João Doria, o surfista do antipetismo
por Miguel Martins
—
publicado
12/10/2016 04h23
Pouco conhecido pelos paulistanos, Doria aproveita-se da rejeição da
população ao PT e de sua fortuna para se eleger no primeiro turno
Ricardo Bastos/FotoArena

"João Trabalhador", gente como a gente
Em uma prova do reality show O Aprendiz, em 2011, João Doria Junior, então apresentador da versão nacional do programa criado por Donald Trump,
colocou contra a parede um dos participantes na presença de uma
empresária espanhola do ramo de turismo. Doria recriminou o rapaz por
ter usado o nome da gestora para obter vantagens em uma prova da atração
televisiva.
Prestes a ser “demitido”, o equivalente a
ser eliminado do programa, o participante desculpou-se por utilizar
suas relações com a empresária para conseguir um simples contato
telefônico. Doria encheu a boca e disparou: “Este país só vai mudar
quando tiver ética, princípios”.
Nos últimos dez anos, Doria aderiu ao
proselitismo político por onde passou: do movimento Cansei, criado em
2007 para protestar contra o “caos aéreo”, responsabilidade atribuída ao
então presidente Lula, até sua eleição à Prefeitura de São Paulo pelo
PSDB no domingo 2, o empresário encarnou o antipetismo das elites brasileiras como poucos.
Doria conquistou 53% do eleitorado paulistano ao se apresentar como self-made man, o “João Trabalhador”, como celebra seu jingle
de campanha, o gestor capaz de levar a eficiência do setor privado para
a prefeitura paulistana, tal como Michael Bloomberg, dono de um império
midiático e ex-prefeito de Nova York.
Em meio a tantos rótulos fabricados pelo
tucano, talvez o mais convincente seja sua recusa em se considerar um
político e o esforço de demonizar os seus pares, sentimento cristalizado
na população brasileira.
Se em 2011 Doria pedia ética aos participantes de O Aprendiz, quando usavam suas relações para obter vantagens no universo corporativo, hoje ele é criticado por colegas tucanos por práticas semelhantes.
Em um texto publicado em seu blog no fim
de setembro, o tucano Alberto Goldman, ex-vice-governador de São Paulo e
atual vice-presidente do partido, o acusou de usar “todos os recursos
lícitos e ilícitos, operacionais e financeiros” para angariar votos nas prévias do PSDB
e condenou a atuação das suas empresas. “Não produzem qualquer bem ou
serviço diretamente, apenas estabelecem e ampliam relações entre
empresários e agentes públicos, atividade ilícita que se chama lobby.”
- A periferia tocou meu coração, diz o prefeito eleito (Foto: Ricardo Bastos/FotoArena e Jales Valquer/FotoArena)
No dia seguinte à publicação do texto de
Goldman, um grupo de tucanos autodenominados “peessedebistas autênticos”
lançou um movimento de apoio a Marta Suplicy,
do PMDB, que terminou em quarto na disputa. O vice da chapa da
peemedebista, Andrea Matarazzo, havia deixado o PSDB em março deste ano
após ser derrotado nas prévias do partido em São Paulo.
Antes de se filiar ao PSD, Matarazzo
chamou Doria de “piada pronta”. Durante a disputa interna, o vereador
chegou a pedir a impugnação da candidatura de seu correligionário ao
acusá-lo de ter cooptado militantes da legenda por meio de pagamentos
mensais de 2 mil reais.
O racha no partido ficou ainda mais
evidente em 24 de setembro, quando um terço dos integrantes da cúpula do
PSDB abdicou de seus cargos na executiva municipal em um movimento de
boicote ao então candidato. A vitória de Doria foi uma importante conquista do governador Geraldo Alckmin, padrinho político do empresário, que se fortaleceu na disputa interna para concorrer às eleições de 2018.
Em seu texto, Goldman escreveu sobre a
importância de se colocar “uma lupa” sobre Doria para conhecer melhor
seu caráter, consciente de que a ignorância de grande parte do
eleitorado sobre sua trajetória era o principal trunfo do empresário.
Seu jingle de campanha consolidou a imagem de self-made man, mas Doria carrega nas tintas ao lembrar as dificuldades de sua infância.
Seu pai, João Agripino Doria, era
marqueteiro, jornalista e político. Filiado ao Partido Democrata
Cristão, em 1962 elegeu-se deputado federal pela Bahia pelo Partido
Democrata Cristão. No Congresso, integrou a Frente Parlamentar
Nacionalista, que apoiava o então presidente João Goulart em seu
objetivo de implantar as reformas de base e nacionalizar setores da
indústria. Curiosa filiação para quem hoje defende um discurso
privatista sem limites.
Com o golpe de 1964, Doria pai foi
incluído na lista de punições do primeiro Ato Institucional aprovado
pelos militares e exilou-se com a família em Paris. Dois anos depois,
seu filho retornou com a mãe para São Paulo, onde a família instalou uma
fábrica de fraldas. Doria diz ter trabalhado a partir dos 13 anos no
negócio familiar.
Em seguida, conseguiu com a ajuda de seu
pai um estágio em um departamento de Rádio, TV e Cinema de uma agência
de publicidade. Se sofreu privações na infância e adolescência, elas
duraram pouco: em 1974, seu pai retornou ao Brasil como
diretor-comercial de uma empresa argentina exportadora de vinhos.
Doria deu início à sua carreira política
aos 26 anos. Foi indicado pelo então governador paulista Franco
Montoro, antigo correligionário de seu pai no PDC, para assumir a
Secretaria Municipal de Turismo de São Paulo.
