No debate político é importante dar nome às coisas. E dar-lhes o nome correto. Afirmar
que Bolsonaro é fascista é ir além de dizer que se trata de um
conservador, um reacionário ou um governante de direita. Isso ele é, mas
é perfeitamente possível ser direitista e não ter afinidade com o
fascismo. Muitos políticos de direita foram e são antifascistas.
Tampouco significa que é um autoritário no plano ideológico e capaz de
atitudes e comportamentos violentos. Sempre foi assim, como demonstrou
ao longo da vida, por meio de palavras e gestos, mas não se trata desse
aspecto aqui.
Há governantes autoritários
que não são fascistas. Em nossa história, tivemos chefes de governo
autoritários que não o eram, entre eles os militares ocupantes do poder
de 1964 em diante. Autoritarismo e fascismo podem até ser próximos, mas
são diferentes.
Em seu uso atual, as expressões
fascismo e fascista adquiriram sentido amplo, maior do que aquelas que
designam fenômenos políticos e ideias até semelhantes, como o nazismo, o
salazarismo e o franquismo. Estes, contudo, são conceitos de aplicação
específica e referem-se a casos históricos particulares, enquanto o
fascismo alude a algo além de Mussolini e da experiência italiana.
Não seria, portanto, correto dizer
que Bolsonaro é nazista. Pelos mesmos motivos e em que pese o fato de
ele compartilhar a noção de supremacia branca ou a idolatria das armas
de fogo, não caberia dizer que é um adepto da Ku Klux Klan ou integrante
da Associação Nacional do Rifle americana. Um dia, quem sabe, chega lá.
Como afirmou Umberto Eco em um texto de 1995, intitulado “Ur-Fascismo” e publicado na
New York Review of Books,
a possibilidade de uso amplo do conceito de fascismo decorre de uma das
características mais importantes do fenômeno histórico: a imprecisão,
indefinição ou falta de nitidez.
No período em que Mussolini foi
primeiro-ministro, o fascismo na Itália passou de republicano a
monarquista e voltou à República, manteve um exército regular e uma
milícia pessoal para o líder máximo, conviveu em harmonia com a Igreja
Católica e propôs o culto à violência na educação pública, defendeu a
primazia do livre-mercado e interveio drasticamente na economia. Não que
o fascismo italiano, em suas contradições, contivesse os elementos das
formas de totalitarismo que o sucederam. Ele não passava de uma colagem
de ideias filosóficas e políticas heterogêneas e, muitas vezes,
antagônicas. Nas palavras de Eco, Mussolini não tinha uma filosofia,
somente uma retórica (e uma iconografia) copiada por outras lideranças
totalitárias à direita dali em diante.
Não há um fascismo único, mas formas
diferentes de fascismo, assim como não há apenas um tipo de fascista,
mas diversos. Tal qual ocorre com as doenças do organismo, em relação às
quais se pode afirmar que os indivíduos têm experiências singulares, o
fascismo é uma espécie de doença do sistema político que cada sociedade
atravessa à sua maneira.
(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Eco identifica alguns traços que
integram a “nebulosa fascista” e que os fascismos concretos
compartilham, em maior ou menor grau. Muitos são visíveis no Brasil de
hoje: o irracionalismo, de braços dados com o fanatismo religioso e o
ocultismo, a desvalorização do pensamento e a exaltação do fazer, a
desconfiança nos intelectuais (identificados como “degenerados” ou
“vermelhos”, traidores dos “valores nacionais tradicionais”), o medo do
diferente e o racismo. Bolsonaro repete Mussolini e Hitler no modo como
procura manter insuflada sua militância, como uma tropa de “combatentes
heroicos”, da qual espera adesão cega. Também como eles, o fascista
brasileiro transfere sua vontade de poder para o campo sexual, no
machismo que implica desdém pelas mulheres e intolerância e condenação
de formas não convencionais de sexualidade. Como Hitler e Mussolini, da
dificuldade em lidar com o sexo real Bolsonaro escapa para brincadeiras
com armas, um exercício fálico substitutivo.
O capitão brasileiro é, no entanto,
menos capaz e qualificado intelectualmente que esses personagens. O
carisma de sua imagem é menor, a capacidade de comunicação popular é
limitada, não transmite autoridade, não provoca o respeito. Ninguém
interrompe seus afazeres para ouvi-lo, muito menos permanece imantado,
como ficavam milhares de italianos ou alemães na presença de seus
líderes.
Bolsonaro não passa de um fascista
tardio, tolo e mal-educado, que nada tem a dizer ao País. Isso não
desobriga, no entanto, o pensamento democrático de fazer, em relação a
ele, o que Eco propõe: “Nosso dever é revelar o fascismo e apontar suas
novas manifestações, a cada dia, em qualquer lugar do mundo”.
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