terça-feira, 10 de janeiro de 2023

 

Eis que tivemos nossa Invasão do Capitólio

 

Não houve nenhum evento mais previsível na história recente do Brasil. Dizer que avisamos é pouco demais. Nós, jornalistas, especialmente aqueles que investigaram a ligação entre os Bolsonaro e os Trump, avisaram que o ex-capitão estava tramando algo como a invasão do Capitólio, que aconteceu quase há exatos 2 anos. E que estava sendo ativamente apoiado nisso por um grupo de apoiadores de ultradireita nos EUA, como Steve Bannon, Matthew Tyrmand, e Jason Miller. Todos esses nomes que você viu por aqui.

Eu me dei o trabalho de escrever, no final de dezembro, uma reportagem que apontava, ponto por ponto, 15 táticas de Trump que foram copiadas por Bolsonaro – a intenção era demonstrar que nada no questionamento às urnas era espontâneo e nem mesmo original, mas seguia um roteiro ou “playbook”. De nada adiantou. Agora veio a “cereja do bolo” da obra bolsonarista. Jair conseguiu cravar seu nome na história, com imagens fortes. E tanto a polícia quanto o governo do DF, e mais ainda as Forças Armadas, decidiram ser coniventes com esse plano e deixar acontecer mais um ataque frontal à Nova República.   

Mas erraram, também, aqueles que acreditavam que o bolsonarismo estava acabado. O que se provou ontem é que ele está longe disso: mais radical, mais violento, e com enorme apoio de parcela da institucionalidade. Estou falando de forças policiais que abraçam e tiram selfies com os manifestantes, empresários radicalizados que financiam caravanas, e uma massa que apoia o movimento dos seus sofás via redes sociais – e doa muito dinheiro e alimento via PIX. O bolsonarismo virou o local de canalização da frustração coletiva com a política e a porcaria de vida que temos nesse país em que mais de 60% da população quer emigrar.    

É preciso mais do que nunca levar o bolsonarismo a sério, como movimento cultural e como estratégia de poder. Vamos a isso. 

O bolsonarismo é o primeiro movimento populista digital do Brasil. Nasceu e cresceu em uma onda de movimentos populistas de direita, liderados por oportunistas digitais que conseguiram, com maestria (ou talvez um pouco de sorte), aliar o anseio por maior participação democrática, expresso claramente, por aqui, desde junho de 2013 – já se vão lá 10 anos do “Brasil nas ruas” – com a maquinária dos algoritmos que hoje controlam debate público com regras próprias. 

 

Ganha quem mais causa revolta, ódio, indignação. Assim, não existiria bolsonarismo sem a lógica do marketing digital que embasa a arquitetura das plataformas, nas quais quem tem mais conteúdo “ocupa” o espaço mental existente – e limitado. Ou seja: para manter a militância mobilizada é necessário fabricar um perigo constante, uma ameaça iminente a cada dia.        
   

Jair Bolsonaro foi o primeiro presidente cuja estratégia de governo passava pela manipulação de discurso digital. Com apoio de seus filhos, ele governou via redes sociais. Não apenas usava-as para propagar os feitos positivos do governo através de influenciadores bolsonaristas; ele trazia para as redes as intrigas palacianas, para atacá-las e liquidá-las ali. E, por outro lado, usava as redes para alimentar seus planos, uma “circularidade” emprestada, mais uma vez do marketing digital, na qual a base “pauta” e alimenta a liderança. Trata-se da política sendo regida pelo teste A/B. 

Já volto ao tema das redes, mas antes é importante apontar para outro tema de raízes mais profundas. Não sejamos ingênuos. Tampouco haveria bolsonarismo se ele não apelasse a valores profundamente arraigados na sociedade brasileira, como a violência, o machismo, o racismo, o militarismo – valores que, por jamais terem sido confrontados de maneira sistemática, permanecem sendo constitutivos de identidades de milhões de pessoas. Silvio Almeida resumiu bem no seu contundente discurso que “como acadêmico, eu sempre costumo dizer que o Brasil possui três problemas estruturais: a violência autoritária, o racismo e a dependência econômica”. São as estruturas que ainda formam o principal do que é a experiência de ser brasileiro. 

Assim, o Bolsonarismo pode ser lido como um “movimento” que cria uma unificação cultural que dá sentido à existência dos milhões que aderiram de corpo e alma a ele. 

No final do ano passado, uma pesquisa do Datafolha revelou que 21% dos entrevistados apoiam os atos golpistas que, primeiro, fecharam rodovias, e depois fizeram acampamento em frente a quarteis. Eis uma prova de que o bolsonarismo veio para ficar.  

É claro que a radicalização dessa fração significativa da população foi operada pela sofisticada infraestrutura de desinformação que venho discutindo aqui nesta newsletter. 

