50 anos do Golpe
O inaceitável risco da igualdade
Quando se
delineia, mesmo ao longe, a chance da demolição da casa-grande e da senzala, a
vocação golpista dos privilegiados se estabelece
Arquivo Agência O Globo
Como Moniz Bandeira logo adiante escreve, o governo
dos Estados Unidos teceu, de caso pensado ou de crença própria (de americanos
tudo cabe esperar), um magistral enredo de pura ficção para mobilizar, debaixo
de sua bandeira, diplomatas, espiões, mestres em tortura, tropa e até um
porta-aviões. Segundo os ficcionistas de Washington, o Brasil preparava-se para
enfrentar uma guerra civil, provocada pela insurgência de comunistas de
inspiração cubana, como se sabe canibais de criancinhas. Os reacionários
nativos, instalados solidamente na casa-grande, engoliram mais um best
seller ianque, e lhe acrescentaram capítulos decisivos, com a colaboração
dos editorialistas dos jornalões.
Soprava o entrecho que a subversão ensaiava sua
marcha e a intervenção militar era recomendada, ou melhor, indispensável. A
invocação prolongou-se in crescendo desde o instante em que o
vice-presidente João Goulart assumiu o posto abandonado por Jânio Quadros, o
tragicômico homem da renúncia, antes contida enquanto durou o imbróglio
parlamentarista, enfim em tons de desespero quando Jango mandou às favas o
sistema de governo inventado para cerceá-lo e retornou ao presidencialismo. A
história prova que Goulart era um democrata sincero, nenhuma das suas atitudes,
do começo ao fim do mandato constitucional, demonstra o contrário. Quanto à
marcha da subversão, nunca a vi passar.
Outra marcha desfilou diante dos meus olhos
estupefactos, a “da família, com deus e pela liberdade”. Dirigia então a redação
de Quatro Rodas, instalada na capital paulista em um prédio da Rua João
Adolfo, esquina da Avenida 9 de Julho. Na tarde do 19 de março de 1964, dia de
São José, o resignado padroeiro da família, deixei a redação e andei não mais
que 500 metros para alcançar a esquina da Rua Marconi com Barão de Itapetininga,
onde estacionei para assistir ao desfile.
Vinham na frente os sócios do Harmonia, clube mais
elegante de São Paulo, acompanhados por seus fâmulos, mucamas, aias, capatazes,
colonos, jardineiros, motoristas, cocheiros, massagistas, pedicuros, manicures
etc. etc. Em seguida trafegaram os sócios do Clube Paulistano (sinto por eles,
menos faustosos que o Harmonia), também seguidos por seus serviçais, em número
menor e mesmo assim expressivo. Depois passaram os demais, em ordem decrescente,
ditada ou pelo clube frequentado, ou pelo bairro da residência. Na rabeira, os
remediados, irrefreáveis aspirantes a inquilinos da casa-grande. Sobrevoava o
cortejo o governador Adhemar de Barros, de helicóptero em voo quase rasante,
desfiava o rosário guardado na algibeira do colete.
A “marcha da família”, capaz de incomodar o
Altíssimo e negar a liberdade que diziam defender, revela a verdadeira natureza
do golpe de Estado que precipitou a ditadura. A qual é, ou não é. Como a de
Hitler, de Mussolini, de Stalin. E não excluamos Franco, ou Salazar, e os
fardados de quepe descomunal em toda a América Latina. No caso de Fidel Castro,
é natural que tenha merecido uma avaliação especial por parte de quem viveu a
condição de relegado ao quintal dos Estados Unidos. De minha parte, confesso,
não me agradam personagens que atravessam a vida de uniforme.
Irrita, de todo modo, que seja comum ler ou ouvir a referência
à ditadura militar brasileira. Quiséssemos ser precisos, afirmaríamos ditadura
civil e militar. A bem da verdade factual, há de se reconhecer que nos começos
de 1964 não seria missão impossível atiçar os nossos fardados, e na tarefa o
governo americano, e os privilegiados do Brasil, por meio dos seus porta-vozes
midiáticos, saíram-se à perfeição. A tal ponto que eles próprios, jornalistas
inclusive, acabaram por acreditar no enredo criado em Washington, pelo qual a
guerra civil batia às portas. Houve até civis graúdos que estocaram armas nos
porões e nas adegas.
Calibrados para a intervenção, os militares cumpriram
o seu papel de gendarmes da casa-grande, de exército de ocupação, e com notável
aparato partiram para a refrega de fato impossível. A renúncia de Jânio Quadros
deveria ter sido lição profícua. Este sim, ao contrário de Jango, pretendia
provocar a reação popular e errou dramaticamente. No mesmo dia, o Santos jogava
em terra estrangeira e o povo comprimia-se nos bares para ouvir a irradiação.
Reação houve, delirante, aos gols de Pelé.
A 1º de abril, ou 31 de março, que seja, vieram os
blindados e os canhões, Carlos Lacerda armou-se de fuzil e fez do Catete uma
trincheira. O golpe se deu, porém, com a imponência de um corriqueiro desfile de
7 de setembro. Houve um ou outro episódio de violência aqui e acolá,
enfrentamento nunca. As calçadas não ficaram manchadas de sangue. Os militares
executaram o serviço sujo com a eficácia e o risco de quem vai à guerra sem
inimigo. Do outro lado, havia idealistas, sonhadores, nacionalistas,
esperançosos de um futuro melhor para um país que amadurecia lentamente demais
para a contemporaneidade do mundo.
