Jornal GGN – “É a repressão mais forte que eu me lembro dos últimos 30 anos”, assim descreveu o escritor e ex-vice-cônsul do Equador, Kintto Lucas, autor de mais de 25 livros, nomeado embaixador itinerante para a Integração do Uruguai na América Latina, em 2013, durante os governos de Mujica (Uruguai) e de Rafael Correa (Equador), e que acompanhou as rebeliões dos anos 90 e 2000 do movimento indígena no país, reconhecido internacionalmente por suas crônicas destas lutas sociais.
Em entrevista ao GGN, o especialista em relações internacionais do Equador narrou o cenário que vive o país, alcançando neste sábado o 10º dia de protestos com a forte truculência do aparato do Estado. A surpresa, para ele, é que nem o saldo de 7 mortos em apenas nove dias, que denotou o caráter de “rebelião ou insurreição” no país latino-americano, foi capaz de provocar alguma negociação de Lenin Moreno, uma novidade para a nação que já derrubou três presidentes, nas últimas duas décadas, por descontentamento popular com medidas econômicas.
Todas elas, entretanto, após as lutas e resistências populares – marcadas sempre pelo protagonismo do movimento indígena, acabaram sendo negociadas. “Os próprios presidentes terminavam já renunciando porque viam que a situação saia fora de controle, não podiam governar, mas também era uma maneira de não provocar mortes, que para o Equador isso é algo que as pessoas rejeitam, nunca se viveu como dessa forma, agora já são 7 mortos e Moreno com uma insensibilidade”, contou. Com isso, as muitas saídas possíveis para o país hoje estão difíceis de visualizar.
“O problema é que a repressão está sendo muito forte, uma das mais fortes que eu me lembro nos últimos 30 anos, uma repressão que, por isso, em 9 dias já conta com 7 mortos, centenas de feridos, centenas de presos, algo que não acontecia em outras manifestações, que também foram reprimidos nos anos 90, ou 2000, mas que não foram com a brutalidade que está sendo feita nestas circunstâncias”, disse.
Kintto explica que a reivindicação dos povos indígenas para que o presidente revogue o decreto que, entre outras coisas, acabou com o subsídio à gasolina no país que é predominantemente petroleiro, foi apenas a “gota d`água” de uma insatisfação crescente contra Moreno, nos últimos anos. Se, de um lado, o governo deixou de cobrar impostos de grandes empresários e do sistema financeiro, representando um impacto de mais de US$ 4 milhões de dólares no orçamento do país, o subsídio do combustível à população retornará à União somente pouco mais de US$ 1 milhão, exemplificou.
O decreto 883, que acabou com este subsídio, foi a expressão do Executivo do início do acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que na visão do ex-vice-cônsul, é inconstitucional, uma vez que devido à importância da medida deveria ter sido aprovado pelo Congresso equatoriano e, ainda, trata-se de um “pacto futuro” já fechado, que obriga o país a “seguir cumprindo outras ações que o governo se comprometeu com o FMI”. “A eliminação do subsídio aos combustíveis é a primeira dessas ações. Em seguida, começarão as privatizações, de hidrelétricas, a CNT, que é a telefônica estatal, e outras empresas públicas”, contou.
Mas a resposta das forças de Lenin Moreno, ao contrário de abrir o diálogo com a população, foi a de manter as repressões, na expectativa de que o “medo” fizesse os movimentos sociais aceitarem a guinada das medidas liberais no país. O nível de violência de hoje no Equador é comparado por Kintto Lucas ao período ditatorial.
“Depois da repressão que foi feita, de tantos mortos, feridos e a repressão segue, há ainda uma declaração de Estado de Exceção, de toque de recolher. É preciso lembrar que o toque de recolher no Equador não existiu desde a ditadura, 1979, quando a democracia retornou. Todas essas ações do governo também geram uma reação popular e no movimento indígena que pedem que, para dialogar, se revogue estas medidas. É impossível dialogar enquanto haja toque de recolher, estado de exceção e enquanto os ministros seguem incitando a violência. Então não é só a revogação do decreto”, explicou.
Por outro lado, o ex-vice-cônsul ressaltou que a falta de legitimidade de Moreno frente à população atingiu um nível tão alto que é preciso estar atento aos gestos dos demais setores da população, incluindo as Forças Armadas e a elite do país. E é com estes últimos que o presidente ainda vem conseguindo se sustentar, após ter negociado as privatizações para grupos econômicos de peso no país em troca de apoio.
“É preciso ver o que acontece nos próximos dias. O governo e as forças de repressão acreditavam que quanto mais forte a truculência, iam criar um temor no movimento indígena e nos manifestantes, então poderiam, talvez, ‘ganhar o jogo’, mas se equivocaram, porque a repressão o que está gerando é mais indignação e mais raiva na população, porque vem que enquanto as pessoas morrem eles não poderão manter as medidas econômicas como estão”, analisou.
Juntamente com os setores mais ricos, que tentam conter a derrubada de Lenin Moreno, clamando “por uma suposta paz contrária à mobilização”, o especialista diz que os meios de comunicação também vem exercendo um papel de “desinformação” e “deturpação” do que vem ocorrendo no país, com a repressão de jornais alternativos. Como exemplo, citou como a morte de um dos 7 que já contabilizam a história deste conflito foi divulgada nos grandes jornais: “Ao fugir, enquanto era perseguida pela polícia, uma pessoa caiu e morreu, ou seja, não é culpa daqueles que o perseguiam para jogar nela uma bomba, mas dela que caiu enquanto corria.”
“Somente ontem começaram a dizer que havia mortos, porque estavam os corpos e os caixões ai, então não tinham como ocultar. Mas sempre também de maneira tendenciosa”, completou.

As perguntar quais seriam as saídas para a atual situação do Equador, Kintto Lucas explicou que diante dos espaços públicos de governações ocupados pelos manifestantes e da mudança do Palácio de Governo de Quito à província de Guayaquil, “Moreno, na realidade, já não está mais governando” e que já se fala na queda do presidente. Para isso, seria preciso convocar eleições na chamada “morte cruzada”, que são votações na Assembleia e no Executivo, ou assumir o vice-presidente ou, ainda, o presidente do Congresso.
Enquanto isso, o resultado de feridos e mortos pela rebelião vai aumentando a cada dia, sem saídas claramente visíveis. “O presidente Lenin Moreno já se deslegitimou, sobretudo pela repressão. É um governo sem governar, porque primeiro que teve que mudar a Casa de Governo, de Quito a Guayaquil. E, embora o Estado de Emergência e a Constituição permitem essa mudança, já mostra uma debilidade de não poder governar no Palácio de Governo, com tudo o que isso significa, inclusive simbolicamente para as pessoas. (…) Na realidade, estamos em uma cefalia de governo”, concluiu Kintto Lucas.