–Picasso es comunista, yo tampoco, disse Salvador Dalí em 1951, em
um célebre jogo de palavras que significa: “Picasso é comunista, eu também
não”.
Em minha opinião, as paixões intelectuais e artísticas não deveriam ser
contaminadas pelas opiniões políticas. Como deixar de admirar um Jorge Luis
Borges porque apoiou a ditadura militar argentina? Um Mario Vargas Llosa, por
suas posições neoliberais? Ou um Nelson Rodrigues, por provocar dizendo-se
reacionário e flertando com milicos até que a tortura bateu à sua porta? Para
mim são todos dignos de reverência, sim, e a política, neste momento, não
interfere em nada. Se até com os roqueiros
reaças é possível separar a obra da persona, como não fazer o mesmo com
gênios como estes?
O pintor catalão Salvador Dalí Domenech, morto há exatos 25 anos em 23 de
janeiro de 1989, foi mais do que controverso politicamente. Anarquista e
comunista na juventude, tornou-se um anticomunista ferrenho e apoiou o governo
do ditador Francisco Franco na Espanha. O que não me impede de considerá-lo um
dos maiores artistas de todos os tempos. Dalí é também um dos meus maiores
ídolos literários. Sua obra como escritor é pouco conhecida, mas ele escrevia
muito! Publicou um romance, Rostos Ocultos, textos sobre arte e várias
autobiografias divertidíssimas. É justamente este senso de humor que me fascina
e é algo inexistente na direita brasileira atual, carola, enfadonha, moralista.
E sem cultura. Aliás, todas as críticas que Dalí faz aos preconceitos
pequeno-burgueses dos comunistas caberiam em nossos “libertários” (sic) como uma
luva.
Salvador Dalí era todo o contrário: erudito, freudiano, despudorado, livre.
Quando foi expulso do grupo surrealista, André Breton cunhou para ele um
anagrama maldoso, Avida Dollars. Como se seu único interesse fosse o
dinheiro, o que é uma mentira. A ruptura se deu porque Dalí desejava liberdade
de criação e não admitia interferência ou censura ideológica, coisa que os
comunistas de então não aceitavam de jeito nenhum. Lamentavelmente, ao longo dos
anos, a patrulha se impôs à apreciação artística e a obra daliniana foi sempre
subestimada e nunca revista em sua total genialidade.
Neste aniversário de morte de Salvador Dalí, o homenageio com trechos do
relato de sua expulsão do grupo surrealista, que também fará 80 anos no próximo
mês. É absolutamente hilário. Divirtam-se com o inesquecível, grandioso Dalí. E
basta de caça às bruxas, à esquerda ou à direita.
***
Por Salvador Dalí*
No dia 5 de fevereiro de 1934, André Breton reuniu o Areópago surrealista em
seu estúdio, na Rua Fontaine, 42, para julgar minha conduta. Eu estava com febre
e sofria de um começo de angina. Com minha covardia habitual, a própria ideia da
doença acentuava ainda mais meu mal-estar e o desafio desta manifestação me
afetava enormemente. Mas eu hauria em minha fraqueza a lógica paranóica que
deveria virar completamente a situação a meu favor. Cobri-me para me aquecer,
enfiei meu sobretudo de pelo de camelo, me armei de um termômetro colocado sob a
língua para conservar minha vigilância desperta em relação ao meu caso, e no
momento de sair percebi que eu ia esquecendo os sapatos. Enfiei-o sem amarrar os
cordões. Quando cheguei, com Gala, todos estavam me esperando, sentados em
divãs, cadeiras e mesmo no chão. Um nevoeiro de fumaça irritava os olhos.
Breton, todo vestido num tom verde-garrafa, tinha o aspecto do grande inquisidor
e se pôs sem perda de tempo a desfiar o rosário dos meus desvios e dos meus
erros. Ele ia e vinha, passando a todo momento em frente da minha tela La
Gradiva, pendurada perto da vidraça do seu estúdio. Eu o escutei por alguns
momentos, com atenção, mas minha febre subiu, o que exigiu meus cuidados e, ao
mesmo tempo que mantinha um ouvido para a exposição do procurador-geral, tirei o
termômetro da minha boca e olhei-o. Estava com 38,5º; era demais. Recomenda-se
nesses casos tudo fazer para diminuir a temperatura. Tirei meus sapatos, meu
sobretudo, meu casaco e minha camiseta de malha. Depois, tornei a colocar meu
casaco e meu sobretudo, porque nesse caso é preciso também cuidar para não se
refrescar muito rapidamente. Depois, recoloquei de novo meus sapatos. Breton me
fulminou com o olhar durante este exercício. Fumava nervosamente o seu
cachimbo.
