Sociedade
Especial - 50 anos do golpe
Golpes, perseguições, feridas e cicatrizes
Os camponeses que
viviam ali, naquele sertão da Bahia, jamais haviam testemunhado tamanha
barbárie. O que se passou dentro de casa foi um suplício familiar
por Thaís Barreto — publicado 23/03/2014 07:40
Comments
Arquivo Pessoal
Preso político? O que é isso? Eu nasci em
1984 e devia ter uns 6 anos de idade quando escutei essa denominação em uma
estranha conversa dos meus pais. Meu pai teve o cuidado de me convencer que eu
não entenderia naquele momento. Guardei aquele dia como se fosse hoje e, aos
poucos, a expressão ganhou contornos. Lembro de ter acompanhado diversos
jornalistas indo entrevistá-lo lá naquele sertão, em Brotas de Macaúbas, na
Bahia. Por que tantas entrevistas? Carlos Lamarca, José Campos Barreto
(Zequinha), Iara Iavelberg, Otoniel Barreto, Luiz Antônio Santa Bárbara, quem
eram essas pessoas?
A grande oportunidade para entender melhor
veio quando eu tinha 9 anos, pois foi lançado o filme Lamarca dirigido
por Sérgio Rezende com base no livro Lamarca: O Capitão da Guerrilha
escrito pelos jornalistas Emiliano José e Oldack Miranda. Nas cenas do filme
vizualizei um cenário de guerra no entorno e dentro da casa dos meus avós no
povoado de Buriti Cristalino. Aqueles torturadores assassinos buscavam Lamarca e
Zequinha. Um era capitão do Exército que recusou servir à ditadura saindo em
1969 e o segundo era um operário que esteve sob tortura do Dops de São Paulo por
estar à frente da greve da Cobrasma, em 1968. Os dois passaram a viver na
clandestinidade e suas vidas se cruzaram decisivamente.
Foram cassados como bichos para serem
exterminados, e para isso o Exército brasileiro e toda sua estrutura
civil-empresarial de colaboração armou a famigerada Operação Pajussara, liderada
pelo então major Nilton Cerqueira e pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury.
Primeiro mataram Iara Iavelberg que havia fugido com Lamarca mas estava em
Salvador no dia 20 de agosto de 1971. Outra equipe seguiu para localizar o
paradeiro de Lamarca e Zequinha. Cercaram a casa no povoado de Buriti Cristalino
fazendo todos que estavam dentro reféns no dia 28 de agosto de 1971. Jamais
esquecerei a descrição que ouvi do meu pai, Olderico Campos Barreto, sobre a
tortura que viveu. Arrancaram todas as suas unhas enquanto indagavam sobre o
paradeiro de Lamarca e Zequinha. Ele não entregou nem essa nem nenhuma outra
informação. Esse local foi um campo de concentração da ditadura brasileira que
marcou a violência contra camponeses no Brasil. Há um documentário recente
intitulado Do Buriti à Pintada: Zequinha e Lamarca na Bahia, que contém
importantes depoimentos das vítimas da época inclusive das cidades vizinhas. A
família Barreto abrigou o capitão em sua pequena propriedade pois este foi um
dos homens respeitáveis do Exército que resolveu lutar ao lado de quem era alvo
do plano de opressão e exclusão.
Os camponeses que ali viviam jamais haviam
testemunhado tamanha barbárie. O que se passou dentro da casa foi um suplício
familiar. Santa Bárbara que também estava escondido tombou com um tiro na cabeça
dentro da casa. Meu avô, José de Araújo Barreto, de tanta tortura gritava.
Otoniel, seu filho de 19 anos, ficou desesperado e chegou a atirar em um soldado
(mas não acertou) para tentar encerrar aquela dor provocada no seu pai. Saiu
correndo e foi alvejado. Caiu morto. Sérgio Paranhos Fleury disputou com os
outros soldados a autoria da morte. Olderico foi torturado na frente de toda
população. Levou tiros, teve seus ferimentos como ponto de tortura onde jogaram
produtos químicos e o costuraram sem nenhuma anestesia. Ao menos no seu rosto e
na sua mão posso tocar as cicatrizes. No dia 17 de setembro de 1971 Lamarca e
Zequinha foram assassinados no povoado de Pintada que pertence ao município de
Ipupiara. No local foi construído o Memorial dos Mártires onde se deseja
sepultar os filhos da terra mortos pela ditadura. Se for desejo da família, os
restos mortais de Lamarca também podem ser transferidos.
A ditadura fez vítimas e ela sempre
renegará. Na Bahia, o coronelismo já configurava suficientemente um regime
opressor, e 1964 veio apenas para intensificar as dificuldades de vida das
populações isoladas ou esquecidas país afora. Adelaide Campos Barreto, conhecida
como dona Nair, minha avó, para mim também foi vítima. Ela recebeu como um golpe
a informação contida em um telegrama em julho de 1968 o qual dizia que Zequinha
estava preso e sofrendo por participar da greve. A ferida resultou em um câncer
de mama, e dona Nair faleceu em 1970. Soube depois pelo bispo dom Luiz Flávio
Cappio que meu avô relatou que chegou a se ajoelhar no chão agradecendo a Deus
por ela não ter presenciado tamanha violência naquela casa em 1971. Me
perguntei: que dor é essa que foi provocada capaz de suplantar a dor que o
próprio já carregava por ter se despedido tão cedo da sua esposa a quem tanto
amou?
Neste ano de 2014 completarão 50 anos do
golpe e há quem diga que tudo isso que passou com a minha família e tantas
milhares de outras não merece sequer ser lembrado. Enquanto isso, aquelas
cicatrizes que toco no rosto e na mão do meu pai simbolizam uma ferida que
inevitavelmente se abriu em mim. Nunca consegui visitar o túmulo dos meus tios
durante as idas no cemitério do Campo Santo em Salvador, onde foram enterrados,
pois não há nenhuma identificação e os registros antigos não estavam lá. Os
assassinos privaram a família de ter por perto os restos mortais dos entes
queridos e os levaram. Meu pai estava preso e não lhe foi permitido acompanhar o
enterro. Espero que a existência da Comissão Nacional da Verdade possa
proporcionar a exumação dos corpos de Zequinha e Otoniel e os devolva para a
família ao menos cultuar a lembrança desses exemplares brasileiros.
Na foto, Zequinha Barreto e Lamarca mortos
(Crédito: Arquivo Nacional)
*Thaís Barreto é
jornalista, membro da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos
e assessora da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. Seu
relato é parte de uma série de
artigos que o site
de CartaCapital
publica sobre os 50 anos do golpe-civil militar de
1964
Nenhum comentário:
Postar um comentário