The Observer
O teatro de sangue das touradas
Patrimônio cultural ou brutalidade gratuita? A Espanha divide-se, enquanto aperta o cerco à prática
por Duncan Wheeler
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publicado
13/01/2016 05h37
Marcelo Del Pozo/ Reuters/ Latinstock
A emoção autêntica dos puristas mudou-se para as arenas do interior
"Longa
vida à Virgem do Rocio!” Não são as primeiras palavras que me
ocorreriam se eu fosse o alvo de um corte abdominal de 25 centímetros
que atingisse minha espinha – um dos vários motivos pelos quais,
provavelmente, nunca terei uma carreira de sucesso como matador.
As últimas palavras murmuradas por
Francisco Rivera, antes de receber tratamento médico em agosto deste ano
para um ferimento potencialmente fatal, não apenas revelaram que as
touradas continuam inextricavelmente ligadas à iconografia religiosa,
como também que a capacidade de enfrentar a morte em termos tanto
teatrais quanto estoicos é crucial para sua atração e seu romantismo.
Em termos técnicos, Rivera nunca foi um
toureiro de primeira classe, mas esta não é uma condição necessária ou
suficiente para o sucesso. Aos 10 anos, o neto de Antonio Ordóñez –
idolatrizado por Ernest Hemingway em O Verão Perigoso (Dangerous Summer)
– perdeu seu pai para um touro em 1984. Rivera pai, popularmente
conhecido como Paquirri, foi confirmado como mártir e santo quando
circulou a gravação em vídeo do bravo toureiro sangrando até a morte e,
ao mesmo tempo, reconfortando um cirurgião despreparado e visivelmente
em pânico.
Apesar de as capacidades médicas terem
reduzido as mortes, 2015 foi um ano incomumente sangrento em termos
humanos: além de 13 mortes em encierros (corridas com touros), vários matadores sofreram ferimentos que ameaçam suas vidas e carreiras nas praças de touros.
- Chifrado em agosto, Rivera, neto de Ordóñez, tenta escapar ao destino do pai Paquirri.(Gonzalez Poveda/ AFP)
Pela primeira vez na era moderna, a sobrevivência do que já foi chamado de fiesta nacional
da Espanha também está ameaçada. Ativistas dos direitos dos animais
descobriram que uma porcentagem significativa da população cada vez mais
vê as touradas
como um ralo de dinheiro em tempos de crise econômica e um símbolo dos
males do país: cruéis, parasitárias e desligadas da realidade.
Uma profissão com arraigadas divisões
internas se vê malpreparada para defender-se de uma oposição unida e uma
rápida mudança na mentalidade do público. Os cortes de verbas ameaçam o
futuro das escolas de treinamento; novos planos polêmicos do Ministério
da Educação do governo de direita do Partido Popular para proteger sua
viabilidade financeira, incorporando as touradas aos cursos
profissionalizantes, enfrentam férrea oposição.
Ángeles González-Sinde, ex-ministra da Cultura (2009-2011)
pelo Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), disse-me que os
jovens que se emanciparam no início dos anos 1980, após a morte de
Franco, apreciavam assistir às touradas, e que havia forte admiração e
afiliação a certos toureiros principais, que se misturavam com as
figuras mais famosas de La Movida, o movimento jovem abastecido com
drogas que colocou Pedro Almodóvar
e sua cidade adotiva, Madri, no mapa internacional. Ela acredita que
essa conexão se perdeu, e que os adolescentes hoje veem as touradas como
algo estranho à sua cultura cada vez mais globalizada.
Quando eu estava no festival de
música independente Sonorama, neste verão, tive de ir sozinho a uma
tourada, já que nenhum membro do meu grupo quis me acompanhar. Em
contraste, duas semanas depois me vi em um clube de praia privado em
Sotogrande – geralmente frequentado por políticos, magnatas dos imóveis,
banqueiros e um elenco variado de atores do mundo do polo – e descobri
que a sala onde eram transmitidas as touradas pelo Canal+ era um lugar
muito frequentado.
O rei aposentado, Juan Carlos, é um firme defensor das
corridas (seu filho, Felipe VI, manteve um silêncio diplomático), mas
isso de pouco serve aos proponentes das touradas, porque sua posição na
opinião pública está no nível mais baixo já registrado. Imagens do rei
emérito em San Sebastián para comemorar a volta dos touros depois de
três anos não ajudaram a afastar os preconceitos enraizados sobre os
aficionados como figuras reacionárias fumantes de charutos, de uma
geração mais velha.
