Entrevista - Marcio Pochmann
"Associo terceirização ao processo de uberização do trabalho"
Universalizar a terceirização integra o projeto da nova elite e mantém a desigualdade, afirma ex-presidente do Ipea
por Carlos Drummond
—
publicado
27/09/2016 03h43
Olga Vlahou

No período FHC, a terceirização aumentou, mas não houve ganhos de produtividade
A universalização da terceirização,
seja a aprovada pelos deputados e em tramitação no Senado, seja a da
proposta em análise no Supremo Tribunal Federal, é a Uberização da força
de trabalho, chama a atenção Marcio Pochmann, presidente licenciado da
Fundação Perseu Abramo e ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Faz
parte do projeto da nova elite agroexportadora, que mantém a
desigualdade, em contraposição às propostas fragmentadas da parcela da
sociedade que gravita em torno dos serviços e está nas ruas, explica o
economista da Unicamp na entrevista a seguir.
CartaCapital: Como a terceirização cresceu?
Marcio Pochmann: No
fim dos anos 1980, início dos 1990, da recessão do governo Collor e da
abertura comercial, expuseram o parque produtivo brasileiro à competição
internacional sem condições adequadas. Isso culminou em uma reação dos
empresários para reduzir custos. A terceirização permitia às empresas
concentrar-se nas atividades finalísticas e repassar as atividades-meio,
fugindo do modelo fordista em que a empresa fazia tudo. Esse era o
discurso que veio de fora.
CC: A terceirização, segundo as empresas, aumenta a produtividade.
MP: A
terceirização aumentou muito com a desregulamentação dos anos 1990, do
governo Fernando Henrique basicamente como mecanismo de redução de custos e precarização do trabalho.
Nesse período, o País não teve ganhos de produtividade. A partir do ano
2000, com o ambiente econômico mais favorável, houve uma ampliação do
setor produtivo, com empregos não terceirizados entramos em um ambiente
de quase pleno emprego nos melhores momentos.
MP: Ela voltou a ganhar espaço no ambiente recessivo, de forte pressão sobre os custos das empresas. O projeto aprovado na Câmara e agora à disposição dos senadores
é o inverso do defendido por juristas, especialistas, trabalhadores e
sindicatos, de regular a atividade terceirizada de modo a comprometê-la
com o ganho da produtividade em vez da redução de custos. A legislação
em tramitação não é para os terceirizados, é para universalizar os não
terceirizados.
CC: Como vê essa perspectiva?
MP: Associo a universalização da terceirização ao processo de uberização da força de trabalho no Brasil. A ideia do serviço de táxi desregulamentado do Uber é inviabilizar impostos e tributos.
O governo está preocupado com fundos públicos para financiar a
Previdência, mas a terceirização certamente vai implicar menos
arrecadação para o Estado. É coerente com a proposta de relação direta
entre patrão e empregado. Descarta-se o sindicato, não há regulação. É
uma volta ao século XIX.
CC: Quais seriam as perspectivas?
MP: Vivemos
uma fase de reavaliação do projeto de redemocratização do Brasil dos
anos 1980. Acreditávamos que a democracia poderia ser uma possibilidade
de mudança, mas ela não permite isso, toda conquista vai por água
abaixo. De 1981 a 2016 a economia brasileira cresceu 2% ao ano em média.
Isso dá 0,6% per capita. Estamos num ciclo de decadência da industrialização, que começou nos anos 1980. Hoje a indústria representa 7% do PIB.
É uma fase longa de decadência econômica, mas também política, dos
valores culturais, dos relacionamentos, das instituições, algo muito
maior. Olhamos o curto prazo, o cotidiano, mas há um movimento maior
nisso.
- Estamos diante de uma crise de projeto de sociedade brasileira, diz Pochmann (Daniel Marenco/ FolhaPress)
CC: Que movimento seria esse?
MP: Os
partidos e os sindicatos são vinculados ao mundo industrial, mas estamos
numa sociedade de serviços, onde há quase o mesmo tipo de relação
existente na sociedade agrária, sem laços. A situação não propicia
compromissos de médio e longo prazo. É uma sociedade gelatinosa, não
converge para absolutamente nada. Veja o exemplo de Campinas, que teve
uma base industrial operária. Hoje, 21% do emprego da classe
trabalhadora está ligado a dez shopping centers. É o mundo dos serviços.
Reúne o trabalhador não empregado, mas
parceiro ou sócio, que ganha em razão das vendas. Os assalariados da
faxina, limpeza, segurança e manutenção. Os vendedores das lojas de
grife, do MacDonald’s, dos cinemas. Não tem nada que os una, circulam
sob o mesmo teto sem diálogo, não são companheiros, não são colegas. O
shopping é uma agregação de empreendimentos sem identidade. É a situação
pós-moderna, de fragmentação socioeconômica. Muito diferente da
situação da fábrica. Os trabalhadores não se conhecem, mas há ali a
figura do dono ou do diretor-geral, que define o salário.
CC: Qual seria a alternativa?
MP: Estamos diante de uma crise de projeto da sociedade brasileira. Há o caminho da elite dirigente,
proveniente de um projeto do passado, primário-exportador. A fração
nova dessa elite está em parte do Centro-Oeste e do interior do
Nordeste, onde se localiza boa parte dos 30% dos municípios brasileiros
que cresce mais de 7% ao ano por causa do agronegócio. Essa elite não
existia até os anos 1980, é resultado das opções que o País fez, do
ajuste exportador, da valorização cambial, do investimento público nas
pesquisas da Embrapa. Há um êxito aí, mas aponta para um rumo que não é o
de uma nação desenvolvida, mas o de um Brasil que reproduzirá as
desigualdades.
É um projeto que não gera riqueza
suficiente para repartir de forma digna, justa. Em contrapartida, há o
outro lado do País, urbano e dependente dos serviços. Aí existe a
possibilidade de formação de outra maioria, que não se identifica hoje
com partidos e sindicatos, depende da eficiência do Estado e quer
serviços decentes e ética na política. Esse
pessoal está nas ruas, tem uma crítica e se manifesta, mas isso não
resulta em liderança, proposições, numa instituição que possa dar conta
dessa realidade. Não consegue convergir para um projeto. Há, portanto, o
embate desses dois projetos, em disputa para superar o modelo velho,
que está em crise.
*Publicado originalmente na edição 919 de CartaCapital, com o título "Trabalho modelo uber". A grande eminência". Assine CartaCapital.
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