Trabalho
Pressão extrema para vender
por Thomaz Wood Jr.
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publicado
12/10/2016 04h23
Práticas comerciais agressivas levam vendedores ao desespero e, em alguns casos, ao suicídio
GERJ

Mudanças das últimas décadas transformaram muitas
profissões em atividades comerciais, nas quais os indivíduos devem
vender serviços a si mesmos, todo o tempo
Em
uma manhã de julho, Ashish Awasthi, um indiano de 27 anos, casado, pai
de dois filhos, pegou sua moto, dirigiu até uma distante linha
ferroviária e jogou-se na frente de um trem. Deixou em seu bolso uma
nota, na qual explicava a razão de seu suicídio: não conseguia atingir as metas de desempenho definidas por seu gerente.
Awasthi era representante de vendas do
laboratório farmacêutico Abbott, multinacional norte-americana fundada
em 1828, presente em 150 países, com 74 mil funcionários e vendas
superiores a 20 bilhões de dólares por ano, uma empresa frequentemente
listada no ranking das mais admiradas. No Brasil, uma de suas iniciativas tem o slogan “abrace a vida”.
Em matéria publicada em 11 de agosto pelo New York Times,
Geeta Anand e Frederik Joelving contam a história de Awasthi e explicam
o contexto indiano de negócios. Segundo os jornalistas, a Índia, como
outros países em desenvolvimento, tem um mercado promissor, caótico e
competitivo. O contexto transforma posições como a que Awasthi ocupava
em alvo de enorme interesse e gera desespero entre os que a conseguiram e
correm o risco de perdê-la. Nesse ambiente, muitos gerentes induzem
seus liderados a vender a qualquer custo.
No centro da controvérsia que envolveu a morte de Awasthi encontram-se os health camps, eventos usados como ferramentas de vendas. Para
a Abbott e outras empresas, trata-se de uma atividade de
responsabilidade social corporativa, visando o bem comum. Tais eventos,
patrocinados por laboratórios farmacêuticos, focam doenças crônicas. Equipes de vendas fazem testes gratuitos, enquanto médicos oferecem diagnósticos também
gratuitos. Em troca, espera-se que esses médicos passem a prescrever as
drogas produzidas pelo patrocinador. Críticos condenam veementemente
tais práticas, por estimular diagnósticos errados e tratamentos
desnecessários.
A pressão por vendas gera comportamentos extremos: um ex-representante de vendas, ouvido pelo New York Times,
declarou ter se sentido tão pressionado por suas metas, que pagou
propina a um médico com seu próprio dinheiro para que este prescrevesse
as drogas do laboratório.
Awasthi conseguiu
seu emprego na Abbott em 2013. Progrediu rapidamente e ganhou um prêmio
de vendas em 2015. A família começou a colher os frutos da
prosperidade: novos amigos, vida social, um carro e um apartamento. Com o
consumo, vieram as dívidas. Em junho de 2016, um novo gerente de vendas
assumiu a área de Awasthi e as metas de vendas ficaram ainda mais
agressivas.
- A aceleração do ritmo de trabalho, a condição de permanente tensão e a busca por resultados a qualquer custo criaram um ambiente propício para patologias (ANPr/ SINDIAVIPAR)
A viúva de Awasthi recebeu da Abbott um
cheque de valor equivalente a 5 mil dólares pela morte do marido. Não o
aceitou. Cerca de 250 colegas do indiano, sensibilizados por seu ato
extremo, realizaram uma paralisação de um dia para protestar contra as
agressivas políticas de vendas da empresa.
Maria Ester de Freitas, professora da
FGV-Eaesp, analisando a questão dos suicídios nas organizações em um
ensaio científico publicado há alguns anos, observou que no Brasil os
casos de suicídio relacionados a condições de trabalho são tratados como
“meros casos administrativos” e envoltos em um manto de silêncio.
A especialista explica
que o trabalho é mais do que simples atividade remunerada; ele tem um
papel social de destaque, pois permite a construção de vínculos e o
desenvolvimento da identidade pessoal, social e profissional, além de
fortalecer a autoestima. Ocorre que as mudanças das últimas décadas
transformaram muitas profissões em atividades comerciais, nas quais os
indivíduos devem vender produtos, serviços e a si mesmos, todo o tempo.
As metas tornaram-se mais agressivas e os chefes estão cada vez mais
insatisfeitos.
A aceleração do ritmo de trabalho, a condição de permanente tensão,
a busca por resultados a qualquer custo, a ruptura dos relacionamentos e
o fim da solidariedade criaram um ambiente propício para patologias.
Pressionados pelo aumento do desempenho, empresas e profissionais passam
a caminhar por uma linha tênue e mal definida, que separa boas práticas
de comportamentos não éticos, a dedicação virtuosa ao trabalho da
submissão irrefletida a condições sub-humanas. O elefante está na sala.
Só não o vê quem não quer.
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