demarcados no Mato Grosso do Sul, com o objetivo de ali reagrupar todos os índios do Estado.
A partir dos anos 1940, durante o regime do presidente autocrata Getúlio Vargas (1930-1945 e 1951-1954), o exaltador do Estado Novo e da integração étnica, esses espaços foram sendo progressivamente corroídos por todos os lados. O processo se acelerou com o aumento dos rendimentos agrícolas e a venda de lotes de terra a um número cada vez maior de pequenos agricultores vindos da cidade.
"As reservas tiveram seu tamanho reduzido ano após ano enquanto suas populações não paravam de crescer", ressalta a Irmã Elisa, militante discreta da causa indígena e membro de uma pequena congregação católica em Dourados, segunda maior cidade do Estado, situada 30 quilômetros ao norte de Passo Piraju. Ela acrescenta: "Somente pouco mais da metade dos territórios indígenas foram ratificados pelo governo. É pouco, sobretudo quando se sabe que a restituição de terras confiscadas pelos fazendeiros é um processo longo e penoso."
À sombra da prosperidade do Mato Grosso do Sul, as reservas se tornaram então acampamentos superpovoados nos quais dominam miséria e desnutrição, com suas parcelas de agressões, violência doméstica, alcoolismo e mais recentemente até o vício em crack, como em Jaguapiru, trazido pelo desenvolvimento urbano de Dourados.
"Se não fizermos nada, estaremos condenados", diz Valmir Orsavala, 24, ocupante de Passo Piraju. A agricultura intensiva e as fazendas industriais nos privam de terras. Em Brasília, alguns parlamentares estão preparando uma lei para explorar sem entraves os recursos de nossos territórios. E aqui os figurões estão pressionando para que os estudos de demarcação de terras indígenas sejam refeitos!"
Orsavala fez parte desses jovens indígenas empregados temporariamente como lavradores rurais mal pagos nas plantações de cana de açúcar. Um trabalho duro, de condições de segurança e sanitárias deploráveis e que ocupava mais de 80% dos guaranis-caiovás adultos até alguns anos atrás, quando a mecanização programada do setor de açúcar e etanol veio ameaçar toda essa atividade.
"Depois do subemprego, os índios estão sendo enviados sem dó para essas reservas onde a ligação com a terra foi rompida, a economia indígena foi desestruturada e sua cultura, desintegrada", explica Flavio Machado, coordenador do Cimi em Campo Grande, capital do Estado. "Eles sofrem uma dupla violência: externa e interna". Os caiovás são detentores de um dos mais altos índices de suicídios no mundo, se não o mais alto.
Segundo o levantamento do Cimi, 176 Guarani se suicidaram no Mato Grosso do Sul entre 2003 e 2010, ante 30 índios no resto do Brasil. O mais jovem deles tinha 9 anos. Mais de 1% da população Guarani-Caiová tirou a própria vida voluntariamente. Quase um suicídio a cada 5,4 dias. Números que poderiam chegar ao dobro, segundo outras fontes.
No filme "Terra Vermelha", disponível na internet e cuja trama aborda esse devastador fenômeno, é possível ver um chefe indígena engolindo um punhado de terra diante de um fazendeiro branco atônito que foi lhe dizer que ele explorava os campos "para alimentar os homens". Uma cena que Vanildo Pireira, 14, poderia repetir várias e várias vezes.
Instalado com 47 famílias caiovás em Kurusu Amba, um lote de terra com menos de 10 hectares situado a alguns quilômetros da fronteira paraguaia, ele vê, estação após estação, as máquinas agrícolas que vêm demarcar repetidas vezes os limites da fazenda logo em frente à porta de sua cabana de madeira e terra batida. "Quinze dias atrás, um avião veio aspergir o solo com produtos químicos. Todas nossas galinhas morreram", ele conta.
Situada entre um filete de rio cinzento e os campos que se estendem a perder de vista, a comunidade está sob pressão tanto dos proprietários de terras quanto de tensões internas. Quatro índios foram feridos a balas por desconhecidos nos últimos meses. Quinze dias atrás um jovem guarani-caiová de 12 anos matou a facadas um outro membro do vilarejo, de 17 anos, por uma dívida de drogas.
Uma outra fonte de conflito, mais silenciosa, também viria da presença de um missionário evangélico que chegou de São Paulo para morar ali há quase um ano. "Várias famílias o seguem, embora ele rejeite nossos rituais e costumes," lamenta uma moradora do local. "É mais uma fonte de discórdia."
Atrás de uma fileira de árvores, um pequeno cemitério chama a atenção por sua aparente tranquilidade. Algumas cruzes, roupas dos defuntos colocadas em sacos plásticos, e flores também. "É importante para nós voltarmos para a terra de onde viemos", murmura Vanildo Pereira.
Um privilégio que Valmir e Genito Gomes não têm. Os dois irmãos nunca puderam enterrar os restos mortais do pai deles, o cacique Nisio Gomes, morto em uma noite de novembro de 2011 por uma dezena de homens encapuzados que levaram o corpo dele em sua picape.
Desde então, as 70 famílias da comunidade de Guaiviry, situada um pouco mais ao norte, junto à fronteira, estão em estado de choque. E sendo vigiadas. Quase 28 fazendas compartilham a paisagem dos arredores. "Eles podem acabar com todos nós, mas não iremos embora", afirma Genito Gomes. "Pode se matar um corpo, mas não a terra."
Sentada ao lado, Teresa Marilha concorda. Com "mais ou menos" 90 anos, ela é a decana do local. "Estamos aqui porque sempre vivemos aqui. Nasci aqui, à beira do rio. Essa terra é de nossos ancestrais, sou prova disso". Ela ergue a cabeça, como se pedindo para o céu testemunhar. O vento subitamente voltou a soprar.
Tradutor: Lana Lim

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