terça-feira, 24 de janeiro de 2023

 

A intentona e o Melancia


Pensem em caixa alta. “Covardia de um Melancia!! A emenda fica pior que o soneto!!🍉🍉🤡🤡

Esse é uma das centenas de comentários que rodaram as redes bolsonaristas desde a última quinta-feira, quando o vídeo do comandante militar do Sudeste Tomás Miguel Ribeiro Paiva, defendendo a democracia tornou-se público. Com a demissão do ex-comandante Júlio Cesar Arruda, o breve, e sua nomeação para comandar a força terrestre, as postagens só pioraram. “Sua fala de hoje envergonha as FFAA e humilha as tropas”, dizia um.  "Não interessa quem está no comando, a gente vai cumprir a missão do mesmo jeito". Se o chefe do Foro de SP mandar ir pra cima do povo brasileiro,ele vai cumprir a missão?

O influenciador bolsonarista Ed Raposo fez um vídeo chamado
 “Tomás Riberio Paiva: mais um melancia”, assistido por mais de 60 mil pessoas e com mais de 2,500 comentários. No canto da tela, como sempre, ele pedia doações por Pix.

Trata-se de uma modalidade particular de narrativa de ódio bolsonarista, a de “emparedar” generais que não apoiam o ex-presidente e o seu golpismo. Tem grande efeito, como já explicarei, porque viraliza facilmente entre círculos que são caros, pessoalmente, aos membros das Forças Armadas – chegam às suas famílias, seus amigos etc. Pra quem não sabe, “melancia” é o termo pejorativo que a extrema direita golpista usa para denunciar militares democratas: para eles, são “verdes” por fora – uma alusão aos uniformes camuflados – mas “vermelhos” por dentro.  

A tática não é de hoje, mas tudo demonstra que deve tornar-se mais barulhenta e agressiva, e muito, com o comando do general Tomás – em especial se o general buscar de fato desbolsonarizar e democratizar as FFAA, como o governo pretende.   

Já em novembro, o ex-comentarista da Jovem Pan – ora demitido por golpista – “denunciou” no lamentável canal o general Tomás ao lado dos generais Richard Nunes e Valério Stumpf, todos membros do Alto Comando por estarem “agindo contra uma ação mais contundente das Forças Armadas” sobre o resultado eleitoral. 

Figueiredo usa e abusa do nome do avô (último ditador militar, o general João Batista Figueiredo) sempre que precisa ganhar a simpatia dos golpistas, embora tenha se apressado a reconhecer a derrota publicamente num tweet com uma vibe “bola pra frente”, antes de perceber que seu público estava sedento por conteúdos golpistas e que havia aí uma oportunidade de negócio. 

Na época, as falas de Figueiredo fizeram parte de uma campanha de manipulação que contava também com centenas de publicações anônimas que passaram a chamar todo o Alto Comando de “melancias”. O negócio afetou tanto os brios dos generais que o Centro de Comunicação Social do Exército (o mesmo que chamou diversas reportagens de “fake news” nos últimos anos) publicou uma nota chamando as postagens em rede sociais de “alusões mentirosas e mal-intencionadas” , além de “covardes”. “Tais publicações têm se caracterizado pela maliciosa e criminosa tentativa de atingir a honra pessoal de militares com mais de quarenta anos de serviços prestados ao Brasil”, dizia a nota assinada pelo General de Divisão José Ricardo Vendramin Nunes.

Não tenho notícia de outro episódio em que um Exército no mundo tenha se sentido impelido a responder oficialmente a críticas anônimas na internet. Mas podemos especular que a campanha coincidiu com um momento em que Bolsonaro tentava de todo jeito convencer os militares a embarcarem proativamente num golpe de Estado. Conseguiu pelo menos convencer os três comandantes das Forças a entregarem seus cargos antes do tempo, causando uma instabilidade que poderia ter levado as FFAA a estarem sem mando, assim como a PM de Brasília, na posse de Lula, pouco antes, ou pouco depois.   

Ainda falta muito bom jornalismo para entender como o Alto Comando lidou com as repetidas ameaças à democracia articuladas por Bolsonaro e por membros do próprio Alto Comando. Mas o general Tomás foi apontado, repetidas vezes, como um dos que fincou o pé para garantir que não haveria golpe. Ao seu lado, temos o fato dele ter atuado para despolitizar o Comando do Sudeste depois do seu antecessor, o infame general Luiz Eduardo Ramos, amigo de Bolsonaro que recebeu o candidato no Comando Sul e pediu votos para ele em 2018, o que é proibido.  

 

Vale lembrar que tudo nessa intentona bolsonarista – termo que tem ganhado força na imprensa e entre acadêmicos – tem dois elementos sem os quais seria inviável: a constância e contundência das campanhas de desinformação e a ação dos militares do Alto Comando e do Ministério da Defesa. 
   

