domingo, 23 de outubro de 2016

Serrano avalia participação da Justiça no enfraquecimento de governos democraticamente eleitos na região

Foto: Guilherme Santos - Sul 21
 
Jornal GGN - A nova acomodação dos poderes que compõe a democracia brasileira, e que está se repetindo por toda a América Latina, é a seguinte: Judiciário mais forte que Executivo e Legislativo, onde o primeiro "funciona como instrumento de legitimação de processo de impeachment e perseguição de adversários políticos", completa Pedro Serrano, jurista e autor do livro “Autoritarismo e golpes na América Latina – Breve ensaio sobre a jurisdição e a exceção”, durante uma entrevista ao portal Sul 21. 
 
Serrano, que também é professor de Direito Constitucional e Teoria do Direito da PUC de São Paulo, ressalta, ainda, que o Judiciário sempre atuou no controle das desigualdades sociais no país, agindo rapidamente para sufocar tensões nas periferias. "A figura do bandido, em geral, é identificada com a pobreza”, pontua. E, fazendo uma comparação com os golpes militares que suspenderam os processos democráticos na região por, pelo menos, duas décadas, Serrano afirma que hoje o judiciário substitui o papel dos militares daquela época.
 
 
Marco Weissheimer
 
“O que temos hoje no Brasil e na América Latina de um modo geral é a existência de um estado de exceção que governa com violência os territórios ocupados pela pobreza e onde o Judiciário funciona como instrumento de legitimação de processos de impeachment e de perseguição de adversários políticos. Essas medidas de exceção interrompem a democracia em alguns países e, em outros, mantêm um sistema de justiça voltado ao combate a um determinado inimigo, que é apresentado como bandido. A figura do bandido, em geral, é identificada com a pobreza”. A avaliação é de Pedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional e de Teoria do Direito da PUC-SP, que esteve em Porto Alegre na última semana participando de um debate com a professora de Filosofia, Marcia Tiburi, sobre autoritarismo e fascismo no século XXI.
 
Autor do livro “Autoritarismo e golpes na América Latina – Breve ensaio sobre a jurisdição e a exceção”, Pedro Serrano sustenta, em entrevista ao Sul21, que o sistema de justiça está substituindo o papel que os militares desempenhavam na interrupção de democracias na América Latina. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, assinala Serrano, fez uma declaração formal da exceção, dizendo que a Lava Jato estava lidando com questões de caráter excepcional e que, portanto, não deveria se submeter às normas gerais, ou seja, à lei e à Constituição. Para o professor da PUC-SP, essa foi uma declaração de suspensão da ordem jurídica em nome do combate a um suposto inimigo. “O que parece estar ocorrendo na América Latina é a substituição da farda pela toga”.
 
Sul21: Como nasceu a pesquisa que deu origem ao seu mais recente livro, “Autoritarismo e Golpes na América Latina: Breve ensaio sobre a jurisdição e a exceção”?
 
Pedro Estevam Serrano: O objeto fundamental dessa pesquisa foi identificar como são implementadas, na América Latina, medidas de exceção dentro da democracia. Eu comecei a lidar com o tema do estado de exceção em 2007. Antes disso, já me interessava o tema do Judiciário e da jurisdição em relação a esse tema da exceção. Apesar de vir da área do Direito Constitucional, estou trabalhando hoje, no Mestrado da PUC-SP, com Teoria da Decisão Jurídica. Pesquisando sobre esse tema, deparei-me com a possibilidade de a exceção ocorrer em uma decisão judicial. Neste caso, teríamos uma decisão judicial que, a título de aplicar o Direito, suspenderia o mesmo em nome do combate a um determinado inimigo.
 
Sul21: Em 2007, você já vislumbrava algum vestígio de medidas de exceção no Brasil?
 
Pedro Estevam Serrano: Não. Era um interesse mais teórico mesmo relacionado a uma leitura que Agamben e Benjamin fazem do conceito de exceção a partir da obra de Carl Schmitt. Com o surgimento do Estado Moderno, após a Idade Média, e da centralização do poder político no Estado, surge com força o conceito de soberania. Jean Bodin foi o primeiro autor a tratar isso de forma mais articulada e consistente, razão pela qual, muitos o consideram o fundador da ciência política. Bodin entende a soberania como um poder absoluto dos reis, que estabelece uma relação de servidão entre Estado e pessoa, com caráter eterno. A partir das revoluções Francesa e Americana ocorre a secularização do conceito de pessoa. Até então, ela era revestida de um caráter teológico, onde afirmava-se que todos somos filhos do mesmo Pai e, por isso, dotados de uma certa igualdade. As revoluções burguesas secularizam essa noção, trazendo para cada ser humano, pelo simples fato de ser humano, certa proteção jurídico-política, um conjunto de direitos mínimos reconhecidos pelo simples fato de alguém ser humano.
 
