Estado de exceção
Enquanto o papa Francisco incentiva as lutas sociais, o Brasil as reprime
A invasão de uma escola do MST e a repressão aos estudantes são sintomas da emergência de um Estado policial no País
Osservatore Romano/AFP


Francisco recebe Mujica e lideranças de movimentos sociais, e clama contra a prepotência do dinheiro
O Vaticano recebeu no início do mês 5 mil
representantes de movimentos populares de mais de 60 países, o III
Encontro Mundial do gênero. Idealizador das assembleias, o papa Francisco encerrou o encontro no sábado 5 com um discurso em espanhol para 200 pessoas. Suave na fala, duro na mensagem.
Vestido de branco, condenou a força do dinheiro,
responsável por um sistema “terrorista” que descarta “a maravilha da
Criação, o homem e a mulher”, uma espécie de “ditadura”, como diziam
seus antecessores Pio XI e Paulo VI.
E exortou os fiéis: “Vocês talvez sejam os que mais
motivos têm para queixar-se, ficar presos nos conflitos, cair na
tentação do negativo. Mas, apesar disso, olham adiante, pensam,
discutem, propõem e atuam. Eu os felicito, os acompanho e lhes peço que
sigam abrindo caminhos e lutando”.
Enquanto as lutas populares são exaltadas pelo pontífice, o
Brasil recua 90 anos e trata delas como gostava o último presidente da
República Velha, Washington Luís (1926-1930), um crente de que a questão
social era caso de polícia. Sobra repressão por esses dias.
Os sem-terra que pedem reforma agrária são caçados pela polícia e a Justiça. Os estudantes inconformados com medidas impopulares do governo são alvo de decisões judiciais medievais, spray de pimenta no Congresso e deboches do presidente Michel Temer.
Uma sequência preocupante de fatos em um país campeão
de assassinatos e desigualdade, resumida pelo presidente da Associação
Juízes para a Democracia (AJD), André Augusto Salvador Bezerra, como “de
crescente Estado policial”.
Um capítulo desse enredo foi escrito na véspera do
discurso papal. Na sexta-feira 4, a polícia civil do Paraná desencadeou
uma perseguição aos sem-terra a desembocar na entrada, por policiais de
São Paulo armados e fardados, em uma escola do MST
em Guararema, cidade de 28 mil habitantes a 77 quilômetros da capital
paulista. Vídeos gravados por câmeras de segurança da escola mostram os
agentes com metralhadores à mão enquanto pulam uma janela e, já dentro,
disparam para o alto.
“Era realmente assustador,
porque estavam fortemente armados e o procedimento não estava dentro
das normas jurídicas”, relatou pelo Facebook a professora Silvia Beatriz
Adoue, segundo quem os policiais não tinham mandado, só um documento no celular.
Um professor de 64 anos, Ronaldo Valença,
portador do mal de Parkinson, terminou com a clavícula quebrada. Em um
vídeo na internet, vê-se um policial fora da escola ameaçar pelo portão
uma mulher que estava dentro: “Eu acho que vocês vão perder. Eu acho que
vai sair alguém morto daqui. Pode ser nós, pode ser vocês”.
A Secretaria de Segurança Pública de São
Paulo disse que os policiais ficaram “encurralados” por 200 pessoas na
escola e atiraram para o céu como advertência. Quatro teriam sido
agredidos.
- Enquanto isso, a polícia do estado de exceção em vigor no Brasil age violentamente em escola de Guararema (Foto: reprodução)
Batizada de Florestan Fernandes, importante pensador do
século passado (professor de Fernando Henrique Cardoso, que esqueceu
suas lições), a escola foi inaugurada em 2005 pelo MST, após três anos
de obras, com dinheiro arrecadado com a venda de um kit a reunir um livro de fotos de Sebastião Salgado, texto do escritor português José Saramago e músicas de Chico Buarque.
O trio topou abrir mão dos direitos autorais em favor dos
sem-terra. O local abriga três salas de aula com capacidade para 200
pessoas, uma biblioteca com 40 mil títulos e cursos que vão da
alfabetização à graduação universitária.
A ação policial por ali despertou reações
de gente famosa aqui e no exterior. Para o ator Wagner Moura, o Capitão
Nascimento do filme Tropa de Elite, “se alguém tinha dúvida de
que o Brasil vive um estado de exceção, um estado policialesco, essa
invasão é uma demonstração covarde de truculência típica de regime de
exceção”.
