quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

The Observer

O teatro de sangue das touradas

Patrimônio cultural ou brutalidade gratuita? A Espanha divide-se, enquanto aperta o cerco à prática
por Duncan Wheeler — publicado 13/01/2016 05h37

Marcelo Del Pozo/ Reuters/ Latinstock
Touradas
A emoção autêntica dos puristas mudou-se para as arenas do interior
"Longa vida à Virgem do Rocio!” Não são as primeiras palavras que me ocorreriam se eu fosse o alvo de um corte abdominal de 25 centímetros que atingisse minha espinha – um dos vários motivos pelos quais, provavelmente, nunca terei uma carreira de sucesso como matador.
As últimas palavras murmuradas por Francisco Rivera, antes de receber tratamento médico em agosto deste ano para um ferimento potencialmente fatal, não apenas revelaram que as touradas continuam inextricavelmente ligadas à iconografia religiosa, como também que a capacidade de enfrentar a morte em termos tanto teatrais quanto estoicos é crucial para sua atração e seu romantismo.
Em termos técnicos, Rivera nunca foi um toureiro de primeira classe, mas esta não é uma condição necessária ou suficiente para o sucesso. Aos 10 anos, o neto de Antonio Ordóñez – idolatrizado por Ernest Hemingway em O Verão Perigoso (Dangerous Summer) – perdeu seu pai para um touro em 1984. Rivera pai, popularmente conhecido como Paquirri, foi confirmado como mártir e santo quando circulou a gravação em vídeo do bravo toureiro sangrando até a morte e, ao mesmo tempo, reconfortando um cirurgião despreparado e visivelmente em pânico.
Apesar de as capacidades médicas terem reduzido as mortes, 2015 foi um ano incomumente sangrento em termos humanos: além de 13 mortes em encierros (corridas com touros), vários matadores sofreram ferimentos que ameaçam suas vidas e carreiras nas praças de touros. 
Rivera .jpg
Chifrado em agosto, Rivera, neto de Ordóñez, tenta escapar ao destino do pai Paquirri.(Gonzalez Poveda/ AFP)