O pensamento autoritário, pré-iluminista, não deixa de existir por conta disso e passa a propor outra forma de soberania absoluta, que consiste em dizer mais ou menos o seguinte: em épocas de paz e tranquilidade, é correto ter esse sistema de direitos como forma de governança social, mas, quando há a ameaça de um inimigo, ou um cataclismo natural, pode ser necessário afastar o Direito para garantir a sobrevivência do Estado e da sociedade. A Constituição de Weimar, de 1919, chamava isso de estado de exceção. Até então, esse tema era pensado principalmente no âmbito da guerra, do conflito entre estados. O inimigo era, fundamentalmente, outro Estado que poderia atacar o meu Estado. Esse elemento está presente em todas as constituições contemporâneas, inclusive a brasileira que prevê estado de sítio e estado de defesa.
 
Carl Schmitt trouxe essa noção do regime jurídico da guerra para o plano interno, para a relação entre Estado e pessoa, criando essa figura da soberania absoluto a título de atender uma demanda de segurança da sociedade. O Estado nazista acaba se tornando o grande paradigma desse modelo. Hitler assumiu o poder em 1933. Três meses depois, ocorre o incêndio do Reichstag. Hitler acusa os comunistas de ter provocado o incêndio e, para combater esse inimigo, declara o estado de exceção, suspendendo os direitos. É interessante notar que, durante a ditadura hitlerista, a Constituição de Weimar não deixou de vigir. Hitler não negou a Constituição. Ele simplesmente suspendeu seus direitos fundamentais.
 
Sul21: Isso foi feito por meio de qual instrumento?
 
Pedro Serrano: Por meio de um ato legal, uma espécie de decreto, aprovado pelo Parlamento. Isso fornece certo paradigma para o que vão ser as ditaduras no século XX. Elas serão governos de exceção, ou seja, ocuparão o poder com uma estrutura de soberania absoluta, numa relação de servidão com a população em geral, suspendendo os direitos de todos, a título de combater o inimigo. Isso foi feito sempre acompanhado do discurso da provisoriedade. A ditadura brasileira e outras ditaduras latino-americanas apresentam, todas elas, esse discurso. Segundo ele, a ditadura duraria pouco tempo, até que o inimigo fosse derrotado. Depois disso, retornaria a normalidade democrática.
 
Nestes governos de exceção, ocorre a suspensão de direitos, em algum nível, de toda a sociedade. O direito à livre expressão nas ditaduras latino-americanas foi suspenso de plano para toda a sociedade. Se alguém fosse identificado como inimigo, passava a ter o seu direito à integridade física e à própria vida suspenso. O inimigo, neste caso, não era identificado com nenhuma etnia ou num grupo social específico. O comunista podia ser branco, negro, pobre ou rico.
 
Com a queda do Muro de Berlim, em 1989, ganhou força a ideia de que era preciso ter um discurso universal democrático. A esquerda passou a adotar a democracia como um valor estratégico e a direita conservadora também passou a ter um discurso democrático. Segundo a linha de pensamento desenvolvida por Agamben, a partir daí, ao invés de termos governos de exceção, passamos a ter medidas de exceção no interior da democracia. Um exemplo disso é o Patriot Act, aprovado nos Estados Unidos após os atentados de 11 de setembro de 2001. É uma lei que autoriza o uso da tortura, que suspende, portanto, todo o direito à integridade física, para combater um inimigo muito bem localizado numa etnia e numa religião: a muçulmana. A sociedade como um todo manteve o uso de seus direitos. Em um primeiro momento, a medida de exceção atingiu mais especificamente um grupo da sociedade. Depois passou a atingir outros setores também. O mesmo se deu com as leis antiterroristas na Europa.
 
Então, no interior de regimes democráticos ocidentais passaram a ocorrer medidas de exceção. Aqui na América Latina, a conclusão a que cheguei a partir da pesquisa que realizei em Honduras, Paraguai e na Venezuela é que o agente da exceção – aquele que a sociedade, ou aquilo que chamo de ralé, atribui a função de instaurar a exceção – é o sistema de justiça, ou direta ou indiretamente apoiando alguma medida do parlamento. Essas medidas de exceção têm sido produzidas em dois sentidos: interromper a democracia em alguns países e, em outros, manter um sistema de justiça voltado ao combate a um determinado inimigo, que é apresentado como bandido. A figura do bandido, em geral, é identificada com a pobreza.
 
