Publicado:14/01/14
- 7h00
João
Fernandes Nogueira exibe sementes híbridas envoltas em defensivos cor de
rosa Hans
von Manteuffel
CAMPO
GRANDE (RN) E LAGOA NOVA (PB) - Proprietários de um pequeno sítio no vilarejo de
Caiana, no interior do Rio Grande do Norte, João Fernandes Nogueira e a mulher,
Rita Maria de Paula, reclamam das sementes de milho, envoltas em defensivos cor
de rosa, que receberam de programas oficiais. Elas não brotaram e a família
ficou sem colheita. Perto dali, na própria comunidade, Francisco Benedito de
Paula, 37, compartilha da mesma queixa. O grão é “bonito”, afirma, mas “não
nasceu”. Em local bem mais distante, no município de Queimadas, na Paraíba, a
agricultora Maria do Carmo da Silva expressa decepção ainda maior: teve que
devolver as sementes recebidas para abastecer os lavradores filiados à
Associação de Desenvolvimento Rural do Sítio Guritiba, da qual é presidente. Os
defensivos intoxicaram o seu neto de apenas um ano, que chegou a ficar
hospitalizado por dois dias.
No
Nordeste, onde mais de 1,5 milhão de famílias do semiárido vivem da agricultura
familiar, situações como essas começaram a provocar uma rejeição à oferta de
sementes híbridas padronizadas, que são misturadas geneticamente e precisam de
agrotóxicos. Embora sejam distribuídas de graça aos agricultores do Agreste e do
Sertão, muitos acreditam que elas colocam em risco o patrimônio genético da
região, pois apenas uma variedade é entregue, ignorando o regime diferenciado de
chuvas da região e a diversidade de solos. Nos últimos tempos, os agricultores
encontraram em uma variedade local a alternativa para uma safra mais
sustentável. Trata-se da semente crioula, ou “da paixão”, adequada ao semiárido
e que vem sendo trabalhada e guardada desde gerações passadas.
— As
crioulas têm mostrado que, talvez pela adaptação ao meio, produzem mais do que
as oficiais ou comerciais. Não que estas não sejam boas. Mas exigem custos
adicionais, como adubação, irrigação, defensivos, que terminam só dando
lucratividade se plantadas em larga escala. Já as nativas chegam livres de
agrotóxicos e não precisam de despesas com esses cuidados adicionais — afirma o
agrônomo Emanoel Dias, da Assessoria e Serviços em Projetos de Agricultura
Alternativa (AS-PTA), uma das parceiras da Articulação Semiárido Brasileiro
(ASA), rede de organizações que atuam na gestão e no desenvolvimento de
políticas para a região semiárida.
Utilizadas
desde os tempos pré-coloniais pelos índios, as sementes crioulas chegaram aos
dias atuais pela prática da agricultura tradicional, na qual os lavradores
conservam-nas, selecionam, melhoram e as trocam entre si. Seu nome muda de
acordo com o estado: são as sementes “da paixão” na Paraíba, “da fartura” no
Piauí, “da resistência” em Alagoas, “da liberdade” em Sergipe, e “da gente” em
Minas Gerais. Agora, as comunidades vêm se organizando para a criação de bancos
de sementes crioulas, que podem ser familiares, comunitários ou
regionais.
Segundo
a ASA, já há mais de mil experiências coletivas, que envolvem quase 20 mil
famílias. Só na região da Borborema, que congrega quinze municípios, os bancos
comunitários somam 73, e há ainda outros três mil familiares. No estado, a
“rede” já possui 225 bancos comunitários, com mais de oito mil famílias
beneficiadas em 61 municípios.
Um
dos bancos comunitários mais tradicionais é o do Sítio São Tomé, em Alagoa Nova,
a 136 quilômetros de João Pessoa. O banco foi fundado em 1974 por José Oliveira
Luna, o Zé Pequeno, indignado com a manipulação política. No sertão, a exemplo
do que ocorria com a água, as sementes vinham se transformando em “moeda”
eleitoreira.
—
Tomei a iniciativa porque as sementes estavam fugindo do nosso meio, por causa
do assistencialismo político. Fiquei revoltado com o que as autoridades faziam.
Davam sementes em troca de voto — lembra Zé Pequeno, cujo banco tem hoje 61
“sócios” e preserva mais de 20 variedades tradicionais de milho e feijão, que
são cultivadas na região.
Cada
lavrador é obrigado a devolver 15 quilos de sementes crioulas para cada dez que
receberam. Caso estas não vinguem, ele se obriga a devolver aquela quantidade em
outra variedade.
Zé
Pequeno defende que as sementes crioulas são cem por cento melhores do que as
híbridas e que os sítios que as utilizam comemoram a fartura. As híbridas (não
confundir com transgênicas, que são as geneticamente modificadas) resultam do
cruzamento de variedades diferentes, seja na forma natural ou em laboratório.
Mas estas vão perdendo a produtividade durante safras seguidas, o que obriga o
lavrador a ter despesas a cada safra ou a depender da distribuição gratuita,
feita pelos governos.
Em
geral, são compradas em grandes quantidades e distribuídas de graça aos
agricultores, quase sempre descapitalizados com as constantes secas que assolam
a região. Como recebem em pequenas quantidades (até três quilos), eles precisam
apelar para o comércio nos períodos de bom inverno, quando os preços são
proibitivos para os padrões da Caatinga. Para os lavradores, as híbridas trazem
três tipos de risco: a dependência da boa vontade das autoridades, a erosão do
patrimônio genético da região, e a não garantia da segurança alimentar. Pior do
que isso: só germinam bem na primeira geração.
