domingo, 11 de maio de 2014

Após um assassinato covarde, os zapatistas falam


Subcomandante_Marcos
Foto: Wikipédia
O comunicado original está aqui. Mas esta Rede o traduz carinhosamente pra vocês logo abaixo.
No último dia 2 de maio, militantes do PVEM e do PAN, auxiliados por membros da Central Independiente de Obreros Agrícolas y Campesinos Histórica (CIOAC-H), montaram uma emboscada para cerca de 60 zapatistas na cidade de Las Margaritas, em Chiapas. Um professor zapatista foi assassinado: depois de ter sido rendido sozinho, foi rodeado por paramilitares armados, cruelmente espancado e baleado por três vezes.
Segundo o Centro de Direitos Humanos Fray Bartolomé de Las Casas, a morte aconteceu em meio a um conflito entre comunidades zapatistas e proprietários de terras de La Realidade, iniciado ainda em março, depois que estes cortaram a água da população que simpatiza com os zapatistas, além de terem roubado um carro das bases de apoio do EZLN.
Para negociar a devolução do carro e a volta do sistema de abastecimento de água, a Junda de Buen Gobierno (órgão autônomo dos simpatizantes zapatistas) e membros da CIOAC-H iniciaram uma mesa de diálogo testemunhada pelo Centro de Direitos Humanos Fray Bartolomé de Las Casas, que também presenciou a emboscada.
No comunicado abaixo, feito na última quinta-feira (8), o subcomandante Marcos conta como ocorreu o assassinato de Galeano, anuncia a suspensão do Congresso Indígena e de outras atividades, e também a realização de uma investigação independente. Conclama os povos zapatistas para seguirem lutando e finaliza: “Nossos esforços são pela paz, os esforços deles são pela guerra”.
A dor e a raiva
Exército Zapatista de Libertação Nacional
México

8 de maio de 2014
Às companheiras e aos companheiros da Sexta [Declaração da Selva Lacandona]:
Compas:
De fato, o comunicado já estava pronto. Sucinto, preciso, claro, como devem ser os comunicados. Mas… humm… talvez depois.
Porque agora começa a reunião com as companheiras e companheiros que são base de apoio de La Realidad.
Nós os escutamos.
O tom e o sentimento de sua voz nos são conhecidos há muito tempo: a dor e a raiva.
Então, ocorre a mim que um comunicado não refletirá isso.
Ou, pelo menos, não em toda a sua extensão.
Está certo, talvez tampouco uma carta, mas pelo menos nestas linhas posso tentar nem que seja uma pálida reflexão.
Porque…
Foram a dor e a raiva o que nos fizeram desafiar a tudo e a todos há 20 anos.
E são a dor e a raiva que agora nos fazem novamente calçar os sapatos, colocar o uniforme, pegar as armas e cobrir o rosto.
E agora colocar o velho e surrado gorro com as três estrelas vermelhas e de cinco pontas.
São a dor e a raiva que trouxeram nossos passos até La Realidad.
Há alguns momentos, depois que explicamos que havíamos chegado para responder ao pedido de apoio da Junta de Buen Gobierno, um companheiro da base de apoio, professor do curso “A liberdade segundo @s zapatistas” nos disse, mais ou menos com essas palavras:
“Nós te dizemos claramente, companheiro subcomandante. Se não fôssemos zapatistas, há pouco tempo teríamos nos vingado e teria sido um massacre. Porque temos muita coragem com o que fizeram com o companheiro Galeano. Mas nós somos zapatistas e não se trata de vingança, mas de que haja justiça. Dessa forma, esperamos o que vão nos dizer e assim faremos”.
Ao escutá-lo, senti inveja e pena.
Inveja por aqueles que tiveram o privilégio de ter mulheres e homens, como Galeano e como este que agora vos fala, de professoras e professores. Milhares de homens e mulheres de todo o mundo tiveram essa sorte.
E pena por quem não terá Galeano como professor.
O companheiro Subcomandante Insurgente Moisés teve que tomar uma decisão difícil. Sua decisão é inapelável e, se perguntarem minha opinião (e ninguém o fez), inobjetável. Ele decidiu suspender por tempo indeterminado a reunião e o compartilhamento com os povos originários e suas organizações no Congresso Nacional Indígena. E decidiu suspender também a homenagem que preparamos para nosso companheiro ausente Don Luis Villoro Toranzo, bem como suspender nossa participação no seminário “Ética frente ao despojo”, organizado por companheiros artistas e intelectuais do México e do mundo.
