A religião do deus mercado nos devolve às vicissitudes do passado e aprofunda a desigualdade. E os trabalhadores? Que se moam
Um filme muito tocante ao contar uma história de operários explorados é I Compagni, os companheiros, de Mario Monicelli, um dos top ten
da minha lista pessoal de diretores de cinema. Monicelli desenrola seu
enredo em Turim, final do século XIX, onde a industrialização avança
para o enriquecimento dos industriais e o esforço brutal dos
trabalhadores obrigados a 14 e mais horas de trabalho diário.
A seu modo, uma peça épica sobre a luta
operária, e nela trafega o pregador profissional de revolta, um Marcello
Mastroianni anarcossindicalista, de barba e chapéu. Ficção atada
solidamente a episódios e personagens autênticos de um tempo distante.
Obra de 1963, a que assisti em Nova York nos começos do ano seguinte, em
um dos dias de um estágio na Time-Life. Quando a palavra fim estampou-se sobre a tela, o público que lotava a sala ergueu-se e bateu palmas. Era mesmo uma história empolgante.
Quando penso nos efeitos inevitáveis da
terceirização, e do precariado já instalado, me ocorre recordar o filme
de Monicelli. Aquele industrial e aquele operário sumiram de vez, está
claro, bem como os cenários em que se agitavam. Habitamos um mundo
metamorfoseado pelo galope da tecnologia, em mutação constante.
Terceirização e precariado andam inexoravelmente na contramão,
representam um amplo passo atrás a nos devolver a um passado de roupa
nova, paradoxalmente sintonizado com o presente e, no entanto, capaz de
reproduzir aqueles tormentos e vicissitudes.
O fenômeno não
é exclusivamente brasileiro. É global, nesta nossa Terra sempre incapaz
de dar guarida aos seus santos, como diria Bernard Shaw. A tecnologia
progride juntamente com a irracionalidade. E com a prepotência de um
sistema que aprofunda o abismo entre ricos e pobres. O mal está
diagnosticado, sua evidência, aliás, é insuportável, mas os poderosos do
mundo recusam-se a aviar a receita óbvia para reconduzir a humanidade
em peso ao domínio da razão. Não a consideram do seu interesse.
A regra imposta pelo credo neoliberal, a religião do
mercado, privilegia a especulação, humilha a produção e penaliza
inexoravelmente o trabalho. Inescapável reflexão, nuvem preta a
ensombrecer o dia 1º de Maio. Pergunto aos meus melancólicos botões
quantos empresários nativos já aderiram alegremente ao rentismo.
Suspiram: muitos, muitos...
De paletó abotoado e gravata, na noite de terça 28 fui à
Faculdade de Direito do Largo de São Francisco que em tempos
remotíssimos frequentei como estudante, para participar do encerramento
de um ciclo de homenagens ao professor Fábio Konder Comparato.
Tratou-se, de fato, de uma aula magna ministrada pelo mestre, sábio
elegante e desassombrado. Ele próprio supõe-se pessimista, mas não
concordo: formula até um plano para redimir o Brasil. A longo prazo,
admite, destinado, porém, a mobilizar a sociedade civil e a quebrar de
vez a espinha da oligarquia. Eu não consigo imaginar este dia radioso,
sequer contamos com os sans culottes.
Autorizado a tomar a palavra, declarei-me
aluno do homenageado, e feliz por isso, ao perceber todo o peso da
herança de três séculos e meio de escravidão, pelo qual continuam de pé a
casa-grande e a senzala, e se quisermos, os sobrados e os mocambos,
presentes nas nossas metrópoles. De todo modo, sem padecer da mesma
herança, o resto do mundo também sofre o mal da desigualdade, cada vez
mais monstruosa, fiel do Moloch neoliberal, entregue à oligarquia das
multinacionais que mandam mais, infinitamente mais, do que os governos
nacionais.
Receio que para piorar a nossa situação, e
apesar das suas inesgotáveis potencialidades, mas com a agravante do
seu atraso largamente demonstrável, o Brasil já se adéque ao viés
global.
Nenhum comentário:
Postar um comentário