Foi com essa perspectiva em mente que eu me inteirei por um colega a respeito dos bolsistas da “National Security Fellowship”, um grupo que reunia militares de diferentes forças e membros da comunidade de inteligência que, à mesma maneira que nós, jornalistas de vários países, recebiam uma bolsa para aprimorar suas capacidades analíticas e gerenciais. A bolsa e o grupo eram “cuidados” por uma simpática loirinha de nome Emily, que parecia estar se divertindo horrores ao organizar festinhas para aquele monte de homens bem, bem machos. O grupo incluía também membros de serviços de inteligência aliados, como a Mossad. Era bem fácil reconhecê-los nos corredores da Kennedy School, a escola de governo de Harvard: altos, andavam sempre em bando como andam militares vestidos à paisana – duros, formais, bombados, leais ao governo e a pátria até a morte. E, claro, sem a menor indicação de quem era da CIA, afinal.
Fugi das festinhas que eles faziam – sempre, segundo me contaram, muito animadas, e para as quais faziam questão de convidar eu e meus colegas jornalistas. Mas conversei com alguns deles individualmente e até tive tarefas em grupo em algumas aulas, quando eles saiam da sua zona de expertise: por exemplo, numa aula sobre como escrever um artigo de opinião, me coube revisar um texto de um membro do Exército tentado argumentar que era preciso contratar profissionais para cargos de gestão, melhorando seus quadros com trabalho civil em vez de deixar tudo nas mãos dos fardados. O texto era péssimo, claro, mas achei bem ousada a ideia do meu colega. Às vezes a gente esquece que instituições tão gigantescas como os Exércitos são, também, enormes burocracias. No mais a mais, segui o conselho do jornalista veterano e não perdi meu tempo tentando criar uma amizade com aquele grupo de rapazes que quase sempre estariam em campos opostos ao jornalismo que eu pretendo seguir fazendo.
Exceto por aquela noite surreal. Era já final de maio, alta primavera, as aulas tinham acabado e passávamos as noites em rituais de despedidas sem fim. Quinta-feira, dia de Trivia Contest no bar da minha vizinhança. A “Trivia Night” é uma tradição, acredito que proveniente dos Pubs britânicos, um jogo no qual os clientes montam times e competem para ver quem acerta mais perguntas de conhecimento geral. Algo como um Show do Milhão com muito mais bebida e muito menos dinheiro em jogo. No Pub Lamplighter, o prêmio era de 30 dólares em cerveja.
Convidei meus colegas de Harvard na esperança de melhorar um pouco minha equipe. Eu e meu marido, que é Iraniano, tínhamos rapidamente aprendido que não bastava saber sobre o mundo; patinávamos nas perguntas sobre os EUA, que eram sempre abundantes e específicas, do tipo “quantos rios têm nomes de ex-presidentes americanos” ou “que time venceu o Superbowl em 1967”.
Arregimentamos um jornalista indiano e um americano, além de um advogado que participava da turma por sua esposa, uma bolsista Nieman. Pouco antes de chegar, ele me manda uma mensagem: vou levar alguns dos colegas da National Security Fellowship, espero que você não se importe.
Eu não; afinal, se alguém podia nos ajudar a responder perguntas patrióticas seriam os servidores da nação, mas achei melhor alertar meu marido – o qual, repito, é iraniano – de que a noite seria um pouco diferente do que estávamos imaginando.
Eles chegaram de bom humor, sorridentes como um grupo de marinheiros que desfruta uma última noite no em algum filme de Hollywood. Sentamos em duas mesas longas, de madeira: éramos 20, no total, e nos dividimos em duas equipes.
Eles estavam encantados com uma professora que resolveu se juntar ao grupo, uma jovem loira e bem sexy que estudava na Escola de Educação de Harvard, e a rodeavam como mariposas a uma lâmpada. Estavam entre eles ainda alguns que eu não tinha conhecido, inclusive um senhor mais velho, que tinha um cargo sênior no departamento de Defesa, segundo me contaram, e tinha cara que estava ali cuidando dos demais. E também um advogado do Departamento de Justiça com quem eu tinha tido uma longa conversa sobre a relação dos EUA com a Lava Jato e as implicações éticas da parceria.
Enquanto o primeiro round de perguntas começava a esquentar, puxei um bom papo com aquele que era claramente a “alma” do grupo, o amigão de todos, um loiro alto que atuara por anos como piloto na Força Aérea e hoje comandava todo um batalhão.
A voz do apresentador soava alto pelo microfone: - Primeira pergunta: quantos parques nacionais foram inaugurados por Roosevelt?
Era jovem, bom papo, e certamente galgaria a uma posição mais alta em breve. Ele me contou, um pouco emocionado, que vem de uma família desintegrada, pobre, e de pai alcoólatra.