O que levou a essa decisão? Bem, os primeiros resultados da investigação, assim como as informações que nos chegam, nos deixam dúvidas:
1. Tratou-se de uma agressão planejada com antecedência, organizada militarmente e realizada com deslealdade, premeditação e vantagem. E é uma agressão em meio a um clima criado e alentado desde cima.
2. Estão envolvidas nisso as direções da chamada CIOAC-Histórica, do Partido Verde Ecologista (nome com o qual o PRI governa em Chiapas), do Partido Ação Nacional (PAN) e do Partido Revolucionário Institucional (PRI).
3. Está envolvido nisso, pelo menos, o governo do estado de Chiapas. Falta determinar o grau de envolvimento do governo federal.
Uma mulher chegou a contar que sim, foi planejado, e que sim, o plano era “incomodar” Galeano.
Em suma: não se tratou de um problema da comunidade, em que os bandos se enfrentam exaltados pelo momento. Foi algo planejado: primeiro, a provocação com a destruição da escola e da clínica, sabendo que nossos companheiros não tinham armas de fogo e que defenderiam o que humildemente levantaram com seu esforço; depois, as posições assumidas pelos agressores, prevendo o caminho que seguiriam desde o caracol até a escola; e, por fim, o fogo cruzado sore nossos companheiros.
Nessa emboscada, nossos companheiros foram feridos por arma de fogo.
O que aconteceu com o companheiro Galeano é estremecedor: ele não caiu na emboscada. Ele foi rodeado por 15 ou 20 paramilitares (sim, eles são, suas táticas são de paramilitares); o compa Galeano os desafiou a lutar mano a mano, sem armas de fogo; bateram nele de porrete e ele pulava de um lado a outro se esquivando dos golpes e desarmando seus oponentes.
Ao ver que não podiam com ele, atiraram uma bala em sua perna, o que o derrubou. Depois disso, foi a barbárie: pularam sobre ele, bateram nele e o esfaquearam. Outra bala no peito lhe tornou moribundo. Continuaram batendo. E, ao ver que ele ainda respirava, um covarde deu um tiro em sua cabeça.
Ele recebeu certamente três tiros. E os três quando estava rodeado, desarmado e sem se render. Seu corpo foi arrastado por seus assassinos cerca de 80 metros e o deixaram jogado.
O companheiro Galeano ficou sozinho. Seu corpo jogado na metade do que anteriormente foi o território dos acampadores, homens e mulheres de todo o mundo que chegavam ao chamado “acampamento da paz” em La Realidad. E foram as companheiras, as mulheres zaparistas de La Realidad que desafiaram o medo e foram levantar o corpo.
Sim, existe uma foto do compa Galeano. A imagem mostra todas as feridas e alimenta a dor e a raiva – muito embora escutar esses relatos já baste. Claro que entendo que essa foto poderia ferir a suscetibilidade da realeza espanhola, e por isso é melhor colocar uma foto de uma cena montada com descaramento, com alguns descalabrados, e que os jornalistas, mobilizados pelo governo de Chiapas, começaram a vender a mentira de um confronto. “Quem paga, manda”. Porque existem classes, meu amigo. Uma coisa é a monarquia espanhola, e outra os “miseráveis” índios que te mandam ao rancho de Amplo só porque ali, a alguns passos, estão velando o corpo ainda ensanguentado do companheiro Galeano.
A CIOAC-Histórica, sua rival, a CIOAC-Independiente, e outras organizações “campesinas” como a ORCAO, ORUGA, URPA e demais divem de provocar confrontos. Sabem que provocar problemas nas comunidades onde estamos presentes agrada aos governos. E costumam premiar os dirigentes com projetos e grossos maços de dinheiro pelos danos que nos fazem.
Nas palavras de um funcionário do governo de Manuel Velasco: “é mais conveniente para nós que os zapatistas estejam ocupados com problemas criados artificialmente, em vez de fazerem atividades para as quais aparecem ‘güeros’ de todas as partes”. Disse desse jeito “güeros” [palavra que designa uma pessoa muito branca e loira]. Sim, é engraçado que assim se expresse o servente de um “güero”.
