“Dilma impôs no ano de 2013 a paralisação dos
procedimentos demarcatórios de terras indígenas”, diz o religioso. E pergunta:
"Por que os teólogos não aproveitaram a audiência com Dilma para unir-se aos
povos indígenas no grito uníssono de “Demarcação já!”?
Foto: Wikistrike |
A
chegada de um novo ano quase sempre traz votos de renovação e esperança. Porém,
2015 não começa com esse espírito para quem vive nas cercanias das obras de
construção da Usina
de Belo Monte, em Altamira,
no Pará. Em entrevista concedida por e-mail para IHU
On-Line, o bispo
do Xingu e presidente
do Conselho
Indigenista Missionário – CIMI, dom
Erwin Kräutler,
denuncia o que já havia previsto: “a grande euforia que cinco anos atrás tomou
conta da cidade de Altamira,
a ponto de muitos carros e motos exibirem adesivos “queremos Belo
Monte”, cedeu lugar a um surdo desânimo. Até agora, nada do que
comerciantes, empresários e os políticos de plantão esperaram e prognosticaram
como a salvação do oeste do Pará se realizou. A cidade está quase intransitável.
Homicídios, assaltos, arrastões estão na ordem do dia. O povo está apreensivo e
assustado”, pontua.
A
difícil situação apontada por dom
Erwin é ainda mais
complicada quando se tenta traçar uma perspectiva de futuro do governo que se
inicia. Isso, levando em consideração as posturas que a presidente Dilma
Rousseff vem adotando
nesse seu segundo mandato. Além de não citar questões que são velhas demandas de
povos indígenas em seu discurso de posse, a presidente nomeia Kátia
Abreu para o Ministério
da Agricultura. Sinais que, para dom
Erwin, podem dizer muito do que pode vir pela frente. “Para Dilma, Belo
Monte nunca foi assunto de
pauta com movimentos populares ou a população diretamente impactada. (...) O
governo continua a defender o latifúndio e os privilégios que tem concedido ao
agronegócio contra os povos indígenas. (...) O rolo compressor continuará a
passar por cima de todos nós aqui no Xingu e em breve por cima dos povos
do Tapajóse de outros rios
da Amazônia”, prevê.
Dom
Erwin Kräutler é bispo
prelado de Xingu, PA, presidente do Conselho Indigenista Missionário - CIMI.
Confira
a entrevista.
Foto: IHU |
IHU
On-Line - Há mais de cinco anos o senhor alerta para os riscos e implicações
sociais e ambientais da construção de Belo Monte. Como tem sido acompanhar esse
processo, desde a elaboração do projeto até o início da construção da
usina?
Dom
Erwin Kräutler - Na
realidade, essa luta contra o barramento do Rio
Xingu já dura mais de 30
anos. Por algum tempo acreditávamos que o projeto fosse arquivado. Foi engano.
Quando Lula assumiu o governo, em vez de
definitivamente renunciar a essa monstruosidade, abraçou-o e secundando os
pareceres eufóricos de sua ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff,
deu ênfase especial à execução da obra, incorporando-a ao Programa de Aceleração do Crescimento - PAC.
As
implicações sociais e ambientais estavam programadas, especialmente a partir
daquele dia fatídico em que o Governo entendeu que as condicionantes exigidas
pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente -
IBAMA e pela Fundação
Nacional do Índio - FUNAI não precisavam ser atendidas antes da
instalação do canteiro de obras, mas poderiam ser cumpridas ao longo da execução
do projeto. Com essa decisão, não foi instalado apenas o canteiro de obras, mas
também o caos em Altamira.
Durante a campanha eleitoral, a presidente
Dilma veio visitar Belo
Monte para gravar um vídeo.
Seu avião pousou no aeroporto de Altamira.
No entanto, ela não teve coragem de entrar na cidade para ver “in loco” o
descalabro que nos assola.
IHU
On-Line - Em que estágio se encontra a construção de Belo Monte?
Dom
Erwin Kräutler - Volta e
meia se noticia que a construção estaria atrasada por causa das várias manifestaçõescontrárias ao projeto. Mas, tenho a
impressão de que está bastante adiantada. Já são derrubadas as casas nos bairros
que serão atingidos, e as famílias, transferidas para as novas moradias
construídas em concreto. Sei, no entanto, que nem de longe haverá casas
suficientes para abrigar todas as famílias.
