Cinema
Zama, entre 'Cem Anos de Solidão' e a 'A náusea' de Sartre
por Jotabê Medeiros
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publicado
29/04/2018 00h15,
última modificação
27/04/2018 18h04
Chega ao Brasil o novo filme da diretora argentina Lucrecia Martel, um tratado sobre a inanição existencial

O brasileiro Matheus Nachtergaele (Vicunã) e o mexicano Daniel Cacho (Zama), num duelo de gigantes.
Dolorosa alegoria da relação entre colonizadores e colonizados, o filme argentino Zama estreia no Brasil no dia 29 com uma evocação de grandes aventuras do cinema e da literatura. Há um tanto de Cem Anos de Solidão e do Quixote.
Outro tanto de Aguirre, a Cólera dos Deuses. Algumas cenas podem lembrar Fitzcarraldo. Tem até certo sabor de O Incrível Exército de Brancaleone.
Mas a indiferença e a apatia do personagem principal, Diego de Zama,
puxado de um romance do escritor argentino Antonio di Benedetto, de
1956, parecem mais conectadas a "A náusea" de Jean-Paul Sartre.
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Vida em suspenso em um território de vidas em suspenso, a
existência de Diego de Zama é o veículo ideal para o quarto filme da
provocadora e rebelde cineasta argentina Lucrecia Martel, diretora dos
premiados O Pântano (2001), A Menina Santa (2004) e A Mulher Sem Cabeça (2008). Zama
acaba de ganhar o grande prêmio da 30ª edição do festival Cinélatino de
Toulouse (sul da França) e foi aclamado no Festival de Veneza.
Longe de ser uma artista moralista,
Lucrecia não lança um olhar sociológico ou histórico específico sobre a
América do Sul colonial e a saga de Zama. Sua opção é pelo
existencialismo. Ela constrói cenas de fabulosa dramaticidade, insemina
significados e trabalha nos interstícios dos diálogos, dos
enfrentamentos. Di Benedetto examinava o que chamou de “inadequação do
destino” na vida de seus personagens.
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Ambientado na América Espanhola de 1790, possivelmente
Assunção, narra a história de um magistrado da Coroa espanhola que,
deslocado como autoridade para a terra nova, sonha em voltar para a vida
de salamaleques e privilégios da metrópole. Mas o tempo passa e o rei
nega sistematicamente os pedidos de regresso do corregedor.
Um tédio profundo acompanha sua aclimatação às regras
brutas da terra que administra, a espera infrutífera tornando-se um
abismo do qual o letrado Zama não faz questão de escapar. “Não posso
retratar negros e índios com precisão. Eu tento. Mas os brancos, sim. Eu
sou branca, conheço nossos pecados”, diz a diretora.
- "Não posso retratar negros e índios com precisão. Eu tento. Mas os brancos, sim. Eu sou branca, conheço nossos pecados" (Ian Gavan/Getty Images/Jaeger-Lecoultre/AFP)
Em São Paulo para promover o filme, Lucrecia Martel (que havia 9 anos não filmava) falou a CartaCapital.
As pistas de sua autoconfiança e independência a precedem, são
detectáveis de longe. Na sala de espera, um repórter de tevê reclamava
que ela não gosta de falar à televisão.
“Ela acha que fazemos perguntas
superficiais”, resmungou. Lucrecia não tem restrição a um veículo
específico, mas é rigorosa em relação à linguagem. Considera, por
exemplo, as séries de tevê como um retorno ao romance do século XIX.
“O que eu digo é que essas séries
dependem demasiadamente do argumento. Têm estrutura mecânica e
construções visuais e sonoras pouco interessantes. São coisas para
crianças. Vi poucas, mas, do que vi, só me aborrecem, não é uma posição
intelectual”, ela explica. Ao saber da controvérsia da recente série O Mecanismo, de José Padilha, a diretora é rápida em perguntar de volta: “Quem produziu?”
De posse da resposta, elabora sua postura. “Netflix
é uma empresa que quer ganhar dinheiro. Não importa o que vai mostrar. É
uma produção feita em um lugar que nunca nos favoreceu muito,
historicamente, e que fala para uma maioria predominantemente classe
média branca. Eles não pensam em Brasil, pensam só em dinheiro. Por
isso, vendem essas facilidades intelectuais.”