Sempre que os líderes dessas organizações “campesinas” precisam de orçamento para as festinhas que promovem, organizam um problema e vão ao governo de Chiapas para que este lhes paguem para “se acalmar”.
Esse “modus vivendi” de dirigentes que nem sequer sabem distinguir entre “areia” e “cascalho”, iniciou-se com o priísta e mal lembrado “croquete” Albores, foi retomado com o lopezobradorista Juan Sabines e se mantém com o autodenominado verde ecologista Manuel “el güero” Velasco.
Esperem um momento…
Agora um compa está falando. Sim, chora. Mas todos sabemos que essas lágrimas são de raiva. Com palavras entrecortadas, diz o que todos sentem, sentimos: não queremos vingança, queremos justiça.
Outro ainda interrompe: “companheiro subcomandante insurgente, não entenda mal nossas lágrimas. Não são de tristeza, são de rebeldia”.
Agora chega um informe de uma reunião dos dirigentes da CIOAC-Histórica. Os dirigentes dizem textualmente: “Com o EZLN não se pode negociar com dinheiro. Mas uma vez presos todos os que aparecem nos jornais, que os prendam por uns 4 ou 5 anos, e depois que o problema se acalmar, é possível negociar com o governo para a sua libertação”. Outro completa: “Ou podemos dizer que houve um morto entre os nossos e já fica empatado, um morto de cada lado, e que os zapatistas se acalmem. Nós inventamos que ele morreu ou nós mesmos o matamos, e aí o problema fica resolvido”.
Enfim, o comunicado se estende e não sei se vocês conseguem sentir o que sentimos. De qualquer forma, o Subcomandante Insurgente Moisés me encarregou de lhes avisar que…
Esperem…
Agora estão falando na assembleia zapatista de La Realidad.
Não saímos para que acordem entre eles a resposta a uma pergunta que lhes foi feita: “Os governos continuam perseguindo os líderes do EZLN. Sabem disso porque já estavam aí quando houve a traição em 1995. Então, querem que fiquemos por aqui para ver esse problema e que haja justiça, ou preferem que vamos para o outro lado? Porque todos vocês podem sofrer agora a perseguição direta dos governos e suas polícias e militares”.
Agora escuto um jovem. Uns 15 anos. Me dizem que é o filho de Galeano. Sim, embora jovenzinho, é um Galeano em formação. Diz para ficarmos, que confiam em nós para a justiça e que se encontre quem assassinou seu pai. E que estão dispostos ao que for. As vozes nesse sentido se multiplicam. Os companheiros falam. As companheiras e até as crianças param de chorar: elas foram as que reconectaram a água, apesar da ameaça dos paramilitares. “São valentes”, diz um homem, veterano de guerra.
Que fiquemos, esse é o acordo.
O Subcomandante Insurgente Moisés entrega um apoio econômico à viúva.
A assembleia se dispersa. É possível ver que o caminhar de todos é firme outra vez, e que há outra luz em seu olhar.
Onde eu parei? Ah, sim. O Subcomandante Insurgente Moisés me encarregou de lhes avisar que as atividades públicas de maio e junho foram suspensas por tempo indeterminado, assim como os cursos “a liberdade segundo @s zapatistas”.
Esperem…
Agora nos dizem que começa acima a encorajar o chamado “modelo Acteal”: foi um conflito intracomunitário por um banco de areia”. Humm… assim continua a militarização, o grito histérico da imprensa domesticada, as simulações, as mentiras, a perseguição. Não é por acaso que aí esteja o velho Chuayffet, agora com aplicados alunos no governo de Chiapas e em organizações “campesinas”.
Continua o que já conhecemos.
Mas quero aproveitar essas linhas para perguntar:
Foi a dor e a raiva que nos trouxeram até aqui. Se começarem a sentir também, para onde os senhores as levarão?
Porque nós estamos aqui, na realidade. Onde sempre estivemos.
E os senhores?
É isso. Saúde e indignação.
Das montanhas do Sudeste Mexicano.
Subcomandante Insurgente Marcos.
México, maio de 2014. O vigésimo ano do início da guerra contra o esquecimento.
PS: As investigações estão sendo conduzidas pelo Subcomandante Insurgente Moisés. Ele informará os resultados, ou através de mim.
Outro PS: se me pedirem para resumir nosso trabalhoso andar em poucas palavras, elas seriam: nossos esforços são pela paz, os esforços deles são pela guerra.

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