segunda-feira, 30 de abril de 2018

Dinamarquesa

Em Copenhague, os anarquistas ditam a ordem

por José Gabriel Navarro — publicado 30/04/2018 00h30, última modificação 27/04/2018 17h18
Na capital dinamarquesa, uma comunidade autônoma ocupa um antigo distrito militar há quase 50 anos e define suas próprias regras

Luis Antonio Carrasco/Creative Commons
Christiania
A entrada da "cidade", hoje ponto turístico de sucesso
Em Copenhague, entre as ruínas do muros de uma antiga base militar, ergue-se Christiania. Em um dos principais acessos, um grande aviso esclarece: “Quem ultrapassar as muralhas deixará a União Europeia para trás e entrará em outro território, uma nação à parte desligada das divisões geopolíticas tradicionais”.
Desde os anos 1970, quando a base deixou de fazer sentido para o governo dinamarquês, a região é ocupada por anarquistas, na esteira de movimentos da contracultura que se espalharam pelo mundo em meados da década anterior.
“Muitos ainda enxergam Christiania como área rebelde e desregulada no coração da capital, onde a ilegalidade e o comércio de drogas prosperam”, afirma Chris Holmsted Larsen, professor da Universidade de Roskilde. “Mas eu, como a grande maioria, a entendo como algo singular, criativo e valioso no meio de uma sociedade altamente regulada e um tanto quanto entediante.” 
Christiania autodeclarou-se cidade livre em 1971. Desde então, a convivência entre os moradores do enclave e os habitantes de Copenhague viveu altos e baixos, até se tornar mais pacífica a partir de 2007, quando foi assinado um acordo entre a zona anarquista e o governo, definindo termos para o pagamento de contas de luz e água e impostos, a coleta de lixo e o repasse de imóveis, entre outros temas práticos da vida em sociedade.
Leia também:
Ainda assim certos problemas persistem. Há pouca transparência e muita dúvida sobre os escolhidos para viver numa das propriedades coletivas. Sem falar no intenso comércio de drogas, que gera acusações de que o crime organizado domina a região. Entre os muros, o consumo de maconha é onipresente e livre.
“Há muitas contradições. Tem gente que mora lá e vive uma vida profissional fora da comunidade e sem qualquer envolvimento do ponto de vista político”, reconhece João da Mata, doutor em psicologia e em sociologia que trabalha com uma terapia anarquista chamada Soma há 30 anos e visitou Christiania na década de 1990.
“Mas a potência do local reside na resistência em se manter por tanto tempo como espaço de convivência e produção à margem do Estado e do capitalismo dinamarquês. Ela tem provado ao mundo ser possível viver numa sociedade sem autoridade constituída, sem delegação de poder por meio de mandatos e eleições. A cidade livre da Dinamarca criou um experimento social definitivo contra a ideia hegemônica de que os indivíduos se autodestruirão se não existir um controle estatal.”
Acácio Augusto, professor do Depar-tamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo, concorda: “Experiências longevas como esta mostram que a anarquia não é uma utopia, um projeto de futuro, mas uma prática do presente, um horizonte alargado diante do fatalismo estreito da vida sob o Estado e o capitalismo. É a efetiva realização da revolução permanente. Não se trata de dominar os meios de produção, mas de autogerir a vida, inventar outros meios para a vida livre”.
Christiania
Não há poder público em Christiania. As propriedades e as decisões são coletivas (Kieran Lynam/Creative Commons)
Independentemente do contraste entre a ordeira Dinamarca e a libertária comunidade instalada em sua capital, ou mesmo das disputas legais e burocráticas que eventualmente ocorrem entre elas, Christiania talvez seja tão bem-sucedida e duradoura justamente por ter surgido num contexto cultural conhecido por primar pela organização.
“Ela tem suas próprias regras, determinadas pelos seus conselhos administrativos. E os dinamarqueses têm, lenta, mas decisivamente, passado da hostilidade à aceitação positiva do direito de Christiania existir”, observa Larsen.
“As decisões tomadas sempre por consenso podem parecer difíceis para nós, brasileiros, acostumados ao poder da maioria sobre a minoria”, diz Da Mata. “Mas, para os habitantes de lá, o consenso só é impossível quando existe autoritarismo, quando alguém tenta impor uma opinião sem dar abertura para outras ideias aparecerem e até prevalecerem como melhor solução.” 
Os inúmeros grafites, os produtos à base de cannabis, as bicicletas com caçambas acopladas – produzidas pelo núcleo lésbico da ocupação e populares em toda a Copenhague –, e os shows grátis ao ar livre, com público cada vez maior, parecem indicar que, se há mesmo algo de podre no Reino da Dinamarca, não se encontra em Christiania.

Nenhum comentário:

Postar um comentário