Isso faz com que tenhamos um estado de exceção permanente, vivendo em conjunto com o estado democrático de direito, que governa os territórios ocupados pela pobreza através de, no caso brasileiro, uma força de ocupação territorial que é a PM. A PM não é uma polícia. Ela é armada e estruturada como uma força de ocupação territorial. Você vai em qualquer região de periferia de uma grande cidade e tem a sensação de estar em um território ocupado onde não se pode mais circular em determinados horários e onde há restrições ao livre pensamento em determinadas situações. Se você é suspeito, pode ser torturado e morto. Em resumo, é um território onde toda a população que vive nele está sujeita a uma exceção permanente.
 
Agora, mesmo nos territórios governados pelo Estado de Direito, o que tem se observado na América Latina é a produção de medidas de exceção para perseguir oponentes políticos, o que se aplica também a Venezuela.
 
Sul21: Na sua avaliação, esse é um fenômeno novo ou é a expressão de uma tendência mais antiga na América Latina? A relação do Judiciário brasileiro com o golpe de 1964 não guarda semelhança com o que estamos ver acontecer agora?
 
Pedro Serrano: A figura da medida de exceção é antiga, não só na América Latina, como na história humana. A presença desse tipo de medidas em regimes democráticos não é nova. O que ocorre hoje é que ela passa a ser estruturante, passa a ser um modo para produzir autoritarismos na democracia. O Judiciário sempre teve um papel conservador, exercendo uma certa tutela dos interesses das elites em praticamente todos os países do mundo. O que é interessante, no caso da América Latina, é que ele passa a ter um papel novo na sua história, assumindo a condição de uma espécie de poder moderador, um controlador da democracia para garantir que ela não extravase seus limites. Esse tipo de mecanismo de controle sempre existiu na história humana.
 
A Constituição não nasce com a ideia que temos dela hoje, como um documento que traz o que há de melhor numa sociedade estabelecido na forma de direitos. As constituições americana e francesa foram formas de controle dos avanços da revolução. Logo que ocorreu a independência dos Estados Unidos, houve a produção de legislações em seus estados membros, antigas colônias, em benefício de pequenos produtores, pequenos agricultores, devedores. A elite americana entrou em pânico e produz uma Constituição pra conter esse ímpeto e centralizar mais o poder. Na França foi pior ainda. Só podia votar quem tivesse patrimônio ou renda. Acho que é por isso que Marx vai falar na democracia burguesa. Era isso mesmo. A classe trabalhadora não votava.
 
Hoje nós temos a introdução de algumas medidas concretas como forma de contenção da democracia na América Latina, amparadas pelo Judiciário ou praticadas por ele. Em Honduras, em 2009, a decisão de afastar o presidente Manuel Zelaya foi do Judiciário. O presidente foi afastado do cargo por uma ordem judicial, mas essa ordem foi executada pelo Exército e não pela Polícia como deveria ser. Como se tratava de uma ordem liminar, eles deveria ter apresentado o preso ao juiz. Ao invés disso, as forças armadas expulsaram Zelaya do país, contrariando um dispositivo expresso da Constituição que proíbe a expulsão de hondurenhos do país e impedindo o direito de defesa dele. Essas medidas são tão agressivas à Constituição que, depois que o mandato de Zelaya acaba, a Suprema Corte reconhece a ilegalidade e anula aquela ordem. Mas aí já tinha terminado o mandato.
 
No Paraguai, em 2012, a situação chega a ser pior. Quando da cassação do presidente Fernando Lugo, foram dadas duas horas aos advogados para conhecerem os documentos, a acusação e produzirem a defesa, algo materialmente impossível de se fazer. Os advogados foram à sala constitucional da Suprema Corte e obtiveram a seguinte resposta: como o processo de impeachment não é um processo criminal, Lugo não teria os mesmos direitos de defesa de um processo criminal. O impeachment seria semelhante a um processo administrativo. Eu pesquisei qual o processo administrativo mais simples no Paraguai. É a multa de trânsito. No caso de receber uma multa no Paraguai, você tem direito a 5 dias de defesa e de dez dias de recurso. Ou seja, é mais fácil você se defender de uma multa de trânsito lá do que defender um mandato popular.
 
Sul21: Naquela época, você imaginou que algo semelhante poderia ocorrer aqui no Brasil?
 
