Por Ciro Barros e Iuri Barcelos
Cansados de esperar por fiscalizações mais frequentes da
Funai,
do Ibama e da Polícia Federal, o povo Guajajara da terra indígena (TI)
Arariboia, no Maranhão, resolveu reagir. “A gente resolveu formar uma
comissão de lideranças e caciques. Essa comissão achou melhor que a
gente tivesse os nossos próprios guardiões da terra, pra gente mesmo
defender o nosso território”, conta Suluene Guajajara, uma das
lideranças do povo. Esses guardiões Guajajara receberam das lideranças
uma missão: percorrer todos os 413 mil hectares do território em busca
dos invasores atraídos pelas riquezas naturais, sobretudo a madeira.
Ao protegerem a própria área, os indígenas buscam garantir seu direito de usufruto exclusivo dela,
como determina a Constituição.
Antes de saírem para a guarda, os índios comunicam à Funai e, ao
flagrarem qualquer invasor, o cercam e avisam às autoridades. O risco,
porém, os acompanha a cada passo da ronda.
“Os guardiões sofrem muita ameaça. Eles não podem mais fazer compras
na cidade, por exemplo. As pessoas que lucram com a exploração das
nossas terras ficam falando que vão queimar, vão cortar o corpo dos
guardiões. Eles até colocam preço na cabeça dos guardiões: quem matar um
leva dez mil, R$ 15 mil”, diz. A voz de Suluene estremece, os olhos
enchem d’água. “A gente vive com muito medo.”
As ameaças de morte já se concretizaram. Só neste primeiro semestre
de 2016, quatro Guajajara (Aponuyre, Genésio, Isaías e Assis) foram
violentamente assassinados no período de um mês, dois deles a pauladas, e
um deles, Aponuyre, tinha apenas 16 anos.
Outro índio assassinado, Assis Guajajara, era um guardião.
“Infelizmente isso não é novidade, a gente se acostumou a viver com
medo. Em 2007, os madeireiros já tinham matado outro indígena, um senhor
da aldeia Lagoa Comprida. E eles nunca pararam de nos ameaçar”, conta.
“A Funai vai lá na terra uma vez, faz uma ação, coíbe alguns
madeireiros, mas é só a Funai sair que eles voltam. A gente fica oito,
dez dias protegidos, mas a Funai vai embora. Os próprios funcionários
são ameaçados na estrada pelos madeireiros. E parece que eles são
avisados: quando a operação da Funai chega, eles saem e não estão mais
lá”, desabafa Suluene.
Queda livre nas fiscalizações
A morte dos Guajajara vem na esteira de um cenário preocupante para
os povos indígenas brasileiros: a queda livre nas ações de fiscalização
em terras indígenas pela Funai. Segundo
o último relatório de gestão do órgão indigenista,
em 2011 foram 227 ações de fiscalização e, em 2014, o número caiu para
92 ações, queda vertiginosa de 59%. O relatório aponta uma razão para a
redução das ações de fiscalização: a insuficiência de recursos
orçamentários, fato que “limita o desempenho das ações da Diretoria de
Proteção Territorial no cumprimento de suas atribuições legais,
principalmente para a implementação de ações de monitoramento
territorial, que têm tido uma expressiva redução nos últimos anos”.
Levantamento realizado pela Agência Pública indica que a redução das
ações de fiscalização se encaixam em um quadro mais amplo da dinâmica
orçamentária da Funai. Embora o orçamento geral do órgão tenha
apresentado leve crescimento nos últimos dez anos, houve uma forte
redução da verba destinada às atividades de fiscalização da Funai, que
tem a responsabilidade de zelar por uma área indígena equivalente a 13%
do território nacional. Em 2015, por exemplo, o que se gastou com
fiscalização representa menos da metade do que se gastava há dez anos.
Suluene avalia que a Funai padece de apoio do Estado brasileiro. “A
gente que é do movimento indígena sabe que o governo não vem dando
condições para que a Funai faça o seu trabalho direito. A Funai não tem
funcionários pra conseguir fiscalizar nada. E isso é pelas pressões
políticas que eles vêm sofrendo. Mas, enquanto isso acontece, os povos
indígenas correm muito risco”, diz a líder Guajajara.
No ano passado, após dois meses seguidos, um incêndio tratado pelos
Guajajara como criminoso consumiu mais da metade (53,2%) da TI
Arariboia. Os madeireiros são apontados como os principais responsáveis
pelo início das queimadas na região. “Nossa caça fugiu ou morreu, e a
gente não tem mais como viver de acordo com a nossa cultura”, lamenta
Suluene.
Com o incidente, a saúde alimentar e a sustentabilidade dos Guajajara
deixou a comunidade em situação delicada. “A terra não consegue mais
nos alimentar. E uma das formas que mais ameaça a gente é a
alimentação”, diz. Segundo ela, frango da granja, biscoito e
refrigerante passaram a ser consumidos pela comunidade. “Agora temos
casos de diabetes, hipertensão, câncer. Antes a gente tinha doença
espiritual, mas o nosso pajé curava. Só que o nosso pajé não cura um
câncer, não cura diabetes”, diz.
Reestruturação pela metade?