Lembremos. Campanhas de desinformação atendem à estratégia definida pela equipe do Technology and Social Change project (TaSC)  da Universidade de Harvard, descritas no Media Manipulation Casebook  como “turvar as águas” (‘muddy the waters’, em inglês). O termo se refere à criação de um ambiente informático confuso e desorientador, no qual é difícil para um cidadão comum separar o que é verdade do que é mentira. Isso acontece quando há uma proliferação de fontes desinformacionais competindo com fontes que relatam fatos, como jornais, sites independentes, a comunidade acadêmica. A tática é mais relevante em momentos de instabilidade política.

Essa rede, que já agiu de maneira mais artesanal e orgânica, foi nos últimos anos largamente amplificada por recursos públicos. De verbas destinadas a sites que espalham fake news, como Pleno News, a anúncios pelo Youtube e até cachê sendo pago diretamente a influenciadores para propagandearem tratamento precoce contra a Covid. Além de verbas parlamentares, fartamente usadas por deputadas bolsonaristas que são grandes desinformadoras e propagadoras do discurso de ódio, como Bia Kicis e Carla Zambelli – e que, sim, merecem ter suas redes sociais suspensas exatamente por isso – além de alguns personagens que atuam fortemente nas redes bolsonaristas como Tercio Arnaud, integrante do gabinete do ódio, Lisboa, do Vlog do Lisboa, e Jouberth Souza, receberam verbas do fundo eleitoral para serem candidatos, mas trabalharam mais espalhando desinformação. 

Ou seja: a desinformação extremista é hoje em grande parte bancada por dinheiro público. 

O resultado das eleições, bastante positivo para o bolsonarismo, que elegeu senadores e governadores, significa que esse avanço em cargos do executivo e legislativo darão sobrevida financeira a essa infraestrutura. São centenas de deputados estaduais e federais que poderão usar suas verbas de gabinete para fomentar ainda mais uma rede que, mesmo tendo sido observada de perto pelo TSE – que fez um trabalho hercúleo nessas eleições – não se desfez.   

Há outro aspecto do bolsonarismo que merece a nossa atenção. A criação de uma infraestrutura social, humana, cujo principal foco é criar ambientes onde a desinformação corre solta – do negacionismo sobre a Covid e vacinas, até uma inexistente ameaça do comunismo. É o caso das dezenas de Congressos Conversadores promovidos pelo Instituto Conservador Liberal, o ICL, fundado por Eduardo Bolsonaro justamente para importar o modelo americano para o Brasil. Muitos desses congressos foram financiados por empresas de agronegócio – grupo que também se notabilizou pelo financiamento dos bloqueios golpistas nas estradas – e por empresas armamentistas como clubes de tiro. Em 2020, em uma conferência conservadora nos EUA, Eduardo explicou que, para ele, o maior desafio do bolsonarismo era a falta de uma “estrutura” para o movimento: uma “mídia de massa”, “universidades conservadoras”, think tanks e eventos conservadores. “Temos todos os ingredientes, só precisamos organizar e crescer para construir essas estruturas”. 

É a isso que tem se dedicado o 03, que parece ter sido o mais influente filho depois da derrota nas urnas – foi ele que comandou a “transnacionalização” do golpismo brasileiro, em estreita aliança com o ideólogo do populismo de direita Steve Bannon. E, sendo o principal embaixador do bolsonarismo internacionalmente, foi sem dúvida ele quem articulou a “fuga” de Bolsonaro para a Flórida nos últimos anos do seu governo. Eduardo, vale lembrar, viajou para os EUA e encontrou Trump e Steve Bannon pouco depois do segundo turno das eleições.  

Sobre esse movimento, será preciso manter toda atenção. 

Retorno ao ponto inicial, quando tratei das raízes mais profundas do bolsonarismo. E faço um mea culpa. O jornalismo brasileiro não foi capaz de enfrentar enormes esqueletos que sempre estiveram no armário, como o racismo estrutural, a violência endêmica que sempre vitimou desproporcionalmente uma parte da sociedade – homens negros – e a desigualdade que malogra qualquer coesão social. Um dos casos mais gritantes é, claro, o tema dos militares, intrinsecamente ligado à construção de um pacto de anistia pós-Ditadura que não trouxe justiça contra quem usurpou o poder do povo durante 21 anos, torturou, desapareceu, violou mulheres e massacrou indígenas. 

Os legados da ditadura tampouco foram abordados com coragem: as polícias militares que seguem matando impunemente, seguem as vexaminosas mordomias dos militares, que formam um dos maiores grupos de servidores federais e respondem por quase metade dos gastos da previdência social. Além de seu enorme poder de barganha que, hoje, transformou-se em poder de chantagem. 
 
É papel do jornalismo enfrentar os problemas estruturais que serviram de semente ao bolsonarismo. É preciso fazer investigação histórica e apontar cadeias de responsabilização, além de cobrar que os responsáveis por crimes contra a sociedade e contra o estado democrático de direito sejam punidos. 

Nessa nova etapa da nossa democracia, cabe a nós jornalistas mirar o futuro, sempre, com um olho no passado.



Natalia Viana
Diretora Executiva da Agência Pública

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