Pedro Serrano: Não, eu nem imaginava na época que iria acontecer o que aconteceu no Brasil. O que eu observei nestes fenômenos que ocorreram em Honduras e no Paraguai, medidas de exceção produzidas pelo Judiciário que se dão por meio de uma fraude. A fraude é uma ilegalidade com a roupagem de uma coisa legal. Há uma fraude democrática. A título de cumprir a Constituição e de realizar a democracia, o Judiciário e o Parlamento rompem com a Constituição e interrompem o ciclo democrático, suspendendo um direito fundamental da sociedade que é o direito à democracia. Assistimos ao uso do processo judicial, não com a finalidade de aplicar a ordem jurídica e o Direito Penal, mas sim de produzir efeitos políticos. É um processo penal de exceção, que busca combater o inimigo, desumanizando este com um rótulo e suspendendo os seus direitos como pessoa, impedindo que se defenda plenamente.
 
Então, o que temos no Brasil e na América Latina de um modo geral é a existência de um estado de exceção que governa com violência os territórios ocupados pela pobreza, amparado em um sistema de justiça que não pune os crimes cometidos contra os cidadãos. Só se fala de impunidade quando o crime é contra o Estado. E temos também o uso do Judiciário como instrumento de legitimação de processos de impeachment e de perseguição de adversários políticos. Na Argentina, conseguiram derrubar os índices de apoio a presidenta Cristina Kirchner por conta de problemas com o Judiciário. São medidas de exceção no interior de estados democráticos que governam os territórios dos incluídos. Não dá para falar hoje em dia que Lula é um excluído, mas ele representa a imagem dos excluídos na hipótese paranoica das elites.
 
Há uma conjuntura mais ampla que favorece esse tipo de postura. Ela se aproveita de um conforto histórico, pois, hoje, no mundo inteiro, há um crescimento de uma jurisprudência punitivista. Uma boa parte da esquerda, aliás, embarca nessa onda, sem ter consciência do que está fazendo. É uma jurisprudência fascista, suspensiva dos direitos das pessoas e que acredita no Direito Penal como a solução para todos os problemas, como um substituto das políticas públicas. Essa visão enxerga no Direito Penal uma capacidade de governo. Isso vem ocorrendo praticamente no mundo inteiro. É um retrocesso em relação aos avanços dos últimos duzentos anos no campo dos direitos fundamentais.
 
Sul21: Recentemente, um desembargador da Justiça Federal do Rio Grande do Sul justificou atitudes polêmicas e mesmo ilegais do juiz Sérgio Moro dizendo que ele está lidando com uma situação excepcional que também exigem medidas excepcionais. Essa parece ser uma defesa explícita do estado de exceção, não?
 
Pedro Serrano: Sim. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região tomou essa posição, citando uma decisão do Supremo que tratava de medidas de exceção e que cita Agamben. Na verdade, cita um trecho que Agamben que descreve o pensamento de Carl Schmitt, como se ele estivesse endossando tal pensamento, quando, na verdade, está criticando. O TRF4 fez uma declaração formal da exceção, dizendo que a Lava Jato estava lidando com questões de caráter excepcional e que, portanto, não deveria se submeter às normas gerais, ou seja, à lei e à Constituição. Ou seja, uma declaração de suspensão da ordem jurídica em nome do combate ao inimigo. O que parece estar ocorrendo na América Latina é uma substituição da farda pela toga. Esse estamento representado pelas carreiras públicas que compõem o sistema de justiça traz um pouco daquela imagem que os militares tinham, uma imagem de pureza, de ausência das impurezas da política, esse tipo de visão de mundo que habita a mentalidade daquilo que Hannah Arendt chamava de ralé.
 
Esse conceito de ralé é interessante. Em seu livro “As origens do totalitarismo”, Hannah Arendt tenta entender como o nazismo acabou tomando conta da Alemanha. Ela cria o conceito de ralé como substituto de povo. Um povo não é um mero aglomerado de pessoas em um regime democrático, mas sim um monte de gente que partilha uma certa visão de sociedade e certos valores. Em um regime democrático, a sociedade é um ente dividido, frágil e conflitivo, que resolve seus conflitos por mecanismos pacíficos, por meio da Política e do Direito. Já a ralé se reúne em torno de um líder ou de um estamento carismático e tem uma noção de dever ser, uma noção corretiva da sociedade. A sociedade deve ser pura e unida, não deve ter conflitos, mas sim ordem. Acho que no Brasil, hoje, o sistema de justiça ocupa essa função do líder carismático, chamando a ralé às ruas. A ralé clama por essa figura.
 

Sul21: No caso brasileiro, essa ralé está representada na classe média?

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