Três anos depois, tornou-se presidente da
Embratur durante o governo Sarney. Além de transformar o jogador de
futebol Pelé em uma espécie de embaixador do turismo brasileiro, Doria
deu prosseguimento à estratégia da estatal de valorizar os corpos
femininos seminus nas praias como atrativo para os estrangeiros, prática
que impulsionou o turismo sexual no Brasil.
No início da década de 1990, o
ex-presidente da Embratur fundou o Grupo Doria, uma corporação de
comunicação responsável por publicações editoriais, marketing, eventos e
administração de bens. Dez anos depois, surgiu o Lide, ou Grupo de
Líderes Empresariais.
- Afilhado de Alckmin, prestigiado por ministro de Lula como Furlan, cicerone de Moro e FHC... Até no PSDB há quem defina Doria como lobista (Foto: Eduardo Knapp/Folhapress e Fred Uehara/Facebook Lide)
Já filiado ao PSDB, liderou a criação da
associação que conta com representantes de 1,7 mil empresas nacionais e
multinacionais. Segundo o Grupo Doria, a associação reúne representantes
de 52% do PIB nacional.
No início dos anos 2000, Doria passou a
organizar o Fórum de Comandatuba, no qual empresários, políticos e
celebridades isolam-se por alguns dias na ilha baiana para debater os
rumos do País e se divertir.
O evento divide-se entre palestras e
atividades lúdicas, entre elas, jogos de futebol, festas temáticas e
apresentações musicais. Em 2004, nomes como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e
Antonio Palocci, do PT, abriam mão das diferenças políticas e
engajaram-se nas atividades, para as quais sugeria-se sempre um traje
específico.
Com o auxílio de seu apito, Doria
acordava os convidados como um instrutor de colônia de férias. Em uma
festa, os convivas se dispuseram a usar fantasias inspiradas na série de
filmes Indiana Jones, entre eles Luis Fernando Furlan, ministro do Desenvolvimento de Lula.
Os petistas não parecem mais fazer parte dos seletos
convidados de Doria. Em 2015, o fórum priorizou FHC e ex-presidentes
conservadores da América Latina. Não poderia ser diferente: desde 2006, o
empresário passou a fazer campanha pública contra o PT. A fixação é
cada vez mais latente. Em sua primeira entrevista após ser eleito,
afirmou que visitaria Lula em Curitiba e levaria ao ex-presidente chocolates e um cisne.
Em 2006, Doria já não escondia sua
aversão ao presidente de origem pobre e nordestina. Durante uma palestra
promovida pelo Lide, o tucano fez uma pesquisa eleitoral informal para
averiguar quantos dos presentes votariam em Lula
na disputa contra Alckmin. Diante da negativa da imensa maioria,
questionou. “Como ele pode ser reeleito se o PIB não o quer?” O petista
terminou as eleições com mais de 60% dos votos no segundo turno.
No ano seguinte, Doria foi um dos
fundadores do Movimento Cívico pelo Direito dos Brasileiros,
autodenominado por seus integrantes de “Cansei”. Integravam suas
fileiras entidades e personagens que deram suporte ao impeachment
de Dilma Rousseff, entre elas, a Federação das Indústrias de São Paulo
(Fiesp) e a Ordem dos Advogados de São Paulo, além de artistas como
Ivete Sangalo, Hebe Camargo e Regina Duarte.
O primeiro ato do movimento foi
organizado para protestar contra “a corrupção” e a “falta de segurança”,
mas os gritos de “Fora Lula” foram o destaque. Com o objetivo de
protestar contra o “caos aéreo”, o movimento formou-se na esteira do
acidente de um voo da TAM, mas os organizadores chegaram a impedir
parentes de vítimas do acidente de subir ao palco para discursar durante
a manifestação.
O apetite político de Doria ganhou
força na atual década. Além do apoio de Alckmin, passou a se destacar
no partido ao desempenhar a função que melhor lhe cabe: tornou-se mestre
de cerimônias de jantares para líderes tucanos.
Em 2014, ele organizou um banquete para seu padrinho, com a
participação de Aécio Neves, então candidato à Presidência, FHC e
Serra. O encontro serviu para a organização de uma força-tarefa para
alavancar a candidatura de Aécio, à época terceiro colocado nas
pesquisas. Nos últimos tempos, o próximo prefeito de São Paulo passou a
paparicar o juiz Sergio Moro, convidado de mais de um evento do Lide.
Doria não contou apenas com o antipetismo, o discurso de
gestor competente e o desconhecimento do eleitorado para se tornar
prefeito. Com uma fortuna declarada de 180 milhões de reais, doou quase 3
milhões para si mesmo e contou com a amizade de empresários para
garantir o restante do financiamento.
Agora eleito, planeja a privatização do Centro de
Convenções do Anhembi, do Estádio do Pacaembu e do Parque do Ibirapuera,
além de preparar um pacote de Parcerias Público-Privadas. Embora afirme
que a situação da periferia “tocou” o seu coração, Doria não poderá
virar as costas aos seus amigos. Para quem se doutorou em estreitar
pontes entre representantes do PIB e políticos, a mudança de trincheira
só deve reforçar suas práticas, definidas como lobby até por alguns de
seus colegas tucanos.
*Reportagem publicada originalmente na edição 921 de CartaCapital, com o título "João surfista". Assine CartaCapital.
Nenhum comentário:
Postar um comentário