Sobre a série de Padilha, ela não viu, portanto não comentou, mas disse o seguinte: “Também não me parece que Tropa de Elite
seja uma produção que reflita de algum modo sobre o Brasil. Contém uma
afirmação sobre a maldade que haveria acerca da favela, da brutalidade
dos pobres. A pergunta é: por que esses diretores estão podendo fazer
coisas com tanto dinheiro? Porque são parte do status quo, o dinheiro vem fácil para eles”.
Essa seleção de discursos é parte de uma
estratégia de dominação na América Latina, analisa Lucrecia: a edição de
livros, a produção de filmes, de séries de tevê, tudo passa pela
legitimação de um pensamento. Essa contingência está presente em Zama.
A certa altura, o governador vai
procurar um escrevente para redigir uma petição para Zama e encontra o
rapaz imerso em manuscritos. Interroga-o, e este “confessa” que está
escrevendo um livro. “Um livro! Quem escreveria um livro aqui?”, brada o
governador, indignado.
A cineasta vê a indignação do governador
como uma desestabilização de alguém poderoso que presencia um momento
íntimo privado. “Trata--se de alguém fazendo algo por seu próprio
interesse. Nem se trata ali de uma defesa da propriedade privada pelo
governador, ele fica desestabilizado”, considera. “Por que o governo
combate artistas como nós? Porque denunciamos o que funciona mal. Porque
atores que não são os que o governo beneficia são incômodos.”
- O filme Mulher Sem Cabeça é outra produção que projetou uma cineasta única no continente
“Esse menino pode ser ele mesmo, Zama”, a
cineasta amplia o ângulo de visão. As falas são muitas e múltiplas, e
quase todas enfatizam esse mal-estar do exílio involuntário, exceto uma.
“Faço por vocês o que ninguém fez por mim. Digo não às
suas esperanças”, diz o espanhol Zama a seus captores cafuzos em uma das
cenas finais. O espanhol estava quebrando ali uma regra do colonizador
ao dizer a verdade, e, nesse sentido, a frase parece certamente uma
intervenção externa no filme.
A mão da artista. De fato, a frase, assume Lucrecia, é um
momento diferente daquilo ao qual ela está habituada. “Não sou muito de
frases”, diz, rindo, para em seguida explicar do que se trata (em uma
frase longa, passível de edição em um contexto de rotina, mas que pode
perfeitamente escapar a seu destino).
“É de fato um pensamento contraditório com a ideia do
colonizador. Se há algo que é comum a todas as culturas da nossa região é
que sempre colocamos a esperança em algo. ‘Hoje estamos mal, mas vamos
melhorar no futuro.’ É um pensamento muito branco: o tempo de suportar é
mais o presente, e logo será permitido que se volte a comer, a poder
dormir, a ter trabalho”, pondera.
“Mas, para os que não têm tudo isso, a esperança é um
suicídio. Esse é o pensamento colonial, e é um raciocínio que não vai
findar na América Latina. É o pensamento das classes dirigentes. A elite
é que pode pensar no futuro, porque pode aguardar no presente. Mas,
para os que estão em uma situação sem nenhum benefício, não se pode
esperar pelo futuro. Não há esperança, o agora é que há. Quando não há
como obter aquelas coisas através do trabalho, da saúde pública, da
educação, a única forma de obtê-las é pela violência. Então, para mim,
quando Zama diz essa frase, é porque é algo que somente a classe média
branca, na América Latina, pode pensar. Essa linha do tempo não está em
outros setores da sociedade. Quando se busca crer que a intervenção
ataca o problema da violência, o que se está atacando é justamente a
reação de quem não pode nem planificar o futuro. A classe média branca
não deixa nada para o futuro que não seja ela mesma. A ideia de futuro é
uma mentira com a qual se envenena permanentemente a sociedade. A luta de hoje para comprar
comida, um par de sapatos, um telefone, é minúscula ao lado da outra. A
outra te rouba o tempo e as perspectivas. A postergação do presente em
nome do futuro é violenta, pois o corpo vive no presente. Ninguém vive
no futuro.”
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