A situação relatada pelos índios com a pouca fiscalização do órgão
indigenista é um dos nós que colocaram a Funai na berlinda em vários
momentos de sua história. Na gestão de Márcio Meira (2007-2012), uma
mudança estrutural por meio de dois decretos (
7056/2009 e
7778/2012)
dividiu opiniões dentro e fora do órgão. “A ideia dos decretos de
reestruturação foi um grande esforço de adequar a Funai à Constituição
de 1988 e garantir a autonomia indígena”, afirmou Meira.
A mudança na Funai foi recebida à época com ressalvas (e protestos)
pelos povos indígenas, movimentos sociais, funcionários e até
por ex-presidentes do órgão, sobretudo pela diminuição do número das
antigas Administrações Executivas Regionais em comparação às CRs criadas
na reestruturação.
A retirada dos postos indígenas das aldeias é criticada pelo
ex-presidente da Funai Mércio Gomes (2003-2007). “[A reestruturação] foi
péssima porque retirou os postos das terras indígenas. Hoje todo mundo
está nas terras indígenas, menos a Funai. Tirar os postos indígenas foi
algo completamente absurdo”, critica. “No Mato Grosso, por exemplo, você
tem várias Coordenações Técnicas Locais próximas às terras dos Xavante,
mas ninguém dentro das terras para coibir os conflitos que ocorrem lá.
Essa reestruturação esvaziou a Funai”, avalia.
Meira defende a medida tomada por sua gestão. Ele explica que a
reestruturação começou em 2007, com base em um levantamento feito pelo
Tribunal de Contas da União (TCU) e com estudos da própria Funai. “Nós
elaboramos uma reforma processual que, lamentavelmente, não pode ser
continuada nas gestões posteriores”, avalia.
Para ele, os concursos públicos contínuos eram um passo fundamental
na reformulação proposta. “Havia a expectativa de que o Ministério do
Planejamento desse continuidade aos concursos a cada ano, o que não
aconteceu”, reclama.
O sócio-fundador do Instituto Socioambiental Márcio Santilli, que já
presidiu a Funai (1995-1996) na gestão de Fernando Henrique Cardoso, vê
“vários méritos” na reestruturação de Meira, mas pondera que os
concursos públicos perderam efetividade. “A Funai tem uma enorme
dificuldade de basear pessoal nas pontas, especialmente no caso das
terras indígenas que, muitas vezes, são áreas remotas”, avalia.
Gustavo Vieira, servidor da Funai e membro do Movimento de Apoio aos
Povos Indígenas (Mapi), avalia que a reestruturação do órgão deu novo
perfil ao funcionário da Funai, que passou a ser mais “articulador de
políticas locais” e menos um agente que “atende demandas diretas do
índios”. “O chefe de posto tinha mais ou menos essa função, ou seja,
seria uma espécie de ‘cacique branco’, que se relacionava com os índios
de uma forma meio assistencialista”, opina.
A despeito das críticas, Vieira vê uma institucionalidade maior do
órgão com a reestruturação. “A retirada dos postos avançados de dentro
das aldeias e a criação das CTLs nas cidades deram uma articulação
melhor dos funcionários da Funai com as prefeituras, com as secretarias
municipais e estaduais.”
Lado indígena
Sônia Guajajara, liderança da Articulação dos Povos Indígenas do
Brasil (Apib), é assertiva sobre a questão: “A reestruturação está só no
papel e a Funai só tem se distanciado dos conflitos das terras
indígenas”.
Telma Marques, da terra indígena Araçá e membro do Conselho Indígena
de Roraima, considera que a Funai passou pela reestruturação para
definir várias situações, mas que “falta muita coisa para que haja uma
atuação direta com os povos indígenas”.
Segundo ela, a fiscalização é um dos grandes problemas. “Todas as
ações dentro das terras ainda são pequenas. Há um contingente mínimo de
pessoas para fazer as ações, o que acaba inviabilizando o trabalho da
Funai.”
Segundo o
último relatório de gestão do
órgão, os cortes nas atividades de proteção territorial foram de 50%
entre 2008 e 2014. O governo ainda não regulamentou o poder de polícia
da Funai, algo previsto na lei que criou o órgão em 1967. “Hoje não está
muito claro o papel da Funai. A gente está vendo que a Funai está sem
braço para garantir a segurança dos povos indígenas. Mas enquanto isso a
gente é que está sofrendo na pele”, conclui Rosimeire Maria Vieira
Teles, do povo indígena Arapaso, da TI Alto Rio Negro.
Para além do debate sobre a reestruturação da Funai e a autonomia
indígena, a violência contra esses povos é uma realidade crescente. As
pressões a que os povos indígenas estão submetidos são as mais diversas:
vão de ameaças de narcotraficantes às de madeireiros, passando pelo
garimpo ilegal, a pecuária extensiva e megaempreendimentos públicos e
privados (hidrelétricas, estradas, barragens de mineração etc.).
Programa de proteção já acolheu 133 indígenas
Dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (arquivo
1 e
2)
mostram que 38 indígenas estão incluídos atualmente no Programa de
Proteção de Defensores de Direitos Humanos, mantido pelo governo
federal. Outros 43 passam por uma triagem e 15 estão em análise. Ao
todo, 133 índios foram acolhidos pelo programa entre 2009-2016.
A situação de insegurança corrobora os relatórios sobre violência
contra os povos indígenas elaborado desde 2003 pelo Conselho Indigenista
Missionário (Cimi). Somente em 2014, ano do último levantamento, 138
indígenas foram assassinados no país, número mais alto da história do
relatório. A média anual é de 68 assassinatos.