IHU
On-Line - O senhor tem visitado várias comunidades da Prelazia do Xingu. Qual é
o sentimento das pessoas em relação à construção de Belo Monte?
Dom
Erwin Kräutler - A grande
euforia que cinco anos atrás tomou conta da cidade de Altamira, a ponto de
muitos carros e motos exibirem adesivos “queremos
Belo Monte”,
cedeu lugar a um surdo desânimo. Até agora, nada do que comerciantes,
empresários e os políticos de plantão esperaram e prognosticaram como a salvação
do oeste do Pará se realizou. A cidade está quase intransitável. Homicídios,
assaltos, arrastões estão na ordem do dia. O povo está apreensivo e
assustado.
|
Houve
certo boom na construção civil devido à procura de aluguéis. Alguns ganharam
somas exorbitantes cedendo quartos ou casas a preços exagerados. Mas essa onda
passou quando a Norte
Energia instalou a vila
residencial bem próxima ao canteiro
de obras. A vila possui infraestrutura completa, com escola, farmácia,
supermercado, restaurantes, padaria, academia de ginástica, clube, biblioteca e
áreas livres para recreação e lazer e ainda serviços de clínica geral,
ginecologia, cardiologia, oftalmologia, pediatria, odontologia,
pronto-atendimento, laboratório e salas de raios-X e ultrassonografia. Essas
comodidades de primeiro mundo estão em manifesto contraste com as condições em
que vivemos na cidade da Altamira.
Lula me assegurou, num dos encontros que tive
com ele, que o governo havia aprendido a lição dos erros cometidos em outros
empreendimentos e Belo
Monte seria totalmente
diferente. Mas, na realidade, mais uma vez se repete a já conhecida história
da Usina
Hidrelétrica Tucuruí,
também no Estado do Pará (a 350 km ao sul de Belém), construída a partir de 1975
e inaugurada em novembro de 1984. Surgiu uma cidade-luxo em torno da obra, e a
cidade de Tucuruí foi condenada à categoria de cidade-lixo.
Nosso grande medo em Altamira é de que, na inauguração de Belo
Monte, as prometidas melhorias em infraestrutura nem de longe estejam
concluídas e, depois da festa, se desmonta o palanque e a população ficará
entregue à própria sorte.
IHU
On-Line - Que espécie de conflitos a construção de Belo Monte tem gerado entre
as comunidades indígenas e entre indígenas e não indígenas? Como Belo Monte tem
afetado e até mesmo rompido com a cosmologia indígena?
|
Dom
Erwin Kräutler - Desde que
decidiu construir Belo Monte,
o governo se equivocou quanto aos impactos que os povos indígenas da Grande Volta do Xingu iriam sofrer. Propagou-se por todo o
Brasil a informação de que nenhuma aldeia indígena seria inundada. E é verdade.
De fato, a água do reservatório não vai submergir nenhuma aldeia. O contrário
acontecerá: o rio que banha as aldeias vai sumir ou se tornará um córrego
atrofiado com uma sequência de lagoas bem rasas. O peixe desaparecerá e sem água
suficiente não haverá condições de sobrevivência nestes lugares. Os indígenas
forçosamente serão desterrados para outros locais. Muitos já se transferiram
para a cidade e perdem sua cultura, seus costumes e sua maneira própria de
organizar-se em comunidade. Lamentavelmente, grande número sucumbe aos vícios
dos brancos.
IHU
On-Line - O senhor leu a carta do Grupo de Emaús à presidente Dilma? Como vê as
manifestações do grupo de teólogos acerca dos impactos dos megaprojetos, sem
fazer referência direta às hidrelétricas?
Dom
Erwin Kräutler - A
carta entregue
pelo Grupo
Emaús à Presidente Dilma em audiência que ela concedeu a uma
delegação dessa entidade no dia 26 de novembro de 2014 tem o título “O
Brasil que queremos”. Vejo na escolha do título certa analogia com o
documento final da Conferência
das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável– Rio
+ 20 (20 a 22 de junho
de 2012) “O
futuro que queremos”. É um documento chocho e insosso, sem consequências
palpáveis. Assim também a carta dos teólogos não faz nenhuma reivindicação
pontualizada, nenhuma exigência concreta, nenhuma denúncia circunstanciada,
fornecendo nomes e endereços. E destarte, logicamente também não fala das
consequências perniciosas de Belo
Monte e de muitos outros
projetos doPrograma
de Aceleração do Crescimento - PAC. Não empresta sua voz — como se
esperaria de teólogos — às famílias arrancadas de seus lares e suas terras e de
tantos outros que foram atingidos por barragens ao longo das décadas passadas.
