terça-feira, 24 de dezembro de 2013

A nova classe média continua vasculhando lixo para sobreviver

Dona Rute vai na contramão de tudo o que diz as propagandas do governo sobre seus programas de transferência de renda.
por Joseh Silvapublicado 09/12/2013 12:39
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Dona Rute e a sua companheira Madona

Segunda-feira, 25 de novembro, por volta das 21horas. Um motoqueiro atropela uma cachorra de porte pequeno na Rua Antônio Ambuba, altura no número 110, Parque Munhoz, Zona Sul de São Paulo. A cachorra se chama Maria e saiu do “acidente”  com ferimentos pelo corpo e uma pata quebrada. O motoqueiro, que trabalha em pizzaria, alegou que o animal tentou derrubá-lo da moto. “Menino, por que você fez isso? Tinha a necessidade?”. Quem questiona é Rute de Carvalho, 49 anos, moradora da Vila Fundão, Capão Redondo.
Dona Rute é uma mulher simples. Não pela roupa que veste ou pelo modo de se expressar, mas por trazer em sua narrativa de vida uma sabedoria ancestral e ingenuidade infantil.  Nas palavras se mostra forte e decidida. Nas ações, enxerga-se uma mãe adotada por diversos filhos.
Do seu ventre nasceram  seis filhos – um foi assassinado, a menina mais velha casou-se e com ela reside quatro, que ela sustenta vasculhando lixo. Mas no dia a dia, em sua casa – que ela insiste em dizer que “tem mel”, ou andando junto de dona Rute, há sempre, pelo menos, cinco crianças.
São essas crianças que a acompanham nos lixos, em condomínios na região do Campo Limpo, em busca de materiais recicláveis e/ou comida. “Saio de casa às sete da noite e fico até umas duas da madrugada”. Além das crianças, está sempre acompanhada de um grupo de mulheres e cachorros; estes, sua paixão. “Já tive cem cachorros. Eu amava demais um que se chamava Nam”.
Os cachorros não só servem como um tipo proteção, mas são vistos e tratados por ela como filhos, membros da família.
Assim como há muitas pessoas que fazem de tudo por seus cachorros, existem aqueles que não querem e nem conseguem conviver com animais. Os cães que acompanham dona Rute pagam um preço alto por andar com alguém que sobrevive do lixo. A cachorra Maria pagou com uma pata quebrada. Outros, com a vida. Se fosse uma “Madame” caminhando com seu animal, o motoqueiro pensaria bem antes de jogar a moto pra cima dela. Mas como Rute e seus cães são frágeis e vulneráveis, ele não hesitou.
Não foi a primeira vez que seus cachorros sofrem por conta da fúria dos humanos. “Perto da minha casa morava um taxista e ele não gostava do latido dos meus bichinhos, então ele contratou quatro meninos para matar meus cachorros”. Nam, o cachorro que dona Rute mais gostava, a acordava todos os dias. “Quando ele me via de manhã, latia ‘pedindo’ pra mim subir. Ai teve um dia que ele não latiu. Fiquei preocupada e fui procurar ele. Andei bastante, achei a corrente dele perto de um mato e quando fui mais pra frente, meus cachorros estavam todos enforcados nas árvores”. Os animais contratados pelo taxista, mataram dez cachorros que ela cuidava.
Na favela onde ela mora, é chamada por algumas pessoas de "louca"; por outras, de mendiga. Pela maioria, de "guerreira".  “Por que as pessoas me chama de louca? Eu não sou louca. Eu gosto de trabalhar assim. Eu fico alegre quando estou mexendo no lixo. Acho roupa, sapato, comida. Teve um dia que achei quatro frangos congelados. Levei pra casa”.
Dona Rute, socialmente,  vai na contramão de tudo que vem sendo pregado pelo governo federal em suas propagandas de programas de transferência de renda. Ela não recebe o Bolsa Família, não tem direito à moradia digna, só entrou em hospitais para trabalhar como faxineira e, apesar de achar a “escola fraca”, faz de tudo para manter os filhos lá. Momentos de lazer e cultura não fazem parte da sua rotina. O único serviço da Assistência Social é para o filho de 15 anos que está em Liberdade Assistida (LA).
Desamparada socialmente, Rute apelou. Escreveu uma carta para o programa da o Gugu pedindo roupas, comida, uma “reforminha” na casa de dois cômodos e móveis. Quando questionada se já teve alguma resposta, ela olha para baixo, abraça a cachorrinha Madona, em seu colo, suspira e solta: “é... as vezes acho que isso é mentira. É a gente que tem que fazer pra gente mesmo. O senhor não acha?”
Atualmente, o que vem deixando Dona Rute preocupada é o Natal. Esta é a data em que mais se consome no ano. Momento em que toda a quebrada se prepara para as festas, e, para esse rito, é necessário roupas novas. É o momento de mostrar quem tem.
Ao mesmo tempo que a comunidade é acolhedora, ela discrimina: “Os amigos deles que andam com sapato novo ficam se mostrando pra eles, e eu não tenho como comprar. Só falo pros meus filhos não ligarem pra isso. É besteira”.   Lamenta e pergunta se não há alguém que faz doações de roupas e calçados.
Para cuidar dos cachorros, filhos e da própria vida,  Rute só depende dela mesma. Apesar de ter força e vigor de uma jovem, reclama: “me sinto uma velha de 80 anos”. Mas ela não está só, recebe o apoio de algumas pessoas e comércios: “uma mulher que mora no prédio me ajuda com o veterinário, quando acontece algo com os cachorros. O homem da padaria, lá no [Jardim] Rosana, me dá pão, as vezes vem um pessoal aqui e me dá até sexta básica.” É nessas situações, em que ela mostra realmente quem é a Dona Rute. Ela pega tudo que ganhou e divide com os vizinhos.

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