terça-feira, 13 de dezembro de 2022

 

O novo terrorismo é de direita e acredita em QAnon 

 

A primeira vez em que o Brasil prendeu suspeitos de terrorismo foi em 21 de julho de 2016, duas semanas antes do começo dos Jogos Olímpicos. Lembro bem da ocasião porque fizemos uma investigação aprofundada sobre o inquérito, iniciado a partir de ação da Polícia Federal sob Alexandre de Moraes, então Ministro da Justiça do governo de Michel Temer.  Dez homens foram presos preventivamente, em regime fechado. Eram seguidores do islã radicalizados, atiçados ainda mais por um infiltrado da PF que agia em grupos de Facebook e Telegram, fomentando ilusões de um ataque terrorista. Mas eles chegaram, no máximo, a sondar como seria tal ato durante os jogos; falaram em “envenenar os reservatórios de água” do Rio de Janeiro. Chocou-me na época não haver um plano concreto que embasasse as prisões e posteriores condenações. Um deles, pelo estigma, foi linchado dentro da penitenciária e morreu aos 36 anos. Mas não me lembro de ter ouvido nenhum protesto sobre a liberdade de expressão daqueles suspeitos, pobres e marginalizados, estar sendo violada. 

Pulemos para 2022, quando vemos não apenas figuras públicas falando abertamente sobre realizar ataques violentos e romper a ordem democrática, como o presidente do partido PTB, Roberto Jefferson, atirando granadas e tiros de fuzis contra policiais; e uma deputada federal caçando um opositor de arma em punho em plena região da Paulista. E, depois disso ainda a vemos reunir-se com altos membros da OEA para dizer que está sendo perseguida por ter, como punição, apenas suas redes sociais suspensas. Não houve grandes prisões dos que bloquearam estradas e ainda acampam em frente de quartéis pedindo a quebra da ordem democrática – as decisões vindas do mesmo Alexandre de Moraes têm priorizado suspensão de contas em redes sociais e bloqueios financeiros. Ainda assim, muitos expressam que o Supremo está abusando dos seus poderes. Esqueceram-se como nossa Justiça já tratou “terroristas” no passado. 

Não é preciso olhar muito longe para perceber que uma das ameaças à segurança que mais crescem hoje em dia, mundialmente, são os grupos radicalizados à direita, um fenômeno que caminha de mãos dadas com as teorias da conspiração que correm soltas em redes sociais. Na semana passada, a polícia alemã prendeu 25 suspeitos de planejar uma invasão, por um pequeno grupo armado, do parlamento alemão como meio de derrubar o governo. O ministro da Justiça descreveu a ação como uma “operação antiterrorista”, necessária porque muitos dos suspeitos tinham acesso a armas. Qualquer semelhança com a invasão do Capitólio em 6 de janeiro não é mera coincidência. Entre os presos mais ativos havia ex-militares, frequentadores de fóruns de teorias da conspiração como o QAnon, uma policial, e até um príncipe. Segundo os promotores, os membros do grupo acreditavam “em um conglomerado de teorias da conspiração que consistem em narrativas dos chamados Reichburger, bem como da ideologia QAnon”. Explico:  Reichburger é um movimento monarquista que defende a volta ao regime dos Kaisers na Alemanha e rejeita o estado moderno implantado em 1918; e o QAnon prega que os Estados Unidos (mas pode ser transplantado para qualquer país) é governado por uma elite secreta, um “Deep State” (Estado Profundo) que de fato controla todos os políticos. Os detidos acreditavam que a Alemanha é controlada pelo “Deep State” e que só a ação militar poderia trazer a verdadeira “libertação”. 

O FBI já reconhece a tendência ao extremismo político de ultradireita como uma das maiores ameaças à segurança interna, conforme explicou há algumas semanas o diretor do Bureau ao Congresso americano. Por sua vez, o ministro de segurança interna Alexandro Mayorkas disse em claro e bom som que as plataformas de redes sociais “permitem que indivíduos e nações aticem as chamas do ódio e das frustrações pessoais para grandes audiências” e que “estão incentivando as pessoas a cometer atos violentos".

Passei a última semana em Washington, pela primeira vez desde a invasão do Capitólio, e não pude deixar de perguntar aos jornalistas locais: por que ninguém foi ainda punido por aquilo? As primeiras condenações, tímidas, só agora começam a acontecer. “Não sei”, foi a resposta que eu mais ouvi.  

Não conheço profundamente os processos e, correndo o risco de estar generalizando, arrisco dizer que falta pulso mais firme, tanto aqui quanto nos EUA, porque o perfil de quem organiza, planeja e às vezes executa essas ações é diferente daqueles que geralmente encontram o implacável peso da lei: classe média e branca, em vez de pretos e pobres.  
Mas, ao contrário dos americanos e dos brasileiros, as autoridades alemãs não ficaram apenas monitorando a movimentação lunática; prenderam a geral.  

