A República Democrática do Congo (RDC) tem recebido crescente atenção da mídia brasileira, graças aos desafios humanitários no país e ao protagonismo que o Brasil, por intermédio do general Carlos Alberto dos Santos Cruz, vem adquirindo na Missão de Paz da ONU local (Monuc, hoje Monusco), a maior e mais cara empreitada de paz das Nações Unidas. Não obstante, a realidade do maior território da África Subsaariana, há décadas marcado por conflitos, é desconhecida e pouco explicada. Hoje o país vive uma proliferação de grupos armados, violência endêmica e caos humanitário, devido, sobretudo, às heranças da história colonial e pós-colonial e dos anos de guerra. Há esperanças, porém, no potencial de estabilidade político-econômica e no estabelecimento de novas parcerias internacionais.
 
A realidade da RDC envolve alguns aspectos históricos. A primeira herança marcante foi a colonização belga. Embora a colônia representasse 80 vezes o tamanho da metrópole, esta deixou marcas profundas e nocivas. Entre elas, a forte exploração econômica – combinada com práticas cruéis de opressão da força de trabalho – e a instrumentalização de grupos étnicos para dividir e controlar a sociedade. Esses dois instrumentos engendraram constante dependência de recursos naturais e commodities (borracha, cobre, urânio, algodão, ouro) – exportados por redes viárias que buscavam mais o escoamento de produtos que a integração do território – e da exploração de etnias pelos interesses no poder. Entre as rivalidades fomentadas, destacam-se a entre os lunda, luba e lulua, no Sudeste, e a entre congoleses, banyar­wanda e banyamulenge (descendentes de tutsi e hutu de Ruanda), no Leste.
 
Outras heranças marcantes foram os conflitos internos pós-coloniais e as escolhas políticas de lideranças nacionais. Por outro lado, a colonização trouxe frutos positivos, criando uma das economias mais pujantes da África, sobretudo devido aos crescimentos agrícola e industrial. Esse potencial pós-independência (1960) foi prejudicado, temporariamente, pela guerra civil precoce, e, de forma mais permanente, pelas políticas presidenciais. No primeiro caso, além da incapacidade administrativa gerada pela insuficiência do sistema educacional colonial para os nativos, as divisões étnico-regionais resultaram em graves conflitos políticos, concretizados nos separatismos de Katanga e Kasai. As disputas nesses enclaves mineradores (de cobre/cobalto e diamantes, respectivamente) envolviam rivalidades entre luba, lunda e lulua e foram posteriormente suprimidas com apoio da ONU. Além disso, a Crise do Congo (1960-1965) aglutinou rivalidades próprias da Guerra Fria, como o assassinato do primeiro-ministro do país, Patrice Lumumba, em 1961,com participação belga e apoio da CIA, e a explosão de movimentos revolucionários no centro e no leste do país, suprimidos com apoio dos EUA e da Bélgica. A guerra causou a morte de 200 mil pessoas e o seu fim foi marcado pela ascensão do militar Joseph-Désiré Mobutu (1930-1997) com apoio ocidental (EUA, França e Bélgica).
 
No segundo caso, importa que o regime de Mobutu (1965-1997) foi caracterizado por tentativas iniciais de reconstrução do Estado e de apelo à nacionalidade congolesa (adotou nomes africanos e mudou o do país para Zaire). O então Mobutu Sese Seko perseguia a ideia do Zaire como uma potência africana, procurando realizar o milagre econômico com investimentos em infraestrutura, escolas militares, saúde e educação. Todavia, à medida que o controle se cristalizava em suas mãos e gerava reações internas, a prioridade tornou-se a personalização do poder e a desestruturação de concorrências (exército e burocracia). A maioria dos postos em empresas públicas foi passada a amigos e parentes confiáveis, fixando-se uma “economia de roubo” (cleptocracia). A situação foi agravada pelo acúmulo da dívida externa na década de 1980, que contribuiu para o colapso das contas públicas, a desvalorização monetária, a hiperinflação, a pauperização generalizada e o crescimento da economia informal. Nos 32 anos de seu governo, Mobutu teve o mérito duvidoso de transformar a segunda maior renda per capita da África Subsaariana (em 1963) na pior de toda a região (em 1997), enquanto acumulava para si uma riqueza maior do que o PIB do país (estimada em 14 bilhões de dólares).
 
A crise engendrada pelo regime de Mobutu foi agravada por dinâmicas do fim da Guerra Fria. As novas rivalidades entre EUA e França por influência na África e as pressões internacionais para a liberalização política do Zaire combinaram com as tensões nos países vizinhos Ruanda e Burundi. Estes viviam uma crise originada no sistema colonial (também belga) de exploração das diferenças étnicas entre hutus e tutsis, que tomaram feições políticas e cada vez mais violentas no pós-independência. O genocídio de tutsis por parte de hutus em Ruanda, em 1994, fortaleceu o movimento armado tutsi liderado por Paul Kagame, que assumiu o poder no mesmo ano e, na prática, caçou hutus em vingança. Estes haviam buscado refúgio no leste do Zaire em meio a quase 800 mil refugiados. Mobutu (cujo último aliado era a França) era rival de Kagame e Museveni (apoiados pelos EUA) e financiou campos de treinamento hutus em seu território. Kagame, como resposta, articulou rebeldes ­liderados pelo guerrilheiro Laurent Kabila e por defensores da causa tutsi e, com Uganda e Burundi, iniciou guerra para depôr Mobutu. A Primeira Guerra do Congo (1996-1997) durou oito meses e resultou na ascensão de Kabila como líder nacional, apoiado por ocidentais e por Angola.
 