A reversão da proibição anterior na cidade litorânea
basca foi consequência de uma mudança nas regras municipais; na verdade,
é impossível compreender os debates que cercam as touradas sem levar
em conta a realidade territorial e política de um Estado-Nação que
compreende 17 regiões autônomas. Depois de serem proibidas há muitos
anos nas Ilhas Canárias, a interdição de 2011 na Catalunha
alimentou os debates sobre a independência, como evidência da distinção
entre os nacionalistas e o Estado centralizador. Essa abordagem pôs de
lado a tradição das touradas em Barcelona e sua região, enquanto a
rejeição de uma atividade cultural como manifestação de uma Espanha
conservadora deixa de mencionar que ela ainda é praticada em grande
parte do sul da França.
José Tomás, hoje o
principal toureiro do mundo, tomou uma decisão consciente de fazer seu
retorno para uma plateia lotada na capital catalã em 2007; sua
apresentação individual em Nîmes, sul da França, em 2012, com seis
touros – o formato-padrão seriam três toureiros enfrentarem dois touros
cada –, é considerada a melhor corrida da era moderna.
Enquanto a imprevisibilidade de um
evento que depende tanto de um animal quanto de um ser humano é crucial
para a emoção da apresentação ao vivo, a comunhão entre um toureiro, o
touro e o público raramente alcança o grau de sincronia capaz de
satisfazer a definição de arte de um purista. Este é um sério obstáculo
para o frequentador ocasional, especialmente quando os ingressos
decentes custam mais de 50 euros (cerca de 200 reais). Daí a atração dos
toureiros exibicionistas e “celebridades”, que se mostram especialmente
populares nas arenas de província.
Em termos de entretenimento puro, Juan
José Padilla, com sua atual marca registrada, o tapa-olho – resultado de
uma cornada quase fatal em 2011 – e parafernália de pirata, é difícil
de superar, pelo menos até que a pessoa se acostume com seus truques
típicos. Assisti a Morante de la Puebla, o matador preferido de muitos
aficionados, ser vaiado por uma apresentação abaixo da média em
Antequera no último verão; o público foi mais indulgente com uma
exibição caótica de El Pana, mexicano setuagenário que fuma um charuto
antes de empunhar a espada. O artista, sem se incomodar com o fato de
que precisou de seis tentativas deselegantes e cruéis para matar seu
segundo touro, circulava pela arena em velocidade cada vez maior,
atiçando a multidão ao frenesi, como se tivesse acabado de oferecer uma
obra magistral.
A santidade do ritual também foi
perturbada diversas vezes este ano pelos manifestantes que saltam o
cercado. Peter Janssen foi especialmente atuante nesse sentido. Em
agosto, esse holandês pulou para a arena em Marbella juntamente com um
colega manifestante durante uma apresentação de Morante, que depois se
recusou a matar o segundo touro em protesto contra a polícia, que puniu
sua equipe por conter os invasores; o toureiro também tomou medidas
legais contra ativistas que o chamaram de assassino.
O lobby a favor das touradas
costuma acusar seus críticos de antropomorfismo – a atribuição de
qualidades humanas aos animais –, embora eles dificilmente sejam imunes a
essa tendência. Os touros na arena sempre têm nomes, e os comentaristas
do Canal+ costumam dizer que um animal em más condições teve “sorte”
porque um toureiro hábil ressaltou suas melhores qualidades.
Cantos e slogans populares nas
demonstrações incluem “Touradas, o Guantánamo nacional”, “Touradas,
vergonha da nação” ou “Tortura não é cultura”. A questão maior e mais
preocupante é: a posição cultural das touradas justifica que continuem
existindo? Federico García Lorca
e Pablo Picasso foram grandes aficionados, e indivíduos que normalmente
seriam considerados civilizados continuam obtendo grande prazer ao ver
um homem enfrentar um animal potencialmente mortal.
Criado com carne processada, o público anglo-americano tem
cada vez menos contato direto com as duras realidades da natureza, e
muitas vezes carece da sensibilidade ou do vocabulário para discutir a
morte. Talvez o argumento mais forte contra as touradas seja o de que a
estetização pode distrair da realidade do que está ocorrendo. O desafio
moral é resistir à rejeição simplista sem cair em um pastiche de
Hemingway.
*Reportagem publicada originalmente na edição 877 de CartaCapital, com o título "Teatro de sangue"
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