O porta-voz da prefeitura de Barcelona, Gerardo Pisarello, escreveu no Twitter: “Condenamos a violência
e exigimos respeito aos direitos humanos”. O fundador do partido
espanhol Podemos, Juan Carlos Monedero, comentou que “esse comportamento
da polícia de São Paulo é típico de ditadura e de governos
autoritários”.
A encrenca em Guararema surgiu a
900 quilômetros dali, em Quedas do Iguaçu, cidade de 33 mil habitantes
no oeste no Paraná. Trata-se de uma disputa fundiária antiga, de quase
20 anos, a opor o MST e a Araupel, exportadora de madeira.
Em março deste ano, outras 700 ocuparam nas cercanias as
fazendas Dona Hylda e Santa Rita, também da Araupel. O ambiente ficou
tenso. Em abril, dois trabalhadores rurais foram mortos, ao que consta
devido a uma ação conjunta de policiais e capangas da empresa.
Quando das ocupações de março, a Polícia
Civil do Paraná começou a investigar os sem-terra, por causa de
denúncias de crimes nos acampamentos do MST. O avanço da apuração
resultou na recente operação policial, nomeada “Castra” e destinada a
prender 14 camponeses acusados de roubo, invasão de propriedade, cárcere
privado e porte ilegal de armas, entre outras.
Acusados ainda de organização criminosa,
uma novidade no País desde a vigência da Lei Antiterrorismo, a partir de
março, usada contra movimentos sociais, como em um caso emblemático em
Goiás. Dentre as 14 pessoas na mira da Castra, duas estariam em
Guararema, razão para a polícia do Paraná ter pedido auxílio à paulista.
A dupla não estava no local, no entanto.
A caça ao MST desencadeada desde o
Paraná une polícia, governo do estado e empresa. Uma foto divulgada na
internet mostra um quarteto sorridente: o delegado civil Adriano Chohfi,
um dos dois condutores da Operação Castra, Tarso Giacomet, diretor da
Araupel, o chefe da Casa Civil do governo paranaense, Valdir Rossoni,
deputado federal pelo PSDB, e um deputado estadual tucano, Adriano
Litro.
“A ação sobre o MST insere-se em uma
tendência de crescimento contínuo do Estado policial no Brasil, bem
simbolizada pelo alcance da posição de quarta maior população carcerária
do mundo”, afirma André Bezerra, dos Juízes pela Democracia. “Esse
crescimento nos últimos meses tem alcançado os movimentos sociais,
havendo, aos olhos de todos, o que já ocorria com frequência nas
periferias: ações policiais repressivas contra aqueles que lutam por
seus direitos.”
Os estudantes também têm sofrido com a
repressão, escancarada em um despacho judicial sobre a desocupação do
Centro de Ensino Ave Branca, uma escola em Taguatinga, na periferia de
Brasília. Em 30 de outubro, o juiz Alex Costa de Oliveira, da Vara da
Infância e Juventude, liberou a Polícia Militar para tirar os
secundaristas com os seguintes métodos: corte de luz e água, proibição
da entrada de pais e comida no local e uso de som alto para impedir os
alunos de dormir.

Os estudantes ocupam escolas por dois motivos. Uma reforma do ensino médio
baixada por Michel Temer com uma canetada, e por mais verba pública,
algo que sobra ao juiz Costa de Oliveira, holerite de 39 mil reais em
outubro.
O movimento que começou com os secundaristas acaba de chegar às universidades. Mais de 180 campi foram
ocupados em 22 estados nos últimos dias, nas contas da União Nacional
dos Estudantes. Segundo a UNE, é o maior movimento do tipo da história
do País. A maioria são estabelecimentos federais, como UFRJ, UFBA, UFPA,
mas há alguns casos de instituições privadas, como a PUC em Porto
Alegre.
Nessas ocupações
forma-se uma espécie de comunidade e de autogestão nas faculdades. Os
estudantes decidem quando, onde e se vai ter aula, e quais serão as
matérias ensinadas. Há casos em que os professores apoiam e participam. A
entrada de funcionários da área administrativa é controlada, o que
interfere na folha de pagamento.
Há saraus, dança e reuniões destinadas a
organizar atos contra a PEC que congela por 20 anos as verbas sociais,
foco central da rebelião universitária, garrote a impedir a ampliação
dos investimentos na educação pública superior.
Nem todos os alunos concordam, há
situações mistas dentro das universidades, com algumas faculdades
ocupadas, outras não. “Há um embate forte na UnB”, diz Alyssa Volpini,
de 24 anos, aluna de Arquitetura da Universidade de Brasília, onde é
possível ver, nas imediações do Instituto Central de Ciências, cartazes a
proclamar: “Se você é neutro em situações de injustiça, você escolheu o
lado do opressor”.