Entretanto, em poucos meses de governo, Kabila fez uma inflexão nacionalista, retomando o nome Congo, ordenando a retirada de militares ugandenses e ruandeses e não cumprindo as exigências externas de proteção dos tutsis banyamulenge. A resposta dos países vizinhos foi a articulação de uma nova invasão para uma vez mais destituir um líder rival congolês. Desta vez, contudo, o resultado foi longe do esperado. Os rebeldes estavam divididos e as forças de defesa foram auxiliadas pelo bloqueio de Angola, Zimbábue e Namíbia. A complexidade da Segunda Guerra do Congo, o número de países envolvidos e a alta mortalidade popularizaram a expressão “Guerra Mundial Africana”. A disputa foi de 1998 até 2002 e dividiu o território em diferentes ­regiões de ocupação, nas quais era praticada pilhagem de recursos naturais. O desejo de Kabila de obter vitória militar perante as forças invasoras, aliado ao desgaste de seus aliados, custou-lhe a vida. O assassinato do presidente, em 2001, sob condições obscuras, levou à ascensão de seu filho Joseph Kabila – o qual esteve mais aberto ao diálogo. A situação coincidiu com desavenças entre as forças agressoras e resultou na assinatura de acordos de paz em 2002, mediados pela África do Sul. A guerra acabou em 2003 com um governo de transição e a expansão da Monuc.
 
Os conflitos, porém, não cessaram. Grupos armados continuaram atuando no leste do país (FDLR, ADF e Mai-Mai, entre outros) e novos surgiram (LRA, CNDP, M23) graças a dois elementos principais. Primeiro, a incapacidade das forças de segurança de protegerem a população. Segundo, as falhas dos acordos de paz, que não envolveram todos os grupos e incentivaram a violência como forma de obter concessões políticas (cargos no governo e integração no exército). Outra lógica nociva é a interferência de países vizinhos. Se Uganda e Ruanda tornaram-se com o tempo aliados aparentes do governo de Kabila, executando operações militares conjuntas com o apoio da Monuc, hoje os vizinhos são acusados de patrocinar grupos armados no Congo, como o M23. Além disso, o governo central não cumpre a promessa de desmobilizar rebeldes de maioria hutu (FDLR) que foram aliados na Segunda Guerra e que são tradicionais rivais do regime de Paul Kagame. As forças de segurança congolesas, compostas de diversas facções insurgentes, também cometem atrocidades contra habitantes locais.
 
O povo é quem mais sofre com a guerra constante. Mesmo após o fim formal das conflagrações, em 2003, mais de 1,6 milhão de pessoas morreram. Aqueles que escaparam no leste do país aumentam o número de refugiados (186 mil), deslocados internos (mais de 2,5 milhões), miseráveis (menor PIB per capita do mundo: 400 dólares) e infectados por HIV/Aids (sexto caso mais problemático). Essa última situação é agravada pela prática do estupro, que, assim como a utilização de crianças-soldados, tornou-se instrumento dos grupos armados para abalar moralmente as comunidades e enfrentar a escassez de recursos. Em 2009, estimava-se que havia ocorrido mais de 200 mil estupros de mulheres e crianças desde 1998. Hoje, estudos menos conservadores somam até 400 mil casos anuais. Por outro lado, a escassez é compensada pelas milícias por meio da abordagem a civis (pilhagem e propinas) e da economia ilegal – comércio de recursos naturais que flui através de Uganda e Ruanda a portos no ­Quênia e na Tanzânia, com vistas a companhias globais na Ásia e na Europa.
 
No entanto, há motivos para ter esperança com relação à RDC. Fora da zona conflitiva do leste, o país está pacificado e a economia cresce mais de 7% ao ano com novos investimentos em transportes (parceria com chineses na construção de estradas e ferrovias) e energia (aliança com sul-africanos na geração de energia hidrelétrica e com italianos na exploração de gás e petróleo). Na política, apesar de Joseph Kabila manter-se no poder desde 2001, duas eleições já foram realizadas com suporte e reconhecimento internacional, o que não ocorria desde a independência. Ademais, além de esforços internacionais de ajuda humanitária (apoio a crianças, mulheres vítimas de abusos e refugiados e deslocados), a Monusco tem hoje maior comprometimento com a supressão dos grupos armados rebeldes, sobretudo em razão da liderança de países africanos, como a África do Sul, e do próprio Brasil. O general brasileiro Cruz, comandante da missão, já tem apoio da população e credibilidade mundial por auxiliar na bem-sucedida desmobilização do M23, que poderá se repetir com outros grupos. Importa, no entanto, pensar em reformas que foquem a construção de forças armadas competentes e responsivas. Além disso, ações para reintegrar a população na economia (emprego e renda) garantiriam, no longo prazo, a opção pela paz.
 
Nesses casos, os projetos de cooperação técnica do Brasil, já estabelecidos com países africanos, podem auxiliar esse parceiro a superar desafios históricos e ainda atuais.