terça-feira, 17 de janeiro de 2023

 

A armadilha estava na GLO

 

O chamado apareceu apenas horas depois dos bolsonaristas invadirem o Palácio do Planalto: “Onde estão os militares? Precisa colocar o Exército contra essas pessoas!” Recebi essa mensagem em um dos grupos de discussão de intelectuais no WhatsApp nos quais participo. Geralmente, fico calada. Dessa vez, intervi: 

- Tudo o que não precisamos agora é que os militares sejam chamados para colocar ordem na situação. 

Argumentei que quem deveria cuidar disso são as forças de segurança civis. E não disse isso porque achava que os militares iam querer assumir o poder com um golpe de Estado. Mas porque isso serviria para fortalecê-los na sua crença profunda de que são eles os garantidores da democracia no Brasil e da ordem constitucional. 

E, assim como fizeram ao longo da última década, daria a eles mais poder de barganha para conquistar cada vez mais “nacos” de poder, agora, do governo que acaba de assumir. O meu livro Dano Colateral explica como os comandantes militares usaram as crescentes operações GLOs – decretos que determinam que militares agirão em determinado local para restabelecer a ordem pública – durante os governos de Lula, Dilma e Temer para conquistar mais poder e, no fim, chegar ao banco da frente da política nacional. De onde eles claramente não querem sair. 
Na semana passada, o bafo dos generais voltou a mandar suas mensagens “em off” sobre decisões do governo Lula, via imprensa. Por exemplo, disseram ao Estadão que “são contra” a criação de uma moeda única de comercialização com o Mercosul. E o que os militares têm a ver com isso, pergunto ao meu leitor? Nada, a não ser que eles querem seguir ditando os rumos da política. 

Esqueça Pazuello na Saúde, militares na Petrobrás, e os 6 mil no governo Bolsonaro. Voltando à normalidade democrática, a fala, por si só, é chocante, pois se trata de avanço em uma área que absolutamente não lhes diz respeito. E só pode ser ouvida e replicada por jornais porque a participação dos generais na política foi absolutamente normalizada nos últimos anos. O que é, por si só, um golpe na institucionalidade democrática.  

Pois no último domingo, a ganância dos militares foi refreada, pelo menos temporariamente. Parece que o Ministro da Defesa José Múcio até chegou a sugerir a imposição de uma GLO, mas Lula foi contra. “Se eu tivesse feito GLO eu teria assumido a responsabilidade de abandonar minha responsabilidade. Aí sim estaria acontecendo o golpe que essas pessoas queriam”, disse. “O Lula deixa de ser governo para que algum general assuma o governo. Quem quiser assumir o governo, dispute a eleição e ganhe. É por isso que eu não fiz GLO”. 

Como bem demonstrou o professor Francisco Teixeira em um artigo no Estadão, setores militares esperavam a decretação de uma GLO. Afinal, foi com uma GLO que Michel Temer salvaguardou-se do último grande protesto contra o governo em Brasília, quando manifestantes ligados às centrais sindicais tomaram a esplanada para protestar contra a reforma trabalhista em maio de 2017 (vale lembrar que aquele protesto era por direitos sociais, e ninguém estava tentando fazer um golpe de Estado; há uma enorme diferença).  

Lula sabe muito bem que as imagens importam, e se ele chamasse uma GLO os militares sairiam, e muito, fortalecidos diante da opinião pública. Isso, depois de terem impedido a PM do Distrito Federal de desmontar o acampamento pelo menos três vezes, a última na semana anterior à invasão; e depois de ter o comandante do Exército, general Júlio César de Arruda, dito ao ministro da Justiça Flávio Dino que ele não iria prender pessoas no acampamento, segundo o jornal Washington Post.

 

Assim, ao descartar a GLO como solução, o Ministro da Justiça Flávio Dino deixou clara a marca que pretende dar ao seu Ministério: a de superar o emprego dos militares na segurança pública.
   