“A Força Aérea cuidou de mim e me deu uma família”, disse, explicando com orgulho como as Forças Armadas americanas são profissionais, pagam bem e dão educação e treinamento aos seus membros – além de cuidar da família, com o tão sonhado seguro-saúde que o Estado nega aos cidadãos. Aproveitou para falar mal do Exército russo (“um total fiasco”), que naquele momento havia invadido a Ucrânia havia 100 dias.
E as perguntas seguiam:
- Qual pássaro é incapaz de correr?
Mas a conversa mais reveladora – e um tanto surreal – foi com um rapaz nos seus 30 anos, e estatura média, loiro e de olhos azuis, que estava acompanhado pela esposa, uma morena mais jovem e sorridente, que mal escondia o orgulho da sua carreira em franca ascensão. Fui me apresentando sem cerimônia, e, ao ouvir que ele era do Exército, perguntei onde ele trabalhava. “Meu último emprego foi no Iraque”, disse. O que você fazia?, perguntei.
Ele respirou fundo, mas considerou que podia ser direto: “Eu mato pessoas”.
Exigi uma explicação mais detalhada. O rapaz, veja, pertencia à unidade de “targeted killing”, que se especializa em operações para assassinar alvos altamente estratégicos em uma guerra, como aconteceu com o general Qasem Soleimani, comandante militar do Irã, morto por um ataque aéreo no aeroporto de Bagdad. Ele parecia completamente desavexado do seu “ramo” de trabalho, então segui perguntando. O que ele achava das mortes de civis por drones?
“A cada ordem de ataque que eu recebo”, explicou, como se tratasse de uma operação matemática, “tem uma estimativa do número de ‘casualidades’ que podemos ter”. Tentei perguntar se era sempre possível seguir à risca, e ele defendeu os procedimentos, dizendo que sim, claro, sempre é tudo muito bem calculado. “Depende da importância do alvo. Quanto mais importante mais danos colaterais vale a pena ter”.
Com o álcool subindo à minha cabeça, em um dado momento a conversa me constrangeu um pouco, e eu fui direta com ele, dizendo que aquilo era um absurdo de ouvir para uma jornalista como eu. Que matar pessoas não é meio de vida e matar civis, então, nem se fale.
Me afastei e fui pra outro canto do bar, decidida a responder algumas das perguntas da competição para ajudar meu time. Mas acho que ele ficou um pouco chocado com minha resposta, e aí passou boa parte da noite tentando me convencer que há casos, sim, em que vale a pena matar alguns civis para atingir um alvo.
Ele chegou pra mim e perguntou: - Quem é o político mais corrupto do Brasil?
“Olha, a corrupção tem sido usada recentemente no país como meio de perseguir alguns setores...” comecei, parando em seguida ao perceber que ele não tinha a sofisticação para discutir as nuances de operações como a Lava Jato. Na cabeça dele, América Latina é igual a corrupção, repúblicas bananeiras, e portanto eu iria me indignar ao falar em corrupção. Disse a ele: “mesmo se houvesse alguém bem corrupto, eu não acho que é legal ter alguns ‘danos colaterais’ civis para matar um corrupto”.
– Mas quem é o pior político? Pense nisso. Eu disse a ele que tínhamos um presidente péssimo, que era pessoalmente responsável pela morte de mais de 600 mil pessoas durante a crise do Coronavírus.
“Pois então”, me disse ele. Eu já estava aqui começando a ponderar a ideia, quando perguntei a ele se daria pra fazer o serviço sem matar nenhum civil. “Difícil”, disse ele, calculando seriamente a questão; chefe de Estado está sempre rodeado de gente. Depois de algumas idas e vindas, achei melhor deixar o papo para lá: entendi que não ia convencê-lo que não existe medida que torne razoável calcular o número de mortes de civis em caso algum. Além disso, vai que ele levava a coisa a sério...
Estávamos indo bem. Uma das últimas perguntas foi algo absolutamente específico sobre uma legislação federal que tinha repercussões estaduais. Ainda bem que o colega do Departamento de Justiça estava no nosso grupo.
A noite terminou com um desagradabilíssimo episódio no qual um rapaz moreno, que se apresentou como um “civil” trabalhando na embaixada na Alemanha – esse sim, tinha CIA na testa e um ar de galã canastrão – resolveu dar em cima de mim, colocando os braços sobre meu ombro, e eu gritei com o sujeito, empurrando-o. A confraternização e o clima amigável acabaram ali. Eles saíram para farrear por mais bares atrás de meninas que os vissem como heróis, e eu e meu marido fomos para casa. E levamos o prêmio. Pois, sim, com a ajuda da inteligência americana, nós conseguimos acertar todas as perguntas e vencer a competição.
Finalizo lembrando, caros leitores, que a Pública precisa chegar a 2 mil aliados para seguir fazendo jornalismo de maneira independente e não cedendo à sedução de agentes de inteligência de quaisquer governos. Chegamos a metade da meta, mas precisamos ainda de 250 novos apoiadores mensais. Você pode ser um daqueles que ajudam a Pública a existir. Vem fazer parte disso?
Um ano novo com menos segredos e menos serviços secretos, |
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