“O sangue, o vermelho, na vida, tem diferentes
significados. Na vida real é assustador. Nos filmes, não é de verdade.
Usar o sangue para mim é como pintar. Às vezes pode ser lindo. E pode
ser divertido.” Assim Quentin Tarantino definiu o ‘nível de
vermelho’ em seu cinema quando questionado sobre o volume de sangue que
jorra em seu novo filme Os Oito Odiados, durante
conversa com a imprensa, ao lado do ator Tim Roth, em sua passagem por
São Paulo em novembro, para divulgar o longa, que chega nesta quinta aos
cinemas. De fato. Os Oito Odiados é uma pintura bem
traçada de um cenário de faroeste pós-moderno. Não no quesito estilo ‘de
época’ ou ‘futurista’, mas cronológico. O universo visual do longa é
fiel à época em que se passa a história, cerca de seis a dez anos após a
Guerra Civil Americana (1861 – 1865). “Eu sei que o tempo está passando. Cada novo filme
meu é um novo gênero, mas eu amo westerns e sinto realmente que a gente
precisa fazer três westerns para se autodeclarar um diretor do gênero.
Agora que eu filmei Django e deu certo, eu me disse: ‘vamos fazer de
novo agora que sei o que estou fazendo”, comentou Tarantino, que, a
propósito, esteve no Brasil pela primeira vez em 1992, na Mostra de São Paulo, quando passeou desapercebido pela Rua Augusta, entre uma sessão e outra de seu primeiro longa, Cães de Aluguel. Fica a dúvida se, tendo sido Django Livre (2012),
seu primeiro faroeste e a maior bilheteria de sua carreira, haverá
ainda um terceiro faroeste a caminho. Isso ganha importância quando se
lembra que Tarantino continua garantindo que só fará dez filmes e que
restam apenas dois a serem realizados. Depois, diz que vai produzir,
escrever peças e até livros. A ver.
Oito vilões e nenhum herói. De volta a Os Oito Odiados, o longa narra a saga de John Ruth (Kurt Russell, de À Prova de Morte), conhecido como O Carrasco, que, algemado à condenada à forca Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh, de Kansas City e Mulher Solteira Procura), a conduz em uma diligência para a cidade de Red Rock, no Wyoming, noroeste americano.
Enquanto uma nevasca se aproxima, eles se deparam com o também caçador
de recompensas Marquis Warren (Samuel L. Jackson), major e ex-soldado da
União. Ele é também incansável e carrega uma lendária carta escrita
para ele por Abraham Lincoln (1809 – 1865). Aos três, ainda se une Chris
Mannix (Walton Goggins), confederado e racista, que garante que é o
recém-nomeado xerife de Red Rock. A nevasca chega e eles se abrigam no Armazém-estalagem da Minnie. Ilhados, terão de passar alguns dias juntos com outros hóspedes até que o tempo melhore. Os outros quatro são o enforcador Oswaldo Mobray (Tim Roth, parceiro de longa data de Tarantino, de Cães de Aluguel e Pulp Fiction), o general sulista Sanford Smithers (Bruce Dern), o cowboy Joe Cage (Michael Madsen, também de Cães de Aluguel e Kill Bill) e o mexicano Bob (Demián Bichir), que diz cuidar da taverna enquanto Minnie está viajando. “São os ‘Tarantino Superstars’. Não é todo tipo de ator que consegue dizer as falas que crio. Meus personagens são ótimos atores. Eles fingem ser algo que não são. Vendem mentiras”, comentou o diretor, com razão. Mas, como é de se prever, o tempo só piora tanto
fora quanto dentro da taverna e, como em um jogo de detetive em que cada
pista vai sendo revelada aos poucos, os laços que unem cada um dos
odiáveis, mas apaixonantes personagens, vão se revelando. “Parte deste filme é que havia uma conexão com Cães de Aluguel
que não pode ser negada. Um bando de gente em um grande cenário, que
não confia um no outro”, analisou o cineasta sobre o fato de não haver
um vilão ou um herói específico no novo longa.
A atriz Jennifer Jason Leigh vive a condenada Daisy Domergue Para os fãs mais ferrenhos, Os Oito Odiados
cumpre a ‘check list’ e traz os ingredientes já clássicos da
cinematografia tarantinesca. Além de muito sangue, violência,
virtuosismo visual, diálogos ‘de metralhadora’, flashbacks e narração
(pense no ‘narrador revelador’ de Pulp Fiction), há, claro, referências a mestres do cinema, como, para dizer o mínimo, Sergio Leone (a trilha sonora de Os Oito Odiados não por acaso é de Ennio Morricone) e Sam Peckinpah (pense em Meu Ódio Será Tua Herança). E há a capacidade de
Tarantino ‘relembrar’ de figuras que andam um tanto esquecidas e jogar
luz novamente sobre elas. É o caso de Jason Leigh. Como bem disse o
diretor, a atriz, que “nos anos 90 era um Sean Penn de saias”, traz um
humor irônico, um sorriso de canto e um olhar violento que torna Daisy
um dos melhores personagens da trama, ao lado do, um tanto exagerado,
mas inspirado, Samuel L. Jackson. “Daisy tinha que se revelar para mim. Tinha toda
uma empolgação em achar a pessoa certa para viver a Daisy. Eu precisava
de uma atriz dos anos 1990. Quando Jennifer apareceu, ela fez um teste
ótimo”, contou o diretor. “Mas a Daisy não era o tipo de personagem que
você entra em um escritório e faz um bom teste. A gente precisa fazer
uma cena inteira. E eu assisti a um monte de filmes da Jennifer, como Miami Blues, Rush… E eu simplesmente, depois de assistir a um monte deles, entendi que tinha de ser ela.” Samuel L. Jackson em cena do filme, que traz, ainda que ‘à la tarantinesca’, questões como racismo, xenofobia e machismoQuestão racial e a realidade hoje – Vale lembrar que o primeiro western de Tarantino, Django Livre
(2012) não traz este nome por acaso e homenageia o herói do gênero
(imortalizado por Franco Nero no longa de Sergio Corbucci). O longa, uma
incursão do diretor no western spaghetti que se passa pouco antes da
Guerra Civil ser deflagrada, traz Django (Jamie Foxx), um escravo
liberto, em sua jornada para livrar sua esposa de um fazendeiro cruel.