–Dalí, o que é que você tem a dizer?
Eu respondi com veemência que as acusações contra mim baseavam-se em
critérios políticos e morais que não tinham valor em relação às minhas
convicções paranoico-críticas.
Breton me dardejava com um olhar furioso. É que eu me esquecera de retirar o
termômetro da boca, as minhas palavras se tornavam incompreensíveis e eu o
cobria de perdigotos. Caí de joelhos, para implorar que me compreendesse.
Ele gritou mais forte do que eu.
Então me levantei, tirei meu sobretudo, meu casaco e retirei uma segunda
camiseta de malha, que joguei a seus pés, depois recoloquei meu casaco e meu
sobretudo para não me refrescar rápido demais. Os presentes explodiram em
gargalhadas.
Eu me virei para eles, para rogar que me compreendessem, mas minha declaração
cheia de cuspe redobrou a gargalhada geral.
Breton quase perde seu sangue-frio. Deveria ter tirado o termômetro da boca,
mas eu estava com uma tal obsessão pelo meu estado de saúde, que ficaria
paralisado. Era preciso escolher entre o mutismo e a gagueira. Breton prosseguia
com seu monólogo acusador, colocando em questão toda a minha participação no
grupo surrealista. O que eu compreendia sobretudo era a imensa distância que
existia, desde o início, entre ele e eu.
Havíamos nos encontrado em 1928, apresentados por Miró, por ocasião da minha
segunda estada em Paris. Imediatamente ele se apresentou a meus olhos como um
novo pai. Pensava então que ele me proporcionaria um segundo nascimento. O grupo
surrealista era para mim uma espécie de placenta que me nutria e acreditava no
surrealismo como nas tábuas da Lei. Assimilava com um apetite incrível e
insaciável toda a letra e o espírito do movimento, que aliás correspondia tão
exatamente à minha natureza profunda, que cheguei a encarná-lo com a maior
naturalidade. Na verdade, a dissimulação desse processo era tanto mais
paradoxal, quando eu era sem dúvida o mais surrealista do grupo –o único talvez–
e que me acusavam de fato de ser surrealista demais. Padres prisioneiros da
escolástica tentavam refutar um santo… História tão velha quanto as
religiões!
(…)
Nosso primeiro choque ocorreu por causa do meu quadro Le jeu
lugubre. Via-se ali um homem de costas cujas ceroulas filtravam excrementos
perfeitamente moldados. Gala já havia me perguntado se eu era coprófago,
traduzindo assim o modo de sentir do grupo. A verdade, sabe-se, era que eu tinha
de obedecer a meus impulsos inconscientes a fim de me libertar dos meus
terrores, mas para Breton esta explicação era insuficiente. Declarando-se
realmente chocado com essa imagem, ele exigia que eu afirmasse não passar esse
detalhe escatológico de uma máscara. Fiz cara de riso ao declarar que a merda
trazia felicidade e que essa aparição na sua obra surrealista seria o sinal de
uma nova chance para todo o movimento. Aliás, a literatura histórica era rica em
alusões excrementícias, desde a galinha dos ovos de ouro e da cólica divina de
Danaé; mas eu compreendi desde esse dia que estava na presença de intelectuais
feitos de papel higiênico, enrijecidos por preconceitos pequenos-burgueses e em
quem os arquétipos da moral clássica haviam depositado marcas indeléveis. Eles
tinham medo da merda. Da merda e do ânus. O que existe de mais humano, no
entanto, e de mais necessário a ser superado? A partir deste instante, eu
decidira obcecá-los com o que eles mais temiam. E quando inventei os objetos
surrealistas, tive o prazer íntimo e profundo, enquanto os amigos do grupo se
extasiavam com seu funcionamento, de me dizer que esses objetos reproduziam
exatamente as contrações de um cu em ação e que eles admiravam o próprio
medo.
(…)
Quando digo que todos os surrealistas partilhavam de todos os tabus
pequeno-burgueses, posso provar: eles falavam do sexo de uma maneira simbólica e
os Padres da Igreja não teriam muito o que censurar em suas conversas. A maior
audácia de Aragon foi a de ter escrito Le Con d’Irene, que é uma obra
erótica trabalhada, mas no grupo a sodomização ou os fantasmas anais não tinham
cotação na bolsa do amor, como não a tinham a pederastia e o misticismo. Fiquei
bastante surpreso ao constatar que Breton impunha uma verdadeira hierarquia de
valores em relação aos sonhos. Era rigorosamente proibido evocar uma lembrança
onírica relacionada, por exemplo, com Maria, a mãe de Jesus –com a qual me
acontecia sonhar constantemente– e mesmo confessar que eu era obcecado pelos
cabelinhos do seu cu. Isso era má educação e mau gosto. Infeliz também daquele
que não respeitasse o código de fidelidade amorosa: excitar a mulher de um amigo
ou mesmo enganar sua amante! Que não se brincasse com o desejo e a luxúria. A
liberdade ficava reservada para as grandes aventuras teóricas e platônicas.