Pela primeira vez na era moderna, a sobrevivência do que já foi chamado de fiesta nacional da Espanha também está ameaçada. Ativistas dos direitos dos animais descobriram que uma porcentagem significativa da população cada vez mais vê as touradas como um ralo de dinheiro em tempos de crise econômica e um símbolo dos males do país: cruéis, parasitárias e desligadas da realidade.
Uma profissão com arraigadas divisões internas se vê malpreparada para defender-se de uma oposição unida e uma rápida mudança na mentalidade do público. Os cortes de verbas ameaçam o futuro das escolas de treinamento; novos planos polêmicos do Ministério da Educação do governo de direita do Partido Popular para proteger sua viabilidade financeira, incorporando as touradas aos cursos profissionalizantes, enfrentam férrea oposição.
Ángeles González-Sinde, ex-ministra da Cultura (2009-2011) pelo Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), disse-me que os jovens que se emanciparam no início dos anos 1980, após a morte de Franco, apreciavam assistir às touradas, e que havia forte admiração e afiliação a certos toureiros principais, que se misturavam com as figuras mais famosas de La Movida, o movimento jovem abastecido com drogas que colocou Pedro Almodóvar e sua cidade adotiva, Madri, no mapa internacional. Ela acredita que essa conexão se perdeu, e que os adolescentes hoje veem as touradas como algo estranho à sua cultura cada vez mais globalizada.
Quando eu estava no festival de música independente Sonorama, neste verão, tive de ir sozinho a uma tourada, já que nenhum membro do meu grupo quis me acompanhar. Em contraste, duas semanas depois me vi em um clube de praia privado em Sotogrande – geralmente frequentado por políticos, magnatas dos imóveis, banqueiros e um elenco variado de atores do mundo do polo – e descobri que a sala onde eram transmitidas as touradas pelo Canal+ era um lugar muito frequentado.
O rei aposentado, Juan Carlos, é um firme defensor das corridas (seu filho, Felipe VI, manteve um silêncio diplomático), mas isso de pouco serve aos proponentes das touradas, porque sua posição na opinião pública está no nível mais baixo já registrado. Imagens do rei emérito em San Sebastián para comemorar a volta dos touros depois de três anos não ajudaram a afastar os preconceitos enraizados sobre os aficionados como figuras reacionárias fumantes de charutos, de uma geração mais velha.
Ex-rei Juan Carlos.jpg
Ex-rei Juan Carlos estava em San Sebastián. (Garikoitz Garaialde/ Getty Images/ AFP)
A reversão da proibição anterior na cidade litorânea basca foi consequência de uma mudança nas regras municipais; na verdade, é impossível compreender os debates que cercam as touradas sem levar em conta a realidade territorial e política de um Estado-Nação que compreende 17 regiões autônomas. Depois de serem proibidas há muitos anos nas Ilhas Canárias, a interdição de 2011 na Catalunha alimentou os debates sobre a independência, como evidência da distinção entre os nacionalistas e o Estado centralizador. Essa abordagem pôs de lado a tradição das touradas em Barcelona e sua região, enquanto a rejeição de uma atividade cultural como manifestação de uma Espanha conservadora deixa de mencionar que ela ainda é praticada em grande parte do sul da França.
José Tomás, hoje o principal toureiro do mundo, tomou uma decisão consciente de fazer seu retorno para uma plateia lotada na capital catalã em 2007; sua apresentação individual em Nîmes, sul da França, em 2012, com seis touros – o formato-padrão seriam três toureiros enfrentarem dois touros cada –, é considerada a melhor corrida da era moderna.
Enquanto a imprevisibilidade de um evento que depende tanto de um animal quanto de um ser humano é crucial para a emoção da apresentação ao vivo, a comunhão entre um toureiro, o touro e o público raramente alcança o grau de sincronia capaz de satisfazer a definição de arte de um purista. Este é um sério obstáculo para o frequentador ocasional, especialmente quando os ingressos decentes custam mais de 50 euros (cerca de 200 reais). Daí a atração dos toureiros exibicionistas e “celebridades”, que se mostram especialmente populares nas arenas de província.
Em termos de entretenimento puro, Juan José Padilla, com sua atual marca registrada, o tapa-olho – resultado de uma cornada quase fatal em 2011 – e parafernália de pirata, é difícil de superar, pelo menos até que a pessoa se acostume com seus truques típicos. Assisti a Morante de la Puebla, o matador preferido de muitos aficionados, ser vaiado por uma apresentação abaixo da média em Antequera no último verão; o público foi mais indulgente com uma exibição caótica de El Pana, mexicano setuagenário que fuma um charuto antes de empunhar a espada. O artista, sem se incomodar com o fato de que precisou de seis tentativas deselegantes e cruéis para matar seu segundo touro, circulava pela arena em velocidade cada vez maior, atiçando a multidão ao frenesi, como se tivesse acabado de oferecer uma obra magistral.
José Tomás.jpg
José Tomás já encarou seis touros de uma vez.(Pepe Marin/ Reuters/ Latinstock)

A santidade do ritual também foi perturbada diversas vezes este ano pelos manifestantes que saltam o cercado. Peter Janssen foi especialmente atuante nesse sentido. Em agosto, esse holandês pulou para a arena em Marbella juntamente com um colega manifestante durante uma apresentação de Morante, que depois se recusou a matar o segundo touro em protesto contra a polícia, que puniu sua equipe por conter os invasores; o toureiro também tomou medidas legais contra ativistas que o chamaram de assassino.
O lobby a favor das touradas costuma acusar seus críticos de antropomorfismo – a atribuição de qualidades humanas aos animais –, embora eles dificilmente sejam imunes a essa tendência. Os touros na arena sempre têm nomes, e os comentaristas do Canal+ costumam dizer que um animal em más condições teve “sorte” porque um toureiro hábil ressaltou suas melhores qualidades.
Cantos e slogans populares nas demonstrações incluem “Touradas, o Guantánamo nacional”, “Touradas, vergonha da nação” ou “Tortura não é cultura”. A questão maior e mais preocupante é: a posição cultural das touradas justifica que continuem existindo? Federico García Lorca e Pablo Picasso foram grandes aficionados, e indivíduos que normalmente seriam considerados civilizados continuam obtendo grande prazer ao ver um homem enfrentar um animal potencialmente mortal.
Criado com carne processada, o público anglo-americano tem cada vez menos contato direto com as duras realidades da natureza, e muitas vezes carece da sensibilidade ou do vocabulário para discutir a morte. Talvez o argumento mais forte contra as touradas seja o de que a estetização pode distrair da realidade do que está ocorrendo. O desafio moral é resistir à rejeição simplista sem cair em um pastiche de Hemingway. 
*Reportagem publicada originalmente na edição 877 de CartaCapital, com o título "Teatro de sangue"

Nenhum comentário:

Postar um comentário