Muitos apontaram como um manifesto contra o racismo, enquanto outros,
como Spike Lee, sentiram-se ofendidos. “A escravidão americana
não foi um western spaghetti de Sergio Leone. Foi um holocausto. Meus
ancestrais foram escravos, roubados da África. Eu vou honrá-los”,
afirmou Lee em sua conta no Twitter, respondendo porque não veria
Django. No entanto, por mais que homenageiem os antigos
westerns e a trama se desenrole no passado, o presente perpassa toda a
narrativa, estilo e diálogos (muitos!) de Os Oito Odiados. O
próprio Tarantino, apesar de não gostar que se façam comparações entre
as questões sociais e políticas atuais com as trazidas em seus longas,
afirma que os clássicos do faroeste, gênero que o diretor adora e do
qual traz sempre referências, traduziram cada um sua época. Se os faroestes dos anos 30 refletiam a crise econômica depois da grade quebra da Bolsa em 29, os dos anos 50 refletiam a Era Eisenhower, e os dos anos 60 e 70 traziam o ar de questionamento da época. E Os Oito Odiados, ainda
que ‘alla tarantinesca’, reflete muito do que os Estados Unidos (e
países como Brasil) passam atualmente quando o assunto é igualdade
racial e a condição do negro na sociedade. Não por acaso o diretor
revelou que tirou da versão final do filme um diálogo que se referia à
tensão racial na Carolina do Sul. Obviamente, na obra de Tarantino, a questão racial
é ‘discutida’ à custa de muitos tiros e violência. No entanto, ‘pintar
com sangue’ não é a única, e nem a mais destacável, característica do
longa, mas sim a teatralidade da ação. A fotografia de Robert Richardson, que filmou o longa em 70mm (diz o diretor que com as câmeras que também rodaram o clássico Ben-Hur, de William Wyller, 1959), Os Oito Odiados poderia até esbanjar cenas panorâmicas, longas sequências nas montanhas nevadas onde a ação começa. Mas o cineasta fez do
filme, ironicamente, mas não por acaso, sua obra mais teatral. Apesar
de ser um cenário ‘real’, não é um dos filmes mais realistas do diretor,
ainda que traga questões como racismo, xenofobia e machismo. Quase toda
a ação se passa dentro do bar-armazém e a amplitude de campo da imagem
permite ao espectador observar os personagens em pontos diversos do
cenário. “Nenhum filme meu foi tão lindo e cinematográfico”, afirma o cineasta. Um dos pôsteres do filme, em que a violência é peça narrativaNasci para fazer Os Oito Oidados –
Interessante lembrar que quando foi recentemente entrevistado pelo
crítico Ben Mankiewicz, apresentador do Turner Classics Movies,
Tarantino foi questionado sobre o que ele diria de quem tem como seu
filme preferido Jackie Brown (1997), o menos ‘tarantinesco’ de seus filmes, o único cujo roteiro surgiu do livro Rum Punch de Elmore Leonard e que tem pés mais calcados no drama que outros clássicos de sua cinematografia, como Kill Bill.
“Este é meu longa mais sóbrio. É o que não se passa no ‘mundo de
Tarantino’, mas no mundo real. Diria que estas pessoas gostam deste
filme são as que apreciam este tipo de cinema, mais do que de Kill Bill”, comentou o diretor. “Mas eu não vim à Terra para fazer isso. Eu estou aqui para fazer outra coisa. Eu estou aqui para fazer Os Oito Odiados”, acrescentou Quentin, que curiosamente filmou seu filmes ‘mais maduros’ aos 30 anos. Justamente! Ainda que
auto-referente, Tarantino é honesto com sua própria trajetória e seu
talento. E sabe que como pouquíssimos um de seus maiores dons é o de
colher referências de clássicos do cinema (sejam clássicos orientais, blaxploitation,
filmes B, western spaghetti) e criar em sua cozinha criativa um prato
cheio para os fãs ávidos por seus diálogos verborrágicos, suas
sequências acrobáticas, suas homenagens… e fazer de seu cinema único e
inconfundível. O caçador de recompensas Samuel L. Jackson, que desde Pulp Fiction
não se acertava tão bem com Tarantino, protagoniza cenas em que o
sangue e o racismo não são pincelados, mas atirados na tela e na cara da
plateia como num quadro de Pollock. E é o limiar entre o riso nervoso e
o surreal da situação que se encontra o centro nevrálgico do cinema que
o cineasta constrói. Pode-se sair rindo do cinema como quem assistiu a
mais um inócuo vídeo game em que a violência já virou guache escolar. Ou
pode-se sair mareado, com náusea de quem foi sacudido ao ver que
algumas ‘piadas’ do século 19 ainda se mantém.
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