Lula sabe, ainda, que não pode confiar nos militares, notórios pelo seu antipetismo. “Eu perdi a confiança, simplesmente. Na hora que eu recuperar a confiança, eu volto à normalidade”, disse no café com jornalistas. 

Impossível saber o que teria acontecido se Lula tivesse decretado uma GLO. Estou lendo agora o longo relatório final da CPI do Capitólio nos EUA (sobre o qual escreverei na próxima coluna) e logo na introdução o relator, um deputado democrata negro do Mississipi, se pergunta: “Quem sabe o que teria acontecido se a turba de Trump tivesse conseguido nos impedir de fazer o nosso trabalho? Quem sabe em que tipo de área cinzenta constitucional nosso país teria mergulhado? E quem cobraria para corrigir esse problema”?   

Pode ser essa a grande armadilha que os golpistas de dentro das Forças Armadas estavam esperando para alongar-se no poder? Uma “área cinzenta” que poderia se prolongar por bastante tempo com novos fatos, novas ameaças e novos perigos anunciados? Afinal, se há alguém que sabe muito bem quem são e como se comportam os manifestantes golpistas é a inteligência do Exército, que os acompanha diuturnamente há dois meses.     

Essas perguntas se somam a outras que já estão colocadas: Qual foi o papel do ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira e dos comandantes antigos e atuais na elaboração da minuta de Anderson Torres que daria o controle sobre a Comissão de Revisão eleitoral a esse ministério, então ainda chefiado por militares? Quem deu a ordem para os comandos regionais protegerem e darem abrigo aos manifestantes? Quem deu a ordem para impedir a retirada dos golpistas que acampavam nos quartéis?    

Tudo isso são perguntas que precisam ser respondidas, com uma investigação cabal sobre a participação dos militares no atentado golpista. Se a coisa for bem-feita, teremos aqui nossa CPI do Golpe, assim como nos EUA, e serão os generais que deverão se sentar no banco dos inquiridos. 

Se há crimes cometidos por militares individuais, eles devem ser respondidos diante da Justiça civil. O que será, também, uma reversão da política adotada depois do impeachment da Dilma – e talvez o começo da reconstrução democrática de fato e da devolução dos militares à caserna. 

Não será difícil encontrar a responsabilidade. Como bem argumentou o editor da Revista Sociedade Militar, um site amplamente lido por militares de patentes mais baixas, institucionalmente, sob o antigo comando e esse que acaba de assumir, as Forças Armadas já prevaricaram. “Poder-se-ia dizer que foi prevaricação não cumprir com o dever de informar a sociedade de forma clara sobre o comportamento dos militares? Não o fizeram, os militares têm sua parcela de culpa nas “minutas do golpe”, escreveu o jornalista e militar Robson Augusto.  

Haverá ainda um último passo. Depois da fala de Lula, outros generais-da-boca-pequena reclamaram ao Uol que o presidente estaria “queimando pontes” com a caserna. Isso, depois dos comandantes das três Forças se rebelarem e decidirem entregar o comando antes da posse, em um gesto de indisciplina histórico, para “não bater continência a um ladrão” – decisão que poderia levar as Forças Armadas, assim como a polícia do DF, a ficarem sem comando durante a posse de Lula, e que teria sido motivo do adiantamento da diplomação de Lula em uma semana, do dia 19 para o dia 12. 

Com o executivo majoritariamente acessível à imprensa, é hora de dar um basta nos recadinhos dos fardados que não querem assumir o que dizem. Se querem ameaçar o governo, que o façam mostrando a cara e a patente. Se não, o jornalismo deveria afastar-se de vez dessa modalidade nefasta do “off da caserna”. Não é hora de dar ouvidos aos generais. Trata-se da repetição do expediente que nos últimos quatro anos regeu a cobertura dos temas militares no Brasil. Como havia militares relevantes no governo, fazia sentido dar voz a eles. 

Agora, acabou. Que voltem aos quartéis.



Natalia Viana
Diretora Executiva da Agência Pública

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