Não reclama nada. Só pede uma “reavaliação”.
|
Da
mesma maneira, só fala genericamente da defesa dos direitos
indígenas e quilombolas.
Não emprega uma única vez a palavra “demarcação”. Dilma impôs no ano de 2013 a paralisação dos
procedimentos demarcatórios de terras indígenas. Assim, demonstrando claramente
que as atenções de seu governo estão voltadas aos setores da economia e da
política ligados ao latifúndio, ao agronegócio, às empreiteiras, mineradoras e
empresas de energiahidráulica,
que visam exclusivamente à exploração da natureza em terras tradicionalmente
ocupadas por povos indígenas. O descumprimento dos parâmetros constitucionais
da Carta
Magna de 1988 que previu a
demarcação de todas as áreas indígenas num prazo de cinco anos é o lúgubre pano
de fundo de todos os conflitos sangrentos que causaram centenas de mortes de
indígenas em todos os quadrantes do país. Por que os teólogos não aproveitaram a
audiência para unir-se aos povos indígenas no grito uníssono de “Demarcação já!”?
Ao
assumir o segundo mandato, a presidente da República chegou a propor um diálogo
com a sociedade. A pergunta que me faço é se ela realmente está disposta a
ouvir, a discutir, a receber críticas, a conversar, por exemplo, com os povos
indígenas ou os atingidos por barragens. Em relação a Belo
Monte, o seu predecessor na Presidência me falou, em 22 de julho de
2009, que o diálogo tem que continuar. Mas foi Lula mesmo que o abortou. Para Dilma, Belo
Monte nunca foi assunto de
pauta com movimentos populares ou a população diretamente impactada. Dilma se
negou a qualquer diálogo sobre este tema. Pelo contrário, mandou recado a quem
fizesse oposição à menina de seus olhos: Belo
Monte é irreversível!
E
como vimos há poucos dias, Dilma não se deixou impressionar nem um pouco
pelas manifestações contrárias à nomeação de Kátia Abreu,
implementadas por amplos setores da sociedade brasileira. Na entrevista que KátiaAbreu deu à Folha
de São Paulo no dia 5 de
janeiro, dia de sua posse como ministra da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento, ficou bem claro qual é a posição do governo em relação aos povos
indígenas. O governo continua a defender o latifúndio e os privilégios
que tem concedido ao agronegócio contra os povos indígenas. Povos que, na
opinião grotesca da ministra, “saíram da floresta e passaram a descer nas áreas
de produção”. Não é um fato altamente indicativo que a presidente Dilma,
nos dois discursos do dia de sua posse, não fez uma única referência sequer
aos povos indígenas?!
IHU
On-Line - Como o senhor avalia a reeleição da presidente Dilma e as declarações
logo após as eleições, de que a hidrelétrica é uma das prioridades do
governo?
Dom
Erwin Kräutler - Eu não
esperava outra coisa. Se durante o primeiro mandato e ao longo da campanha o
discurso foi esse, como ela iria mudar depois de conferir os votos e se dar
conta de sua reeleição? O rolo compressor continuará a passar por cima de todos
nós aqui no Xingu e em breve por cima dos povos
do Tapajós e de outros rios
da Amazônia. As reivindicações da população não contam. Nem o Plano
Básico Ambiental é
cumprido. É alterado, sempre que assim convier ao governo.
IHU
On-Line - Como compreender que pessoas ligadas às CEBs e à Igreja, hoje
presentes no governo, defendem a construção de hidrelétricas, sem considerar os
impactos às comunidades indígenas, às comunidades tradicionais e à própria
população de Altamira, por exemplo?