O apoio parte em geral do pessoal de
humanas e a oposição, do pessoal de exatas. Para Alyssa, quanto mais a
ocupação da UnB resistir, melhor. “Tem um símbolo muito importante um
movimento desses na capital do País.”
Agraciado com 60 mil reais mensais pagos pelos brasileiros
entre salário e aposentadoria, Temer tem optado por deboche e descaso
ao lidar com os estudantes. Zombou deles na terça-feira 8 perante
empresários em Brasília e repetiu a dose no dia seguinte à Rádio
Itatiaia, de Minas.
À turma do PIB, disse que a molecada sequer sabe o que é
uma PEC. A propósito, naquele momento, o Tribunal Superior Eleitoral
recebia cópia de documentos que mostram que a empreiteira Andrade
Gutierrez doou 1 milhão de reais à campanha de Dilma Rousseff por
intermédio do PMDB de Temer, o que aumenta as chances de o presidente
cair juntamente com a petista, caso a chapa da dupla na eleição de 2014
seja cassada. Na entrevista aos mineiros, Temer afirmou que “nós não
damos importância a elas (ocupações)”, pois “a pior coisa é quando acontece isso e você dá muita importância”.
“Ele está debochando da gente o tempo
todo”, diz Ana, secundarista de 18 anos, cabelo esverdeado, desejosa de
cursar Veterinária e que prefere ocultar o sobrenome. É aluna de uma
escola de Brasília, a Gisno, que foi tomada por estudantes e liberada
pela PM no início do mês, uma desocupação “tensa”, relembra Ana, com
corte de luz e cassetete a bater em grades.
Na quarta-feira 9, ela engrossou um
protesto com algumas dezenas na porta do Senado contra o congelamento
das verbas sociais e a reforma do ensino médio. Ato a resultar, como CartaCapital
testemunhou, em disparos de spray de pimenta pela Polícia do Senado
contra os manifestantes, muitos a chiar porque a mídia esconde sua
causa. “Sabe o que é uma PEC, Ana?” “Ah, PEC é congelar os gastos com
educação por 20 anos, é o que a gente sabe. A escola pública já está uma
m..., já não tem dinheiro...”
Dentro do Senado,
onde a proposta seria aprovada em uma comissão, a presidente da UNE,
Carina Vitral, dizia que “os estudantes querem ser ouvidos, mas os
políticos não querem ouvir”, daí avisa que os parlamentares “podem se
acostumar, porque os estudantes estarão no Congresso Nacional para
discutir os rumos do País”.
Enquanto os estudantes sofriam no Parlamento, no Palácio
do Planalto Temer lançava um programa de reforma de imóveis populares,
cuja verba será capaz de atender 0,013% da demanda. Presença de
empresários, congressistas, assessores. Já o pobre beneficiário... O
presidente disse ter “responsabilidade social” e exortou aliados
presentes, como Aécio Neves, a saírem dali para ir ao Senado congelar as
verbas sociais.
Na véspera, um economista prestador de serviços ao PSDB,
Samuel Pessôa, da FGV, sustentava em um debate no Senado que a proposta
“agudiza” o conflito social por recursos orçamentários e isso, concluiu,
é ótimo. Só faltou dizer que os rentistas assistirão ao conflito de
camarote, pois o pagamento da dívida pública estará devidamente
protegido por duas décadas.
- Conforme Pessoa, "agudizar" conflitos sociais é muito bom (Foto: Marcos Oliveira/Ag. Senado)
Esse clima de tensão e repressão é
um perigo num país como o Brasil. Para 70% da população, a polícia abusa
da violência, informa o 10o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no início do mês.
Em cinco anos, houve mais assassinatos
no Brasil (279 mil) do que mortos na guerra da Síria (256 mil). Só em
2015, foram 58,5 mil homicídios, recorde mundial. No anuário, um cabo da
PM de Santa Catarina, Elisandro Lotin, presidente da Associação
Nacional dos Praças, analisa o cenário sem rodeios.
“As forças de segurança pública sempre foram usadas para o controle social no sentido da manutenção do status quo”,
diz. “Em outras palavras, na medida em que o Estado abre mão de
políticas educacionais, ou se omite na questão dos direitos sociais e
utiliza as forças de segurança como forma de contenção social dos
‘excluídos’, ele incentiva confrontos.”
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