É óbvio que, se o Alto Comando tivesse dado uma mensagem clara de que não haveria possibilidade de golpe, não teria acontecido a intentona. Se não tivessem enviado centenas de soldados à paisana para “checar” as urnas e depois publicado uma postagem propositadamente dúbia, não teria acontecido a intentona. Se tivessem cuidado de fato do perímetro de segurança dos quarteis e impedido acampamentos onde se planejaram inclusive atentados terroristas, não teria acontecido a intentona. Se tivessem penalizado os membros da ativa que insuflaram o golpe e seus familiares, receptores de benesses com dinheiro público como alimentação e auxílios de vários tipos – a “família militar” – não teria acontecido a intentona.   

A coisa fica pior à medida que se revela como o ex-comandante ajudou e protegeu os manifestantes, mesmo depois deles terem invadido os prédios dos três poderes. Segundo o Metrópoles, não apenas o general Júlio Cesar Arruda disse ao ministro da Justiça, Flavio Dino, que ele não permitiria que prisões fossem feitas na frente do Quartel-General do Exército em Brasília. Ele teria também ameaçado o ex-comandante da PM do Distrito Federal: “O senhor sabe que a minha tropa é um pouco maior que a sua, né?”, teria dito.  

O ex-comandante queria, ainda, manter a nomeação do tenente-coronel Mauro Cid, braço direito fidelíssimo de Bolsonaro para comandar o 1° Batalhão de Ações de Comandos em Goiânia. Trata-se de uma tropa de elite operacional cujo símbolo é uma caveira atravessada com uma faca e cujo lema é “o máximo de destruição, morte e confusão nas linhas inimigas”. Seus membros são treinados em operações de infiltrações e exfiltrações terrestres, aéreas e aquáticas, exercícios de resgate, captura, interdição e eliminação ou ocupação de alvos estratégicos, em área hostil ou sob controle do inimigo, em tempos de paz, crise ou conflito armado”. O efetivo é mantido sob segredo, mas outro batalhão que compõe o Comando de Operações Especiais, O 1º Batalhão de Forças Especiais (1º B F Esp), tem cerca de 2 mil homens.  

O comando desses homens, a algumas centenas de quilômetros de Brasília, ficaria a cargo do tenente-coronel Mauro Cid, apontado como um dos articuladores do Gabinete do Ódio e que manejava dinheiro do cartão corporativo para a família Bolsonaro, segundo investigações do STF.  

Enfim, o presidente demitiu o general Júlio César Arruda, que ainda tentou revidar conclamando o Alto Comando para uma reunião “sobre a conjuntura politica”, mais uma demonstração que a hierarquia e disciplina já andam muito longe das Forças Armadas. Não deu em nada dessa vez, mas Bolsonaro tentou e conseguiu, ao longo de toda sua carreira, boicotar a disciplina militar e com ela a própria essência da instituição que finge amar. Se hoje há claramente divisões ferozes dentro do Exército, a culpa é dele. 

Erra quem acredita que o pepino que o general Tomás pega agora é de fácil resolução. Basta ver o que já está aparecendo sobre ele – seja nas postagens de internet, seja na imprensa. 

Já existem sinais de que o grupo golpista-bolsonarista dentro da caserna está indignado e já trabalha para boicotar o general. 

Demorou menos de um dia para a colunista do Uol Thais Oyama publicar que “já circulam dossiês” sobre o general. No mesmo dia, o ex-vice presidente e ex-membro do Alto Comando Hamilton Mourão, prestes a ser empossado senador pelo PL, demonstrou que será outro porta-voz da turma dos golpistas ao dizer que Lula quer “alimentar crise” com o Exército – e não impor disciplina e o cumprimento das ordens do Comandante Supremo – ao demitir Arruda. Mourão nem mencionou o novo comandante. 

O Jornal da Cidade online, site notoriamente difusor de desinformação e bolsonarista – que tem ligação, ainda, com o site da viúva de Brilhante Ustra – manchetou que o general Tomás teria sido indicado do Ministro Alexandre de Moraes, “algo incomum”. É papo furado, até porque os ataques anônimos e não anônimos contra o general em novembro devem ter chamado a atenção de qualquer democrata que acompanha a situação perigosa que Bolsonaro impôs ao Alto Comando.  

Daqui pra frente, será difícil para um general que pretende despolitizar as Forças Armadas atuar tranquilamente. Haverá outros dossiês, outras notícias plantadas e outras tentativas de golpe. Mas, a julgar pelas fotos do encontro com Lula e pelo discurso do general, que reproduzo parcialmente abaixo, essa é a melhor chance que temos. 

Ser militar é isso. É ser profissional. É respeitar a hierarquia e disciplina. É ser coeso. É ser íntegro. É ter espírito de corpo. É defender a pátria. É ser uma instituição de Estado. Apolítica, apartidária. Não interessa quem está no comando: a gente vai cumprir a missão do mesmo jeito. Isso é ser militar. É não ter corrente. 

Isso não significa que o cara não seja um cidadão. Que o cara não possa exercer o seu direito, ter a sua opinião. Ele pode ter, mas ele não pode manifestar. Ele pode ouvir muita coisa, muita gente falando que ele faça isso, faça aquilo, mas ele faz o que é correto. Mesmo que o correto seja impopular. Porque democracia pressupõe liberdade, garantias individuais, políticas públicas e, também, é o regime do povo, alternância do poder. É o voto. 



Natalia Viana
Diretora Executiva da Agência Pública

Nenhum comentário:

Postar um comentário