Não sou eu quem vai defender que a prisão pode reestabelecer qualquer ser humano, ainda mais no Brasil, e nem que essa seja a solução para a situação de extremismo político que vivemos, fomentada não só pelas plataformas, mas pelo presidente em exercício, que na última semana saiu do seu silêncio sepulcral para dizer aos apoiadores que “nada está perdido” e “quem decide para onde vai as Forças Armadas são vocês”.

Não se pode esquecer que esse mesmo presidente afirmou inúmeras vezes estar ampliando a posse de armas no país porque “povo armado jamais será escravizado”, o que sempre foi um chamado à violência política. E nem que o filho 03 deste mesmo presidente, Eduardo Bolsonaro, jactou-se nos Estados Unidos, em um congresso para jovens em julho desse ano, que seu pai havia triplicado o número de armas nas mãos de civis e que, hoje, elas superam as armas nas mãos de militares.

 

O que se está tratando de fazer é consolidar a naturalização de um discurso violento, golpista e que se nega a reconhecer a legitimidade de mais da metade dos eleitores, que decidiram devolver a presidência a Luís Inácio Lula da Silva. Assim, pedir um golpe de estado e pregar “surras” e “mortes” a petistas tornou-se tão normal quanto torcer para um determinado time de futebol.        
   

 

O perigo não está em uma ação que possa de fato reverter o curso da eleição de Lula, mas na importação de mais uma das mazelas americanas, a figura do lobo solitário que invade escolas e cinemas para realizar execuções em massa ou, nas palavras do próprio presidente, “metralhar a petralhada”. Como já aconteceu, vale lembrar, nas eleições mais violentas da última década, na qual morreram pelo menos 15 pessoas vítimas de violência política, segundo levantamento que fizemos aqui na Agência Pública. E nem contamos a ação do “lobo solitário” que assassinou Marcelo Arruda, tesoureiro do PT em julho deste ano, apenas porque celebrava seu aniversário com temática da campanha lulista. 

É possível que entremos numa era de psicopatologia social externada por ações de extremismo político. E, no entanto, não há uma discussão mais ampla sobre o que podemos fazer para desradicalizar essa parcela da população que se perdeu em devaneios auto-heróicos sobre um golpe de Estado redentor. 

Há pouca literatura sobre o assunto, e menos ainda ações concretas para buscar retomar contato com essas pessoas. Outro dia, uma colega contou sobre um primo que raspou o cabelo e chegou a despedir-se da família para embarcar em uma ônibus que iria “salvar o país”: estava pronto a morrer pelo seu mito. Ele não é o único. 

Durante minha estadia em Harvard, tive o prazer de conhecer o fotojornalista Jim Urquhart, da Reuters, que se especializou em cobrir as milícias rurais americanas de ultradireita e, mais recentemente, os movimentos supremacistas brancos. São de sua autoria algumas das fotos mais icônicas da invasão do Capitólio. Quando o conheci há um ano, Jim carregava a tensão de cobrir grupos altamente armados, violentos na fala mais corriqueira, racistas, homofóbicos e obcecados com teorias e histórias infundadas sobre como o mundo funciona (e, claro, ávidos leitores de grupos conspiracionistas). Ouvir sua perspectiva era chocante. 

Durante essas conversas com Jim procurei acompanhar como a discussão sobre a desradicalização chegou a ganhar impulso na mídia americana, mas terminou sendo esquecida. Nada foi feito de realmente relevante para resolver o fenômeno. Lembro de uma entrevista na qual Michael Jensen, um especialista em terrorismo e extremismo, alertava para o fato de estarmos lidando com um novo tipo de extremismo – a radicalização em massa. “Simplesmente não temos experiência com nossas modernas tecnologias de comunicação para lidar com algo como um programa de desradicalização em massa. Nos exemplos históricos que podemos apontar – a Alemanha nazista e lugares assim – as ferramentas usadas simplesmente não são aplicáveis ​​em nossa situação”. 

Jensen era corajoso ao dizer isso, num país em que todo mundo sempre quer ter a resposta para tudo. No máximo, ele propunha uma campanha de “conscientização pública” liderada por formadores de opinião da direita, que buscasse trazer os radicais de volta à normalidade. E alertava que não ia adiantar nada Joe Biden dizer – assim como Lula está dizendo –  “vamos resolver nossos problemas juntos”. 

“Para esses grupos ele é parte da facção inimiga. Temos que ver indivíduos de dentro desses grupos saindo e dizendo: “OK, já chega”.

Acontece que isso não aconteceu nos EUA, onde o cálculo político ainda leva em conta que é vantajoso ter uma porção significativa da população acreditando que os democratas fraudaram as eleições de 2020. E, parece, tampouco vai acontecer por aqui.

 



Natalia Viana
Diretora Executiva da Agência Pública

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