//Por Jaime t. Oliva
As consequências da estiagem que atinge algumas regiões brasileiras
desde 2013 têm sido intensas. O Sudeste é uma das mais afetadas, como
demonstra a seca que assola a cidade de São Paulo e seu entorno. A crise
de abastecimento de água na metrópole com mais de 18 milhões de
habitantes é um dos símbolos mais fortes dessa situação.
Outro acontecimento chocante causa consternação: a principal nascente
do Rio São Francisco, na Serra da Canastra, está seca. Se quisermos nos
exasperar ainda mais, é só testar o efeito que a combinação da seca da
nascente do São Francisco, com a transposição de parte de suas águas
para o Nordeste Setentrional, com as ameaças do aquecimento global
produz em nós. O que está ocorrendo com nossa tropicalidade tão farta em
água, aliás, a característica-chave dessa condição?
Antes que a consternação e as preocupações justas se transformem em
paranoia, é importante revisitar alguns aspectos essenciais da dinâmica
dos rios e, de um modo particular, aqueles que dão especificidade ao
Velho São Francisco.
Os rios dependem de um fenômeno mais amplo em termos escalares: o ciclo
hidrológico. A evaporação das águas dos oceanos, transportadas pelos
complexos sistemas atmosféricos, transforma-se em precipitação nas áreas
continentais. As águas seguem, a partir daí, dois caminhos para formar
os rios: infiltram-se no solo até encontrar rochas impermeáveis,
acumulam-se e formam os lençóis subterrâneos (ou freáticos, no sentido
de que a infiltração da água foi freada). Essas águas escoam
subterraneamente, seguindo a declividade da camada rochosa impermeável,
até encontrarem a superfície, formando uma nascente de água.
O constante fluxo que brotou tende a formar canais, mais ou menos
fixos, por onde a água correrá. Mas há também escoamento superficial das
águas que não se infiltram nos solos e que, seguindo a declividade do
relevo, terminam se juntando aos canais que escoam das nascentes,
aumentando, desse modo, o volume das águas. São essas dinâmicas
complexas e combinadas que formam um rio.
Um rio é, portanto, um curso d’água com um canal relativamente
definido, cujas nascentes localizam-se geralmente nas encostas de
montanhas ou serras, e cujo volume é aumentado em seu leito por outros
rios e pelo escoamento superficial das águas. Com exceção dos rios
amazônicos, situados em áreas de intensa pluviosidade, todos os demais
oscilam em termos de vazão (medida de metros cúbicos por segundo – m3/s)
durante o ano, conforme as estações, o regime de chuvas que alimenta os
lençóis freáticos e o escoamento superficial. Por isso se fala em
período das cheias e da vazante.
O Rio São Francisco encontra-se, neste momento que sua principal
nascente está seca, no período da vazante e nisso não há novidade nem
motivo para qualquer susto. A princípio, estiagens mais ou menos
intensas são comuns, fazem parte da dinâmica climática e são tanto mais
perceptíveis quanto maior a escala de tempo observada.
Mas e se a estiagem se mantiver para além da média? O São Francisco não
corre o risco de viver um momento de intermitência, ou seja, de perda
completa de suas águas?
Dois caminhos importantes, ou duas apreensões da forma geográfica dos
rios, devem ser considerados para pensarmos nesse risco. Em primeiro
lugar, é importante imaginar o rio como uma realidade geográfica linear,
capaz de absorver e influenciar (ao mesmo tempo que é influenciado) uma
série de situações durante o seu percurso. Em segundo, é indispensável
pensar no rio como uma realidade geográfica reticular (em rede), ou
seja, os rios pertencem a uma rede hidrográfica hierárquica: os maiores
encontram-se numa posição no relevo que favorece o escoamento das águas
de outros rios para eles. Por isso, normalmente são rios com muitos
afluentes.
No caso do São Francisco, encontramos um rio no topo hierárquico de sua
rede hidrográfica, pois suas águas não afluem para nenhum outro rio,
mas sim para o Oceano Atlântico. Ele é, na verdade, afluente do
Atlântico. Isso quer dizer que ele tem uma rede hidrográfica própria que
o alimenta, rede à qual podemos chamar de Bacia Hidrográfica do Rio São
Francisco.
O São Francisco percorre vasta área na direção Sul-Norte. Ele nasce na
Serra da Canastra, em Minas Gerais, e desemboca no Atlântico, na divisa
entre Alagoas e Sergipe, perfazendo uma distância de 2.863 quilômetros.
Conforme sua espacialidade reticular, sua bacia hidrográfica abrange 504
municípios de sete unidades da federação – Bahia, Minas Gerais,
Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Goiás e Distrito Federal –, cobrindo uma
extensão territorial de 640 mil quilômetros quadrados.
Desse modo, o conjunto de variáveis que interferem na dinâmica do rio
se distribui em território amplo, submetido à diversidade de situações
climáticas, vegetacionais, geomorfológicas e, principalmente, quanto aos
espaços produzidos socialmente e que implicam profundas interferências
no rio, como as diferentes situações de represamento de suas águas.
Por tudo isso, a seca na nascente do São Francisco representa muito
pouco, tendo em vista a escala do rio e das situações que o envolvem.