O Brasil padeceu de várias desgraças ao longo de cinco
séculos. A colonização predatória, a matança dos aborígenes, três séculos e meio
de escravidão, uma independência sem sangue, uma proclamação da República
perpetrada por obra de um golpe de Estado militar, a indicar o caminho
convidativo daí para a frente. O entrecho de desgraças, entre elas a carga mais
deletéria representada pela escravidão, cujos efeitos permanecem até hoje,
influenciou profundamente a história do século passado. Dominada em boa parte
por Getúlio Vargas, um estadista, decerto, ao pensar um Brasil moderno, e também
ditador no primeiro período da sua atuação, o que não depõe a favor.
O golpe de 1964, reforçado na sua
essência daninha pelo golpe dentro do golpe de 1968, uma vez imposto o Ato
Institucional nº 5, é a última das desgraças. A mais recente, e de repercussões
duradouras. Leiam, por exemplo, o texto de Vladimir Safatle, mais adiante. A
derrubada de Goulart assinala o enterro de um processo que levaria o Brasil bem
mais longe do que se encontra hoje. Não imagino, está claro, a chegada da marcha
da subversão para impor uma ditadura também, embora de esquerda, mesmo porque as
lideranças disponíveis, os cassados daquele momento, estavam longe de mirar
neste alvo. Digo lideranças como o próprio Jango, Brizola, nem se fale de
Juscelino.
Mudanças sensíveis se dariam aos poucos, caso não
ocorresse uma reviravolta armada, no espaço de uma ou mesmo duas décadas, a
partir das chamadas reformas de base, encabeçadas pela reforma agrária,
indispensável em um país em que 1% da população é dona de cerca de 50% das
terras férteis. As circunstâncias favoreceriam o surgimento de partidos
autênticos em lugar de clubes recreativos de uns poucos sócios, a representarem,
quase todos, os interesses do privilégio. Baseado no parque industrial paulista,
o mais desenvolvido de todo o Hemisfério Sul, brotaria um proletariado
consciente da importância e da força do seu papel, e portanto sindicatos dignos
deste nome.
O golpe de 1964 aconteceu exatamente por causa da perspectiva
renovadora que apavorava os senhores. Chega a ser ridículo invocar a ameaça da
guerra civil, como alega Célio Borja na entrevista à Folha de S.Paulo, e
como alegam muitos outros como ele, convictos de que é da conveniência do Brasil
ser satélite de Tio Sam, bem como manter de pé a casa-grande e a senzala, da
qual vale convocar eventuais marchadores. Os senhores escravocratas do século
XXI ainda se movem ao sabor das crenças de 50 anos atrás (ou de 500?), certos do
velho axioma, melhor prevenir do que remediar. Daí a oposição sistemática aos
governos Lula e Dilma. Aquele já fez alguns estragos, esta é sua criatura, donde
para ela a berlinda é automática.
Sempre que ouço pronunciar a palavra redemocratização
padeço de um sobressalto entre o fígado e a alma. É justa e confiável a
democracia em um país que ocupa o quarto lugar na classificação dos mais
desiguais do mundo? Os senhores do privilégio querem é uma democracia sem povo e
um capitalismo sem risco. De qualquer forma, à democracia não basta promover
eleições periódicas, mas algo é mais grave, nesta instância do pós-ditadura: o
espírito golpista ainda lateja nas entranhas da sociedade, como vocação
inapagada e impulso natural.
De um lado há a fé em
um recurso extremo, porém disponível ad
aeternitatem, como aspiração latente em caso de necessidade.
Do outro lado, o medo, enraizado nos demais, mal acostumados. Raros os
brasileiros que, ao se arriscarem a vislumbrar a possibilidade de uma situação
de agitação social, não temam a solução golpista. Há quem suponha que, a esta
altura, exageram em temores. Há também quem sustente que basta pensar para
tornar o pior admissível.
Agrada-me relembrar Raymundo Faoro, que sustentava a
competência da direita, tranquila vencedora em 1964. A respeito discutíamos. Na
minha opinião, o nível da competência é determinado pela qualidade do
adversário. O que me impressiona, isto sim, é a ausência de adversários à altura
desta direita tão, como direi, medieval, responsável pelo brutal oximoro: um
país grande por natureza e forte por vocação se vê tolhido por uma elite
prepotente, arrogante e ignorante. Deste ponto de vista, a ditadura brasileira
tem, aquém ou além da tragédia, ou a despeito da tragédia, um aspecto patético.
Quantos perseguiu e até matou e agora são, ou seriam, tucanos convictos,
inequivocamente bandeados para a reação?
Com a premissa de que o acaso é entidade insondável,
faltou uma esquerda capaz de acuar os donos do poder, como se deu em muitos
outros países habilitados à democracia e à civilidade. Para ser de esquerda
atualmente é suficiente empenhar-se a favor da igualdade, conforme recomenda
Norberto Bobbio, cujo ensaio a respeito Fernando Henrique leu sem proveito
algum. Nesta quadra, pretensamente de redemocratização ou, pelo menos, de
democratização, o Brasil não conta, na quantidade necessária, com batalhadores
da igualdade. Salvo melhor juízo.
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