sábado, 31 de janeiro de 2015

A floresta encantada de São Paulo

IMG_1087Um rapaz caminha pelo asfalto do chamado Baixo Augusta, vestido apenas de sunga e revestido por uma fantasia que simula um chuveiro com box-cortina.
IMG_3061Uma criatura das florestas, rosa-choque, desfila num unicórnio-de-troia e espalha poeira azul celeste pelo matagal.
Uma imensa fila-de-paulista se arrasta que nem cobra pelo chão para entrar no paraíso semi-artificial e extra-oficial que já chamamos de Parque Augusta. Outra fila-de-paulista, consideravelmente menor, se arrasta no sentido oposto, para sair do parque que ainda não existe, mas já existe. O parque existe, em tons de verde-natureza, rosa-choque, azul-cintilante e cinza-concreto. E está cheio, lotado, abarrotado de gente neste domingo.
Trata-se de uma festa de aniversário: 461 anos da cidade de São Paulo, essa senhora sadomasoquista passivo-agressiva que na mesma manhã o diário decadente Folha de São Paulo decretou estar na UTI (por decerto alvejada de tiros, facadas e golpes de tacape por políticos não-tucanos, de acordo com o jornal velhote).
IMG_1114Não é só uma festa – são muitas, todas promovidas por ninguém (na medida em que você, eu e todo mundo possamos ser chamados de “ninguém”).
Paulistas e visitas estão exultantes, algo atrapalhados. Ainda não sabem se divertir direito – mas querem, e como querem.
(Dinâmica de paulista – o primeiro paulista forma fila – o segundo paulista se acha ~vip~ e fura a fila – a terceira paulista estressa com o segundo paulista que furou a fila formada pelo primeiro paulista – de braços dados, os três vão ao show do Criolo na praça Roosevelt para gritar que não existe amor em SP.)
Vestem-se de índios. Cospem para cima. Fazem a dança da chuva onde há seca transitória (enquanto as antenas de TV encenam a dança da seca onde não para de chover). Deixam barbas e sovacos crescerem.
Reclamam.
Reclamam (“tem muito bicho-grilo!”, reclama um bicho-grilo).
Reclamam (“só tem veado aqui!”, reclama outro, esquecido de que o parque nada mais é que uma amostra pequenina do mundo todo – ou confundindo unicórnio com veado – ou confundindo floresta com boate – ou chuva com seca).
Reclaaaaaaamaaaaaaaam.
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Mas se pra fazer sucesso, pra vender disco de protesto, todo paulista tem que reclamar, eu também vou reclamar. Há música no aniversário de nenhum ano no inacreditável e verdíssimo parque que se escondia entre fumaças no coração da 461tona.
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IMG_1112É o bloco pré-carnavalesco Tarado ni Você, que só toca e canta músicas de Caetano Veloso, o papai-tropicália – um bloco só e 100% caetenizado parece pesadelo, mas é só a realidade ~hipster~.
Nas redes sociais, integrantes da classe musical paulista (e/ou brasileira, braZileira) aproveitam o aniversário da cidade que os pariu para reclamar, reclamar, reclamar – “político é tudo ladrão”, grita um, berram dois, cala-se zangadíssima toda uma multidão de artistas-de-escritório.
DJ Marky Eduardo BiD são dois que andam arretados com a igualdade ladrona dos políticos – talvez irritados porque o movimento artístico-músico-culturo-político incontrolável que toma o Parque Augusta, o Minhocão, a praça Roosevelt, o largo da Batata, o chão sujo-sagrado da Biblioteca Mário de Andrade prescinde de oráculos musicais, de líderes estéticos, de puxadores de som e de manada. Apenas com um bloco cover de (perdoai-os, pai) Caetano abrindo os braços sobre nós, a moçada paulista desacostumada de sacudir os quadris já faz um verão.
Pode ser o Movimento Sem Teto, o Fora do Eixo (alô, Rodrigo Savazoni!), o Movimento Passe Livre, a Zona Autônoma/Área de Proteção Ambiental autodeclarada do Parque Augusta, as Mães de Maio, a Marcha das Vadias, as Bichas Desunidas da Reclamolândia, o Food Truque, o Bloco Fúnebre dos Jornalistas-Ainda-Mais-Arrogantes-Que-os-Patrões – você pode odiar este ou aquele movimento coletivo – mas em 2015 o coletivo dos coletivos que derrama a(s) cidade(s) produz um contínuo que prescinde da sua (minha) opinião – como o movimento cultural prescinde dos artistas oraculares – e o papel surrado prescinde da lengalenga diária de reclamação dos donos de mídia, dos jornalistas, dos-técnicos-de-qualquer-futebol, de mim e de você.
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(Os unicórnios somos nozes: foto de Zeca Gerace, do Estúdio Xingu, que formulou a intervenção e o lema #SonhaSP)
IMG_3062A floresta encantada de sacis, corujas, pirilampos & unicórnios rosa-choque pode se chamar São Paulo, se assim você o quiser – e parece que você (eu) (nós) quer(emos). A gente vai continuar reclamando – reclamando – reclamando, porque os ventos de mudança fazem mesmo os mais modernos marinheiros mareados vomitarem aliens reacionários (reacionarismo, resistência, reação às mudanças, queixume, chorume). Mas esta cidade já não é a mesma, e só Carolina não viu – se é que ela não viu.
Entre “A Banda” paroquial de Chico Veloso e a “Carolina” depressiva de Caetano Buarque, os Unidos da Eterna Caetanidade preferem o forró “Esperando na Janela” de Targino Gondim, que passa por cima de Gilberto Gil, atravessa o ex-secretário municipal de Cultura Juca Ferreira e diz vem-quente-que-eu-tô-fervendo aos unicórnios rosa-choque de 25 de janeiro de 2015.
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Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de "Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba" (Boitempo, 2000) e "Como Dois e Dois São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)" (Boitempo, 2004)

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