Editorial
A visita do reformador
João Paulo II
também veio ao Brasil, mas papa Francisco toma rumo oposto àquele de Wojtyla
por Mino Carta —
publicado 26/07/2013 09:16
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AFP
Há quem diga, com alguma ironia, que o argentino
é um italiano que fala espanhol e pensa ser inglês. Deve-se a definição ao fato
de que são muitos os argentinos de origem peninsular. O papa Bergoglio é filho
de italianos, mas certamente não se imagina inglês.
Quando Francisco foi eleito, não fui solitário ao
supor que a escolha de um pontífice sul-americano pudesse indicar a especial
preocupação do Vaticano em relação a um subcontinente progressivamente governado
por forças esquerdistas, ou tidas como tais. Bergoglio está a revelar outra
especial preocupação, especialíssima, a da Igreja Católica em relação a si
mesma.
Trata-se, transparentemente, de retomar um
caminho abandonado em função de uma ação muito mais política, e de política
contingente, do que pastoral. Entendam bem, por favor: sempre me revoltaram
certos editoriais dos nossos jornalões que, em tempos ditatoriais, pretendiam
calar resistentes do porte de Paulo Evaristo Arns, e de muitos altos prelados
brasileiros, inconformados com os desmandos do regime. Da mesma forma, sempre
deplorei a igreja que prega a resignação de quem transita pelo vale de
lágrimas.
São óbvias, de todo modo, as demandas políticas
da chamada opção preferencial pelos pobres, obstadas agressivamente pela
casa-grande. E logo me ocorre recordar a visita de João Paulo II ao Brasil de
1979. Wojtyla só pensou e fez política, com a dimensão de pontífice medieval,
imponente na determinação autoritária e, fosse o caso, na hipocrisia. Na traição
à palavra de Cristo, em proveito de um desenho hegemônico que passava pela
derrota final do socialismo real. Feroz, inclusive, no propósito bem-sucedido de
acabar de vez com a resistência de batina à ditadura brasileira.
Há quem vislumbre alguma semelhança entre
Francisco e João XXIII. Não tenho sabedoria para dissertar no tema. É certo,
porém, que os editoriais dos jornalões, não somente os nativos, viam em
Roncalli, o campônio de Bergamo, um pontífice perigosamente inclinado à
esquerda. Há uma curiosa diferença entre João XXIII e João Paulo II, diz
respeito a padre Pio di Pietrelcina, venerado como taumaturgo. Wojtyla canonizou
Pio em 1999 e o santificou em 2002, enquanto Roncalli, quatro décadas antes,
desconfiava do futuro santo, a ponto de determinar uma investigação sobre seus
pretensos milagres. Apurou-se que Pio era um embusteiro, capaz de abusar das
paroquianas e de provocar em si próprio falsas estigmatas, mãos e pés perfurados
pelos cravos da cruz de Cristo, pelo uso de ácidos adquiridos na
farmácia.
Têmperas e propósitos opostos. Talvez João Paulo
I representasse um risco notável para a igreja pretendida pela Cúria Romana ao
ser eleito. Morreu um mês depois, em meio ao sono, de forma misteriosa e, em
todo caso, muito mal explicada. Sabe-se que ao deitar tomara uma chávena de chá
depois de ler apontamentos sobre as atividades de monsenhor Marcinkus,
“banqueiro de Deus” na qualidade de boss do IOR, o Instituto para as
Obras da Religião, aprazível recanto financeiro instalado em pleno Vaticano,
disposto a dar guarida a dinheiro mafioso. Lavanderia sacra que Bergoglio não
aceita e não quer.
Marcinkus, americano de
vigoroso aspecto, jogador de tênis e amigo de senhoras esguias, veio ao Brasil
em 1979 à testa da comitiva papal e teve papel destacado ao longo da visita.
Muitos anos depois, aos 84, morreu como bispo de uma diocese insignificante no
interior dos EUA. João Paulo II abandonou-o ao seu destino. Creio que Marcinkus
não apreciaria as palavras de Francisco, pronunciadas na quarta-feira passada 24
em Aparecida: “É verdade que hoje mais ou menos todas as pessoas, e também os
nossos jovens, experimentam o fascínio de tantos ídolos que se colocam no lugar
de Deus e parecem dar esperança: o dinheiro, o poder, o sucesso, o prazer”.
Francisco traça o perfil de uma humanidade desesperançada. Recomenda, no
entanto, o retorno a valores esquecidos, tais como solidariedade, fraternidade,
generosidade, sem descurar da alegria.
A presidenta Dilma cuidou de expor, no
discurso de acolhida, a sua interpretação das recentes manifestações de rua, que
no Rio, aliás, ainda se repetem. É possível que temesse um discurso político do
papa, para condenar a desigualdade social. Mas, até quinta 25, Francisco roçou
indiretamente a política, nada além disso, e a partir de um enfoque universal, a
esclarecer o exemplo buscado do santo poverello d’Assisi, pobrezinho de
Assis.
Há situações medievais neste enredo, mas se
João Paulo II reeditou o passado, Francisco, o santo, foi de alguma maneira o
futuro, como, a seu modo, precursor de Wyclif, de Huss, de Lutero. Desta visita
papal emergem duas certezas, sem detrimento de melhores considerações. Primeiro,
Bergoglio toma rumo contrário àquele de Wojtyla. Mostra com toda a nitidez estar
interessado na restauração da fé em lugar de uma vitória política do momento, no
caso a do capitalismo, entendido como o Bem contra o Mal vermelho. Sem esquecer
que o empenho a favor dos pobres é a própria busca da igualdade.
A segunda certeza é mais comezinha, de
certa forma mais banal: o Brasil, na perspectiva da Copa do Mundo, prova não
estar maduro, nos dias de hoje, para ser cenário de eventos grandiosos. Por
exemplo, vimos Francisco vítima de congestionamentos de trânsito e desarranjos
do metrô que imaginávamos reservados exclusivamente a mortais comuns.
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