Intercept: a censura no Brasil do Golpe
É a era do “podemos tirar se achar melhor”
publicado
29/09/2016

O Conversa Afiada reproduz artigo de J.P. Cuenca no Intercept Brasil:
HÁ DUAS SEMANAS, participei de um
debate em Berlim, na livraria da Torstrasse que é ponto de encontro da
comunidade brasileira na cidade. Quando falamos sobre política, alguém
perguntou se haveria o risco de termos novamente censura no Brasil
depois do Golpe Temer.
Não creio que algum dia deixamos de
ter. Sobre o tema, logo nos ocorrem a Ditadura Militar ou o Estado Novo,
mas a censura tem a idade do Brasil — o Império demorou mais de três
séculos para permitir a existência de qualquer jornal na colônia. A
monarquia reprimia ideias de cunho laico ou anti-monárquico, e os
oligarcas da república velha igualmente usavam o aparelho repressor do
estado contra seus oposicionistas.
Nos raros períodos aparentemente
estáveis da nossa jovem e frágil democracia, a censura ganha contornos
menos oficialescos — ainda que bastante eficientes. Essa censura
dissimulada, que atravessa toda nossa história recente, dá sinais de
recrudescimento nos últimos tempos.
Ainda – ainda – é mais corporativa que
estatal. O sujeito ideologicamente dissonante perde espaço e
oportunidades em qualquer empresa. Nos conglomerados de mídia
brasileiros, que costumam usar colunistas como pedra de toque de uma
falsa isenção editorial, discordar da chefia sem estar defendido num
espaço de cota é abreviar o caminho para a rua no próximo passaralho.
Empregos, contratos, freelas, espaço ou cobertura na imprensa: tudo está
em jogo.
Brigando para manter-se num mercado
cada vez menor, onde o achatamento dos salários iniciais costuma apenas
permitir que jovens bem nascidos tornem-se profissionais de comunicação,
os jornalistas brasileiros sacrificam autonomia e liberdade de pauta
apenas para manter seu salário de sobrevivência e algum frágil status.
São como os oito músicos vestindo salva-vidas que continuaram tocando
ragtimes e valsas sob a regência do maestro Wallace Hartley até que o
deck se inclinasse como um tobogã e a estrutura do RMS Titanic
finalmente rompesse. No caso, tocando sem improvisar.
EM MUITOS CASOS, censura interna e
demissão antes do naufrágio podem ser o melhor desfecho. Na cobertura de
protestos, jornalistas costumam ser agredidos pela Polícia Militar e,
em menor proporção, pelos próprios manifestantes, que os identificam com
os meios para os quais trabalham. Isso, claro, quando estes também não
estão sendo vandalizados por uma PM que continua recebendo carta branca
para tal, através de editoriais irresponsáveis e desonestos e de uma
cobertura completamente enviesada da cena das manifestações.
A contínua inversão causal dos fatos,
onde as manchetes seguem ignorando o fato da polícia ser a responsável
pela deflagração dos conflitos, acaba por cozinhar a liberdade de livre
manifestação e de imprensa no mesmo caldo. Relatório recente da ABRAJI
(Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) aponta para quase
300 episódios de violação de direitos contra jornalistas durante a
cobertura dos protestos desde 2013.
A Associação Nacional dos Jornais
(ANJ), em seu relatório sobre liberdade de imprensa, demonstra
preocupação pelo crescente número de crimes ainda mais graves. No ano
passado, sete jornalistas foram assassinados no Brasil, um número que só
é menor que o do México e de Honduras nas Américas. Estamos também
perdendo posições em rankings de liberdade de imprensa: em 2010
ocupávamos o 58º lugar e hoje, segundo a ONG Repórteres Sem Fronteiras,
estamos em 104º.
Entre a violência nas ruas e a coação
nas redações, fruto de evidentes contradições entre o interesse de
grandes grupos de mídia e a prática do bom jornalismo, o Poder
Judiciário é outra ameaça. Segundo outro relatório da Abraji, citado por
Ronaldo Lemos, o número de pedidos de censura prévia no Judiciário por
políticos totalizam hoje 28 ações em demandas contra cidadãos, empresas
de mídia, sites e jornalistas ordenando-os “a calar a boca”. Na última
década há casos já históricos como o de Elmar Bones e o Jornal Já, no
Rio Grande do Sul, e mesmo o da censura prévia contra o Estadão.
Exemplos não faltam.
CENAS E PERSONAGENS TÍPICOS dos
vertiginosos últimos três anos, quando este golpe é articulado: repórter
recebendo telefonema do diretor de canal de TV ou editor do jornal
pedindo para apagar post de facebook. Funcionários de RH checando as
opiniões do candidato na internet antes de contratá-lo. Artistas e
produtores engajados calando-se na véspera de grandes eventos, como Copa
do Mundo ou Jogos Olímpicos, para não perder contratos. Pais pedindo a
filhos, ou vice-versa, que evitem se posicionar politicamente em público
para evitar constrangimentos familiares ou laborais. Atores recebendo
recados diretos de patrões e contratantes de publicidade: neutralidade é
lucro. Em e-mails abertos, editores orientando repórteres a manipular
coberturas através de omissões e ênfases, já sem qualquer pudor: é a era
do “podemos tirar se achar melhor.”
O patrão, o patrocinador, o
editor-chefe: não é de bom tom pensar sem a permissão deles. E, se o
fizermos, que seja em silêncio, afinal. Pois o silêncio não atrapalha na
hora de fechar um edital, um contrato, uma renovação.
Num sistema social orwelliano e
autoprotetor, a saída para a maioria é fazer o isentão, figura tão
simbólica da autocensura necessária para seguir empregado hoje em dia.
Independentemente de qualquer julgamento moral — é o isentão um covarde,
um canalha ou um sobrevivente? —, a necessidade concreta de pesar
nossos posicionamentos para evitar represálias é a medida de como o ar
anda tóxico no Brasil de 2016.
A naturalização desse policiamento pode
nos levar a pensar que nossas opiniões nunca pareceram tão importantes
ou mesmo perigosas. Em tempos de retrocesso democrático, talvez sejam.
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