(…)
A política –o engajamento, como diziam os surrealistas– nos dividira. Eu me
inquietava com o marxismo como com um peido, e ainda um peido me alivia e me
inspira. A política me parecia ser um câncer que corrompe a poesia. Vi muitos
dos meus amigos se dissolverem na ação política, perdendo nisso sua alma quando
queriam ganhá-la. O social, a economia, me pareciam irrisórios, coisas vãs e
sobretudo falsas –uma ciência inexata por excelência; uma armadilha para apanhar
cotovias feita para os artistas, os intelectuais, caírem em contradições
inextrincáveis, quer dizer os mais desprotegidos para resistirem aos apelos
sentimentais e que se queria mobilizar para defenderem causas que, de qualquer
maneira, encontrariam sua solução pelo jogo natural das forças da história e nas
quais a inteligência só ocupava um lugar ínfimo. A poesia e a arte eram as
grandes sacrificadas do acontecimento histórico. Não se meter me parecia ser o
único método de ação e de autodefesa verdadeiramente eficaz. A única honestidade
em relação a esta poesia que carregávamos em nós como uma flama rara e
delicada.
A defesa dos meus interesses íntimos me parecia tão urgente, autêntica e
fundamental quanto a do operariado. Aliás, que seria o triunfo do proletariado
se os artistas não propusessem os elementos de um estilo de vida fundamentado na
liberdade e na qualidade? Um mundo de grãos de areia anônimos! Uma tecnocracia
de formigueiro! Dalí era felizmente irredutível às ideologias confusas. Breton
falando de política me parecia assemelhar-se a um professor primário que
quisesse ensinar os sinais de trânsito a um bando de elefantes que atravessassem
uma loja de porcelanas. A disciplina! Ele só tinha essa palavra na boca! Para um
artista, era a lepra.
Eu não queria saber mais disso. Os miseráveis abortos, nascidos de células
comunistas, que queriam impor a sua moral, a sua tática, suas pequenas ideias,
suas ilusões a Dalí me faziam estourar de rir com sua pretensão. Eu dava de
ombros. Quanto a Breton, baixava-os humildemente, em nome do marxismo-leninismo!
Antes de se colocar de quatro, ele teve felizmente um reflexo salvador e o caso
Aragon, que se seguiu, lhe permitiu tomar posições mais sadias, mas ele arrancou
ao mesmo tempo o ventrículo esquerdo da amizade, e não estou seguro de que se
tenha recuperado da expulsão de seu irmão fundador, que o renegou depois da
publicação de Misére de la Poésie. Estou na origem desta ruptura.
O número 4 de La Révolution surréaliste publicara, em 1931, sob o
título de “Rêverie” um texto meu que, sem nenhuma censura, apresentava
uma descrição erótica a respeito de Dullita, uma das heroínas da minha infância
amorosa. O partido comunista achou este texto pornográfico e uma comissão foi
designada para tratar do assunto. Convocou os representantes do grupo
surrealista liderado por Aragon, que foi intimado a publicar um comunicado de
condenação. Breton se revoltou e em Misére de la Poésie declarou que
seria, um dia, “honroso para os surrealistas o fato de terem infringido uma
interdição, de espírito tão marcantemente pequeno-burguês”.
Foi a ruptura. Os militantes pudibundos apareceram de repente totalmente
ligados à moral estreita da família monogâmica, dominada pela propriedade
privada e Aragon, seu vassalo, querendo sobretudo aproveitar a primeira ocasião
para romper com os surrealistas que lhe impediam levar adiante sua carreira
literária. Ele tinha razão, ao perceber que os comunistas sem cultura lhe
permitiriam mais facilmente publicar seus romances hábeis e comerciais. Eu me
diverti muito contemplando os dois irmãos inimigos em flagrante contradição de
amizade e de pensamento. Uma vez mais fiquei feliz por constatar que a política
nada tinha a ver com as motivações profundas dos militantes soi-disant
apaixonados. Mas, evidentemente, sobre este verdadeiro problema, Breton não
falou nada nesse dia.
*Trechos do livro As Confissões Inconfessáveis de Salvador Dalí,
Livraria José Olympio Editora, 1976
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