Dom
Erwin Kräutler - Respondo
com um comentário de um padre gaúcho a respeito da carta de repúdio do Conselho
Indigenista Missionário - Cimi à entrevista de Kátia
Abreu. Partilho do mesmo sentimento do padre: “Sou padre diocesano há
50 anos (...). Desde meus últimos anos de Teologia e até hoje sempre me
comprometi na defesa dos direitos dos mais pobres, entre os quais indígenas e
sem terra. Conseguimos avançar pouco e agora o freio é escancarado com a
prepotente Kátia Abreu.
Engajei-me na construção do PT imaginando que o poder em mãos de lideranças, boa
parte formada na visão da Teologia e Pastoral populares, constituiriam um ‘outro
Brasil possível’, mas caíram no ralo comum. Nos traíram!”.
IHU
On-Line - O senhor conhece Thais Santi, a nova procuradora do MP de Altamira?
Quais são os desafios dela diante das dificuldades em torno de Belo Monte,
considerando que já passaram outros procuradores por Altamira — a exemplo de
Felício Pontes Jr. —, mas que pouco conseguiu avançar por conta da estrutura
judiciária?
Dom
Erwin Kräutler - Conheço,
sim, a Thais Santi.
Como também o Felício Pontes.
A minha amizade com Felício já é de muitos anos. Sempre estive ligado
a ele na defesa dos direitos dos povos
do Xingu. E ainda de modo especial após o assassinato da Irmã
Dorothy, que no próximo dia 12 de fevereiro completará dez anos.
A Thaís está em Altamira desde 2012. Muito a estimo e admiro a sua
coragem. É uma verdadeira dádiva paraAltamira.
Posso dizê-lo em relação a seu profissionalismo e sua competência, à sua
determinação na busca de solução para as mais diferentes questões que é
solicitada a dirimir. Além disso, é de uma personalidade cativante. Sabe ouvir o
povo simples. Faço votos de que não saia tão cedo de Altamira. É impressionante
e esclarecedora a entrevista que Thaís deu a Eliane
Brum: A anatomia de um etnocídio.
Tive,
aliás, a felicidade de conhecer várias jovens procuradoras que passaram por Altamira e lamentavelmente ficaram apenas pouco
tempo. Lembro-me também com gratidão do procurador Marco
Antônio, que voltou para o seu estado de origem, o Mato
Grosso do Sul. Em conversas descontraídas descobri que todos sonharam
com um Brasil diferente, um Brasil bem “legal” (no mais estrito sentido da
palavra!) e queriam dar a sua contribuição, lutando pelos direitos e a dignidade
dos povos do Xingu,
indígenas, migrantes, ribeirinhos e habitantes das cidades e vilas ao longo
deste rio majestoso e maravilhoso, condenado a morrer. Esbarraram quase sempre
em estruturas judiciárias adversas que obedecem a outros interesses.
IHU
On-Line – Nesse começo de 2015, que mensagem é possível transmitir àqueles que
vivem as consequências de Belo Monte?
Dom
Erwin Kräutler - Na
passagem de ano escrevi uma meditação que quero deixar aqui como palavra final
de nossa entrevista:
31
de dezembro, 24:00 horas:
É 1º de janeiro, 0,00 hora.
O ano velho e o novo se tocam.
O que passou, não volta mais.
O futuro está por vir.
O “agora” é agora!
Mas, enquanto falo “agora”,
Já se foi.
Tudo flui, voa, some, morre.
E acorda, floreia, revive, brilha de novo.
É 1º de janeiro, 0,00 hora.
O ano velho e o novo se tocam.
O que passou, não volta mais.
O futuro está por vir.
O “agora” é agora!
Mas, enquanto falo “agora”,
Já se foi.
Tudo flui, voa, some, morre.
E acorda, floreia, revive, brilha de novo.
A
noite se torna dia,
A luz dissipa a escuridão.
A vida vence a morte.
A luz dissipa a escuridão.
A vida vence a morte.
Nosso
caminho nos leva
Até o último „agora“:
Quando vida e morte
São como 24 e 0:00 horas
E o tempo esvanece na eternidade.
Até o último „agora“:
Quando vida e morte
São como 24 e 0:00 horas
E o tempo esvanece na eternidade.
Até
lá, Cada momento é um presente,
Mas também um convite para amar.
Mas também um convite para amar.
Por
Patricia Fachin e João Vitor
Santos
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