Neste momento, porém, a seca da nascente tem a força de simbolizar a
gravidade da estiagem que atinge algumas regiões brasileiras e que está
afetando o rio como um todo. O melhor dado para demonstrar a gravidade
da seca é a vazão média do São Francisco registrada este ano: 49 m3/s, a
menor registrada em 83 anos de medição do rio. A vazão média histórica é
de 2.850 m3/s.
As consequências da estiagem são gravíssimas não só para as condições
naturais do rio, mas também para a população e para um conjunto de
atividades econômicas. O rio é fonte geradora de energia e suas águas
são intensamente utilizadas para irrigação. Contudo, um rio que percorre
uma vasta área naturalmente seca e que, portanto, tem suas águas muito
utilizadas, não sobreviveria caso várias providências não tivessem sido
tomadas para garantir sua segurança hídrica, como a criação de grandes
reservatórios.
No São Francisco, os dois mais destacados são Três Marias, em Minas
Gerais, e Sobradinho, na Bahia. Com essas grandes reservas de água não
só se movem turbinas de usinas hidrelétricas como também se regula a
vazão do rio nos momentos da vazante. Infelizmente, em plena primavera,
essas reservas estão em condições críticas: Três Marias está com 4% de
sua capacidade e Sobradinho, com 25%.
Estiagem, transposição
e mudanças climáticas
Uma estiagem como esta, com impactos dessa monta, reforça os argumentos
sobre a transição que estaríamos vivendo nas condições naturais do
planeta, provocadas pelas mudanças climáticas, cuja marca de frente
seria o aquecimento global. Entramos num campo controverso, pois não há
como imediatamente atribuir a seca que atinge várias regiões do Brasil
às mudanças climáticas ou às variações normais do clima.
Mas o que interessa no caso não é saber se a deriva do sistema
atmosférico que resultou na presença de um grande centro de alta pressão
(ar seco que desce e dificulta a entrada de frentes frias que geram a
precipitação) no Sudeste brasileiro está associada às mudanças
climáticas ou à variação normal do clima. O que interessa notar é que
isso aconteceu, está acontecendo e pode voltar a acontecer. E, nos dois
lados dessa controvérsia, esses eventos cabem.
Outro fato importantíssimo a se notar diante da estiagem é que o
Brasil, em todas as escalas do seu Estado, não tem mecanismos nem
recursos suficientes para lidar com estiagens.
Por tudo isso cabe um comentário sobre a transposição das águas do São
Francisco, projeto elaborado, e em andamento, sob a responsabilidade da
federação, especificamente do Ministério da Integração Nacional. Vale
lembrar que, pela extensão de sua bacia e de seu percurso linear, o São
Francisco era chamado de o rio da integração nacional. Com esse projeto
exige-se mais do rio e pretende-se que ele integre ainda mais. A obra
prevê a construção de mais de 700 quilômetros de canais de concreto em
dois grandes eixos (norte e leste) ao longo do território de quatro
estados (Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte) para o desvio
de suas águas.
Embora outras transposições de rios tenham sido feitas no mundo, isso
não garante o sucesso no caso do São Francisco, até porque nem todas
foram bem-sucedidas. Uma obra desse porte exige estudos múltiplos e
muito detalhados. Obriga que se reflita sobre todas as novas interações
que vão se estabelecer, visto que estamos diante de uma intervenção
complexa. Por essa razão, longos estudos de impacto ambiental foram
realizados, com listagem e demonstrações exaustivas de cada um deles.
Embora os autores do relatório tenham se preocupado em classificar esses
impactos em positivos e negativos, a verdade é que eles são
controversos. A começar pelo principal dos impactos positivos referente
ao benefício direto que a água traria para oSemiárido. Parte dos
críticos diz que o prejuízo para as áreas de onde a água está saindo
seria maior que os benefícios obtidos para onde a água estaria indo.
Outro aspecto digno de reflexão é a enorme lista dos impactos, que se
deve, em primeiro lugar, ao relatório cuidadoso que procurou contemplar
tudo o que está ao alcance do nosso repertório sobre intervenções desse
tipo. Duas coisas, porém, devem ser assinaladas: esse repertório tem um
perfil técnico, o que é uma limitação visível; por outro lado, mesmo
considerando só o ponto de vista técnico, quem garante que estamos
diante de um repertório suficiente? Por fim, vale refletir se a grande
lista de impactos não está nos revelando que as variáveis envolvidas são
muitas e, quanto maior a escala geográfica da intervenção, mais as
variáveis vão se acumulando em progressão geométrica. Ou seja, quanto
maior a lista de impactos, maior será a dificuldade de controle e maior a
imprevisibilidade da empreitada.
Para finalizar, como fica a transposição num quadro inédito de
estiagem, quando os próprios reservatórios que já existiam para dar
segurança hídrica ao rio, e que foram usados na concepção do projeto da
transposição, também estão se esgotando? Pensar na transposição das
águas do São Francisco é dar-lhe novo papel e nova escala de ação nos
espaços produzidos pelo homem, é repactuar o uso das águas. A estiagem
atual no Sudeste brasileiro e o modo como esse rio está sofrendo talvez
estejam nos dizendo que o pacto dessas águas tem de ser outro.
Jaime t. Oliva é professor e pesquisador do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP)
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