terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Os números 
da falta d’água


Como a Matemática pode ajudar na análise crítica 
da informação sobre a seca em São Paulo

//Por José Luis Pastore Mello
Dizem que uma das características dos gênios da nossa espécie é a de prever situações muito antes do que nós, pobres mortais, seríamos capazes. Guimarães Rosa, um dos nossos maiores escritores de todos os tempos, fez valer a regra ao dizer que “A água de boa qualidade é exatamente como a saúde ou a liberdade: ela só tem valor quando acaba”. 
 
E aqui, nesse nosso tempo que não vai tão longe ao de Guimarães, a cada dia somos convidados a manifestar uma opinião sobre o problema da falta d’água nas rodas de conversas. Cada qual forma e reforma sua opinião com base em muitos elementos, não ficando de fora as estatísticas do volume de água das represas, os dados técnicos divulgados pelos climatologistas e, é claro, a análise dos argumentos dos políticos e técnicos da companhia de saneamento básico de São Paulo (Sabesp) que, no frigir dos ovos, são aqueles que batem o martelo no que diz respeito à questão da água.
 
O terreno das estatísticas e dos discursos políticos pode ser bem traiçoeiro se não for analisado com cuidado e, nesse sentido, o conhecimento da matemática pode ajudar na análise crítica da informação. Vejamos o caso dos dados divulgados pela Sabesp sobre o uso da reserva técnica, chamada popularmente de “volume morto”, do Sistema Cantareira.
 
A reserva técnica é a água represada que está abaixo do nível usual de captação do Sistema. Imagine uma jarra de 25 centímetros de altura que esteja cheia d’água. Fazendo um furo na lateral da jarra, à distância de 20 centímetros do topo, uma coluna de água de 20 centímetros de altura irá vazar pelo furo, até que o nível de água se estabilize a 5 centímetros da base da jarra. Sem tombar a jarra, e sem fazer um novo furo abaixo de 5 centímetros, se eu quiser beber a “reserva técnica” de água que sobrou na jarra, posso apelar para o uso de um canudinho que, no caso das nossas represas, são as 17 bombas flutuantes instaladas em caráter emergencial no Sistema Cantareira, ao custo total de 80 milhões de reais. 
 
As bombas flutuantes começaram a funcionar em maio de 2014 quando, segundo dados da Sabesp, o nível de água do Sistema Cantareira era de 8,2%. Mas o que significaria essa porcentagem no caso da jarra d’água? O número anunciado pela Sabesp diz respeito à porcentagem da capacidade útil da represa que, na jarra, corresponde à coluna de 20 centímetros de água. Assim, calculando 8,2% de 20 centímetros, concluímos que o canudinho começou a ser usado quando a coluna de água da jarra estava 1,64 centímetro acima do furo, ou seja, à 18,36 cm do topo da jarra.
 
Ainda de acordo com os dados da Sabesp, a primeira cota de água da reserva técnica “subiu” o nível dos reservatórios para 26,7%, e é aí que reside o território ardiloso dos números anunciados. Os dados sugerem que houve um aumento de 18,5 pontos percentuais no total de água, contudo, não foi bem isso o que aconteceu. 
 
De fato passamos a ter maior volume de água liberada para distribuição, porém, ao custo de uma redução do volume total de água do Sistema Cantareira, que simplesmente não era computado anteriormente como água disponível. Não é tarefa simples estimar o volume total do Cantareira, o que efetivamente englobaria toda a água do Sistema, e talvez seja esse o motivo pelo qual a Sabesp divulga apenas as porcentagens sobre o volume útil. Acredita-se haver cerca de 400 bilhões de litros de reserva técnica, que se somariam aos 982,07 bilhões de litros de capacidade útil do Sistema. 
 
Comparando com nosso exemplo da jarra de água, o desconhecimento do volume total do Sistema Cantareira ou, mais precisamente, do volume de água da reserva técnica, é equivalente a dizer que o furo de escoamento da água da nossa jarra está à 20 centímetros do seu topo, mas não sabemos ao certo a que distância ele está da base da jarra. Rearranjando as palavras: não sabemos exatamente qual é a altura da nossa jarra; os 25 centímetros citados no início do artigo eram a mais pura ficção.  
 
Fato é que a comparação com a jarra de água permite sim concluir algo importante: a captação da primeira cota de água da reserva técnica é equivalente a tampar o furo existente na jarra, que estava à 20 centímetros do topo da jarra, e abrir um novo furo abaixo daquele que acabamos de fechar.
 Saindo do terreno delicado da porcentagem divulgada, é importante que fique claro que a medida emergencial adotada só teve um alcance efetivo, que foi o de empurrar o furo da jarra mais para baixo do que a posição em que se encontrava antes.
 
Já se vai longe o mês de maio. Hoje estamos usando a segunda quota da reserva técnica do Sistema. De acordo com dados disponíveis no site da Sabesp (consultados em 08 de novembro), o nível atual do Sistema Cantareira é de 11,5%. Vale ainda citar mais uma vez que aquilo que a Sabesp anuncia no site como volume total do Sistema (982,07 bilhões de litros) corresponde ao volume útil (não inclui a reserva técnica), e não propriamente ao volume total.
O gráfico com dados diários da pluviosidade sobre a área do Sistema Cantareira mostra que índices altos de chuva estão bem longe de refletirem diretamente em aumento do nível de água nos reservatórios. Por exemplo, no dia 21 de outubro, quando ocorreu uma reconfortante precipitação de 23,9 mm sobre o Sistema Cantareira, ainda assim os níveis de água continuaram caindo nos dias subsequentes. Para se ter uma ideia do que isso significa, cada milímetro de precipitação representa um litro de água por metro quadrado de superfície. 
 
No caso do Sistema Cantareira, cuja área total inundada dos reservatórios é de 75 km², os 23,9 mm de chuvas de um dia implicaram em quase 1,8 bilhão de litros de água lançados diretamente sobre os reservatórios. E esse toró todo foi, em média, integralmente absorvido pelo solo, fato confirmado pelas estatísticas dos dias 21 e 22 de outubro em que medições acusaram queda de 3,3% para 3,2% no volume útil de água do Sistema. Ao que parece, o chão estava com mais sede do que nós.
 
As explicações para toda essa situação vão desde a fatalidade de um período atípico de estiagem, até o pouco caso com a preservação da cobertura vegetal na região do Sistema Cantareira que, segundo levantamentos da organização não-governamental SOS Mata Atlântica, está bem abaixo do ideal para uma região de bacia hidrográfica produtora de água. Estima-se, por exemplo, que 100 hectares (1 km²) de mata preservada produzem 10 mil litros de água em uma bacia com precipitação média anual de 1200 mm/ano, que é a média de água que cai no Sistema Cantareira em anos de baixa pluviosidade. Infelizmente essas estimativas não tiveram chance de confirmação  ou refutação já que nada foi feito nesse sentido no período anterior ao da crise da água.
 
Os números são todos alarmantes e assustadores, mas quando ouço um político discursando sobre a crise hídrica, saio convencido de que não há motivos para preocupação, que tudo está sob controle, e que o futuro está todo alinhavado e bem planejado. Em quem afinal devo acreditar? Onde é que me assento, nos números ou na argumentação política? Comecei o artigo com uma frase, e termino com outra, agora de Millôr Fernandes, que dizia: políticos são aqueles que preferem a versão aos fatos.
 


José Luis Pastore é graduado e mestre pela USP, professor de Matemática do Colégio Santa Cruz e membro do Comitê Editorial da Revista do Professor de Matemática (SBM)

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