Brasiliana
As letras libertárias de Maria Valéria Rezende
A freira brasileira dedica-se a dar voz aos oprimidos e excluídos
por Rodrigo Casarin
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publicado
11/04/2016 04h25
Roberto Menezes

A fama repentina veio com o Prêmio Jabuti de 2015 pelo romance "Quarenta dias"
Maria
Valéria Rezende foi convidada a morar na Nicarágua no fim da década de
1970. Durante o governo sandinista, a freira e professora cuidava da
alfabetização de agricultores. Graças a esse trabalho, Fidel Castro contratou-a para ensinar aos trabalhadores dos canaviais cubanos.
A experiência bem-sucedida tornaria a
religiosa uma conselheira do “Comandante”, que gostava de jogar conversa
fora madrugada a dentro. Por vezes, o desjejum ocorria na companhia do
escritor Gabriel García Márquez, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1982 e presença constante na ilha.
Como no poema de Carlos Drummond de Andrade, a freira foi ser gauche
na vida. A maior parte dos seus 74 anos ela dedicou aos deserdados do
mundo. Às experiências com analfabetos na Nicarágua e Cuba juntam-se
projetos semelhantes em Timor e Angola. Entende-se, portanto, a
onipresença dos excluídos em seus livros.
A religiosa acumula 15 obras, dez delas
dedicadas ao público infantojuvenil. “Só posso escrever sobre o que
conheço”, explica. No ano passado, a discreta Maria Rezende conheceu a
fama repentina. Seu romance Quarenta dias (Editora Objetiva, 248 págs. R$ 39,90),
sobre as agruras de uma professora aposentada em uma periferia do
Nordeste, venceu o Prêmio Jabuti, uma das principais láureas do mercado
editorial brasileiro.
Escrever e educar são as bissetrizes da
religiosa. Nascida em Santos, ela começou ainda na adolescência a dar
aulas de alfabetização no sindicato dos estivadores da cidade. Aos 24
anos ingressou na Congregação de Nossa Senhora – Cônegas de Santo
Agostinho e tornou-se freira. Formada em Pedagogia, Maria Rezende viu-se
obrigada a passar alguns anos longe do Brasil.
Durante a ditadura, estendeu os braços a
militantes de esquerda. A generosidade evidentemente desagradou às
forças de repressão, que passaram a persegui-la. Achou por bem
exilar-se. Entre os trabalhos voluntários na América Latina, Ásia e
África, formou-se em Literatura Francesa na Universidade de Nancy e fez
mestrado em Sociologia.
Sobre a opção da vida
atrelada à Igreja, ela, em uma breve conversa sobre os papéis de uma
freira na sociedade moderna, traz um ponto de vista que vai além da
habitual caricatura das religiosas.
“A depender do tipo de congregação e sua
finalidade”, inicia, “pode-se ter uma opção prioritária para sua missão,
como educação, saúde, pastoral nas comunidades populares, ou uma vida
mais recolhida de oração e acolhida aos que buscam apoio espiritual e
humano. Somos mulheres leigas, não somos uma espécie de subpadres, não
pertencemos ao clero, não somos, em princípio, funcionárias da
instituição eclesiástica. Temos de ter profissão
normal como outras mulheres e ganhar nossa vida como elas. Apenas
escolhemos um estilo de vida que nos deve deixar mais disponíveis ao
serviço, aos irmãos, sobretudo os mais abandonados por essa sociedade. E
não priorizamos a ‘carreira’, mas o serviço.”
- Maria alfabetizou agricultores na Nicarágua sandinista e na Cuba de Fidel. Tornou-se amiga de Gabriel García Márquez (Ria Novosti/AFP, Jack Manning e AFP)
Maria Rezende logo elegeu como prioridade
de vida a alfabetização de adultos pobres. Após a temporada fora do
Brasil, decidiu instalar-se em João Pessoa, onde vive até hoje. Na
capital paraibana, trabalhou com sem-terras e hoje dedica-se a auxiliar
imigrantes africanos e haitianos.
Numa época na qual a religião costuma ser
colocada em xeque, a freira não perde a fé. “A função da religião é
promover, pela sua prática principalmente, a fraternidade, a
solidariedade, a tolerância, a acolhida ao outro, ao diferente e à
crítica, mais pela ação do que pela pregação, daquilo que separa,
brutaliza, exclui.”
A religiosa aprova
o papado de Francisco. “Ele tem cumprido belamente o papel que lhe
cabe: pregar e agir segundo os valores do Evangelho, desde o patamar
mais simples, de sua vida e imagem pessoal, evitando a pompa dos
poderosos deste mundo, que se foi acumulando por séculos no Vaticano,
até tomar a posição de mediador e pacificador diante dos conflitos de
todo tipo que assombram o mundo nestes nossos tempos tão perigosos.”
Maria Rezende divide uma casa com outras
freiras e confessa a dificuldade em lidar com a “crise de celebridade
instantânea” que o Prêmio Jabuti lhe trouxe. Dentre as dores de cabeça
está a provocada por uma foto frontal com um cigarro na boca.
Muitos, de boa ou má-fé, declararam-se
assustados ou desiludidos com o fato de uma religiosa fumar. Outros
imbuíram-se da missão divina de convencê-la a largar o vício. Ela se
incomoda, como se pensassem que ela desconhecesse os efeitos do cigarro.
Mas o que são algumas baforadas diante dos males deste mundo?
*Publicado originalmente na edição 894 de CartaCapital, com o título "Letras libertárias"
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