— Na
segunda, já não brotam como na primeira. E na terceira, nem nascem. Percebi que
tinha virado escravo. Agora só planto semente crioula, porque produz melhor e a
saúde é outra — afirma Carlos Soares Menezes, do Sítio São Carlos, localizado no
município de Monte Alegre, em Sergipe.
A
julgar por estudos realizados pela Embrapa Tabuleiros Costeiros, há vantagens no
uso das crioulas. Foram testados sete campos de multiplicação em seis municípios
diferentes, e realizados ensaios comparativos. Os testes foram efetuados entre
2010 e 2013, e analisado o desempenho de oito tipos de sementes, sendo seis
crioulas, uma híbrida distribuída por órgãos oficiais e outra escolhida em casas
comerciais. Ao todo, foram efetuados oito ensaios no período.
O
estudo mostrou, por exemplo, que a variedade crioula jabatão de milho rendeu 2,5
toneladas de grãos por hectare, enquanto a comercial, conhecida por caatingueira
(desenvolvida pela própria Embrapa), só produziu duas. Enquanto a primeira
rendeu 11 toneladas de massa seca por hectare, a caatingueira só deu 8,5. A
massa seca é importante no semiárido porque serve de forragem para o
gado.
Por
conta da importância das crioulas, a ASA incluiu o apoio e estímulo à criação de
bancos de sementes no P1+2, Programa Uma Terra e Duas Águas. O P1+2 surgiu como
desdobramento do P1MC, Programa Um Milhão de Cisternas, que visa implantar 1
milhão de cisternas para consumo doméstico no semiárido. O P1MC já implantou
mais de 500 mil cisternas domésticas no semiárido, com o objetivo de garantir
água potável para as famílias da área rural durante as secas.
Já o
P1+2 visa um passo adiante: assegurar água para a agricultura e a segurança
alimentar, inclusive com permanente de sementes crioulas. Até agora implantou
33.473 tecnologias como barragens subterrâneas, cisternas de enxurrada e tanques
de pedra, entre outras.
Guardiões
da paixão
Durante
muito tempo marginalizadas pelos programas governamentais — pois eram
consideradas grãos, usados para alimentação e não para o plantio — as crioulas
passaram a ser reconhecidas como sementes a partir da Lei 10711/2003, que dispõe
sobre o Sistema Nacional de Sementes e Mudas. Essa lei impede que sejam feitas
restrições à inclusão das crioulas em programas de financiamento ou em políticas
públicas de aquisição, distribuição ou troca de sementes. Em pelo menos dois
estados — Paraíba e Alagoas — há legislações locais incentivando a produção de
sementes crioulas. Mas os agricultores reclamam que a maior parte da lei
permanece no papel.
De
acordo com o agrônomo Emanoel Dias, da AS-PTA, só no ano passado o governo da
Paraíba investiu R$ 350 milhões na aquisição de sementes. Mas elas eram de uma
só variedade e vinham de um mesmo fornecedor. Os sertanejos revindicam o direito
de também fornecer as suas. E afirmam ser urgente a implantação não só de
iniciativas estaduais, mas de um programa nacional de fortalecimento de bancos
comunitários de sementes “que valorize o patrimônio genético produzido
gratuitamente pelas famílias agricultoras”. Em carta divulgada durante o 3º
Encontro de Agricultores Experimentadores em Campina Grande, em outubro do ano
passado, eles ressaltaram o pesar por estarem “assistindo a distribuição de
sementes por meio dos Programas Estadual e Federal no território da Borborema e
em todo o estado da Paraíba”. Denunciaram que a distribuição de poucas
variedades, não adaptadas às condições ambientais e socioculturais das
diferentes regiões, “repete o erro histórico dos programas públicos que em nada
contribuíram para promover a autonomia das famílias agricultoras”, prática que
contribui “para a erosão genética da rica diversidade das sementes da paixão
cultivada pelas famílias agricultoras”.
As
coisas, no entanto, começam a mudar. Organizados em cooperativas, os produtores
já conseguem vender suas crioulas para programas federais como o de Aquisição de
Alimentos, o PAA, do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Eles
exigem que o Programa Brasil Sem Miséria trabalhe prioritariamente com as
crioulas e que o governo crie condições para que, num futuro não tão distante,
opere exclusivamente com elas.
— Eu
já tinha dito para o governo que não queria mais semente híbrida, mas mandaram
para os 19 agricultores que se inscreveram no Garantia Safra, em Queimadas —
conta Maria do Carmo Silva, que preside a associação de moradores da comunidade.
— Foi no mês de junho. As sementes ficaram armazenadas em um galpão, junto da
minha casa. Meu neto passou junto e ficou adoentado por causa do veneno. Agora
virei guardiã e só trabalho com as crioulas. Lá no Sítio Guritiba fundamos um
banco de sementes que já tem 32 sócios.
Mais sustentáveis, sementes crioulas conquistam agricultores do Nordeste
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/ciencia/revista-amanha/mais-sustentaveis-sementes-crioulas-conquistam-agricultores-do-nordeste-11287145#ixzz2qTAHgY8q
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