domingo, 9 de fevereiro de 2020

“Democracia em vertigem” obriga a lembrar o que deve mudar nas esquerdas, por Roberto Bitencourt da Silva

Para isso, requer-se uma combinação filosófica e programática de princípios socialistas, nacionalistas e anti-imperialistas.
“Democracia em vertigem” obriga a lembrar o que deve mudar nas esquerdas

por Roberto Bitencourt da Silva

O filme “Democracia em vertigem”, dirigido por Petra Costa e que concorre ao Oscar de melhor documentário, é um bom e importante registro histórico sobre o curso dos acontecimentos políticos e sociais dos últimos anos, no Brasil.
Mostra os intragáveis, nauseantes e escroques personagens das direitas, diretamente envolvidos no golpe de 2016, assim como expõe as ilusões e crenças liberais do petismo – que configura, ainda hoje, uma espécie de esquerda Maysa, “meu mundo caiu”…
Em meio a muitas bobagens e percepções incompatíveis com a dureza da realidade nacional, bem como interesses explicitamente antipopulares, egoístas e antinacionais, ambos os fenômenos retratados pela diretora, por intermédio da seleção de opiniões reverberadas por personagens anônimos e ilustres, as ponderações mais lúcidas refletidas no filme foram proferidas por um trabalhador.
Indagado pela câmera, em uma praça, um senhor de meia idade posicionou-se com firmeza e clareza política, mais ou menos nesses termos, afirmando o que segue: “Querem retirar a Dilma para favorecer os banqueiros, os latifundiários, os ricos, os americanos, para entregar o petróleo… para o estrangeiro… Com Lula e Dilma, a gente conseguia umas migalhas”.
Correspondendo às expectativas então apresentadas pelo entrevistado, realmente, nem migalhas para o Povo Trabalhador o abjeto e ultraespoliativo bloco de poder admite mais. É dominação bruta e explícita das classes dominantes domésticas e gringas o que predomina.
Sendo forçado por ofício a assistir ao filme, sob o estímulo e a lembrança dessa exigência profissional por minha companheira, recordo-me de atos, gestos, iniciativas nefastas e lamentáveis omissões políticas, que tanto marcaram as últimas duas décadas brasileiras, com força de incidência na composição da triste moldura do tempo presente.
Se o condomínio do poder não pretende admitir sequer a concessão de “migalhas” -denotando uma voracidade terrível sobre os direitos coletivos e individuais da maioria e as riquezas e os recursos nacionais – não deveríamos mais, especificamente sob um enfoque de esquerda, nutrir ilusões cômodas, imediatistas e infrutíferas para a saída da desgraça neocolonial em vigor. Diga-se, ilusões e esquemas de interpretação que atravessam as esquerdas partidárias brasileiras, não se restringindo ao PT.
A respeito, refiro-me, em especial, à lamentável prioridade conferida à ação político-partidária nas instituições; à atenção exclusiva (e improdutiva) reservada aos processos eleitorais; e à desastrosa tentativa de aliança entre as aspirações das classes sociais detentoras do grande capital nacional e internacional e os interesses da maioria da população, integrada pela pequena burguesia e as classes trabalhadoras – altas, medianas, populares, oprimidas e marginalizadas.
Ora, romper com a a agenda entreguista e os atores políticos, econômicos e sociais, que preconizam e aplicam o aprofundamento da nossa subserviência neocolonial às potências capitalistas, ao capital estrangeiro, ao imperialismo (palavra-chave que não faz parte do quadro descritivo do filme de Costa, mas que é categoria vital para entender o nosso tempo e as nossas vicissitudes nacionais), assim como dar cabo ou mitigar bastante o poder dos seus vassalos títeres internos, são medidas imprescindíveis para a defesa da Pátria e do Povo Brasileiro.
Medidas incontornáveis para que possamos existir enquanto Nação, para que tenhamos capacidade de (re)construir a dignidade nacional e dar vitalidade aos instrumentos de exercício da soberania nacional e popular.
Iniciativas decisivas para que o País possa controlar e dispor dos excedentes e das riquezas aqui geradas, em vez de transferi-las para os países centrais do capitalismo, como também almejando desenvolver tecnologia própria, visando reduzir ao máximo a dependência técnico-científica aplicada do exterior.
Para isso, requer-se uma combinação filosófica e programática de princípios socialistas, nacionalistas e anti-imperialistas. Uma projeção de ações que demanda árido e hercúleo trabalho político-cultural renovador das esquerdas, com vistas a incentivar a capacidade organizacional e mobilizatória popular. Uma práxis política mais dedicada à irradiação de ideias, dotada de maior desprendimento material e eleitoral, sem preocupação com conveniências e arranjos políticos de momento.
Trata-se, precisamente, de um conjunto de iniciativas, comportamentos e visões políticas, portador de fundamentais (ainda que difíceis) alvos econômico-sociais, que não se coaduna com o mesquinho horizonte político registrado pelas lentes e a narrativa do oportuno documentário de Petra Costa.
Roberto Bitencourt da Silva – cientista político e historiador.

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