América Latina
Honduras e Paraguai, motivos de inspiração
Os golpes recentes nos países latinos fornecem pistas para a tentativa de impeachment em curso no Congresso
por Marsílea Gombata
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publicado
06/04/2016 04h20
Orlando Sierra/AFP

Contagiado por companheiros sul-americanos, Zelaya cultivou preocupações sociais e pagou por isso
Manifestações raivosas, manobras no Legislativo e no Judiciário questionando o mandato da presidenta Dilma Rousseff
reacendem no Brasil e na América Latina a controvérsia sobre a
deposição de governos eleitos pelas urnas. O enredo não é novidade na
região.
Exemplos recentes também fazem reviver o mal-estar da época da Guerra Fria, quando a América Latina foi palco de golpes militares com o objetivo de destituir presidentes não alinhados com o projeto dos Estados Unidos e das elites regionais.
É o caso de Honduras, em 2009, quando o
então presidente hondurenho Manuel Zelaya foi tirado à força de sua casa
e colocado em um avião que o levou para a Costa Rica. Ou do Paraguai, em 2012, quando em menos de 48 horas o Congresso Nacional votou pelo impeachment relâmpago de Fernando Lugo.
Em ambos os casos, semelhanças que remetem ao atual
momento do Brasil: a movimentação pela deposição de um mandatário
escolhido pelo voto popular, através de dispositivos legais
instrumentalizados por parlamentares e juízes, quando não empresários do
setor industrial ou do agronegócio.
Apesar de constituições estabelecerem que
o poder emana do povo e, no caso brasileiro, que ele pode ser exercido
indiretamente por representantes eleitos como deputados e senadores, é
sabido o distanciamento entre o interesse popular e representantes
legislativos. Uma relação débil e evidenciada nos processos hondurenho e
paraguaio, quando veio à tona a ambição de grupos afastados da política
por trás dos golpes em ambos os países.
Ainda de pijamas, Manuel Zelaya foi detido em sua residência em 28 de junho de 2009 por militares que o obrigaram a deixar o país.
Empresário e proprietário de terras,
Zelaya comandou desde 2006 um governo marcado por tímidos avanços
sociais com leve aumento do salário mínimo, a oposição ao escalonamento
da “guerra às drogas” de Washington e, de modo geral, a continuidade de
políticas neoliberais na economia.
A oposição a ele ficou evidente, no
entanto, quando Honduras, duramente afetada pela crise de 2008, se
alinhou à Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (Alba) e à
Venezuela que acenava com crédito, petróleo e insumos agrícolas a preços
favoráveis.
Foi quando setores oligárquicos
encabeçados pelos liberais passaram a articular com militares a
destituição do presidente. O protesto, respaldado pela Suprema Corte,
foi a intenção de Zelaya
de realizar um referendo para decidir se dali a cinco meses, juntamente
com as eleições gerais, caberia convocar uma Assembleia Constituinte.
Opositores viram na intenção uma manobra
para ele se perpetuar no poder, e a acusação de inconstitucionalidade
sobre a consulta popular foi elevada a crime de lesa-pátria. Zelaya foi
prontamente substituído no poder por Roberto Micheletti, presidente do
Congresso, que logo teve o apoio de setores conservadores, abrindo um
racha no Partido Liberal, legenda de ambos.
Ramón
Barrios, professor de Direito Constitucional em San Pedro Sula, em
Honduras, lembra que, apesar de a Constituição hondurenha não permitir
consultas populares, havia sido aprovada meses antes a Lei de
Participação Cidadã, que possibilitaria a realização de um referendo.
“Só que existia uma clara ingerência do
governo norte-americano no país, por meio de empresas privadas e suporte
financeiro para manifestantes opositores”, lembra também o magistrado,
cassado à época por se posicionar contra o golpe.
“O processo pelo qual passa o Brasil hoje
tem semelhanças com os que viveram Honduras e Paraguai e com os que
vivem Venezuela e Equador: governos que se mostram independentes dos EUA
levam Washington a intervir.”
Assim, apesar de Zelaya ser oriundo de grupos
oligárquicos, a atmosfera mudou quando ele passou a se voltar para
interesses populares. “Em Honduras os setores mais poderosos são
alérgicos a mudanças sociais”, observa Eugenio Sosa, sociólogo
pesquisador da Universidade Nacional Autônoma de Honduras, para quem o
golpe em 2009 foi diretamente articulado pelos EUA.
“Tanto que depois foram aprovadas diversas leis que
favorecem ainda mais a intervenção do capital estrangeiro no país, ao
beneficiar, por exemplo, o setor minerador.”
Três anos depois da queda de Zelaya,
deu-se no Paraguai um golpe que lembra ainda mais o clima do Brasil de
hoje. Por 39 votos a favor e 6 contrários, o Senado aprovou em 22 de
junho de 2012 a remoção de Fernando Lugo do poder, abrindo espaço para o
vice-presidente Frederico Franco, do Partido Liberal Radical Autêntico,
um ano após romper a coligação com Lugo. A decisão coroava a aprovação
na Câmara dos Deputados, com 73 votos a favor e 1 contrário, ao processo
de impeachment.
Segundo o argumento oficial, Lugo era retirado do poder pelo “fraco desempenho de suas funções”.
Ex-bispo católico ligado a
movimentos sociais de esquerda, Lugo mantinha um histórico de atuação
com os sem-terra paraguaios. Ele fora eleito com a promessa frustrada de
reforma agrária em uma aliança de conveniência com o Partido Liberal,
responsável pelo fim ao reinado de mais de 60 anos do Partido Colorado,
legenda no poder desde a ditadura de Alfredo Stroessner, entre 1954 e
1989. após um confronto violento com trabalhadores sem-terra na
região de Curuguaty, leste do país, onde 11 sem-terra e 6 policiais
haviam morrido uma semana antes. Lugo, em um primeiro momento apático,
logo acusou o empresário Horácio Cartes (atual presidente do Paraguai)
de estar por trás da tentativa de golpe.
Sem aliados no Congresso e com a proximidade das eleições
presidenciais em abril de 2013, Lugo era cada vez mais pressionado (ele
enfrentou mais de 20 ameaças de impeachment ao longo do mandato) e
não via alternativa senão ceder à chantagem permanente. Os liberais
ganharam, então, uma fugaz Presidência com Franco. Os colorados, por sua
vez, conquistaram de volta o poder, com Cartes eleito meses depois.
“Lugo nada teve a ver com as mortes no campo. Essa foi uma
manobra com objetivo claríssimo: criar uma crise política, na qual a
disputa de força ficou evidente”, observa José Carlos Rodríguez,
pesquisador do Instituto Desarrollo, em Assunção, e membro consultivo do
Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais. “O que aconteceu nem
pode ser considerado um processo jurídico de fato, pois não houve tempo
hábil para Lugo se defender nem provas. Creio que o Brasil vive algo
parecido nesse sentido.”
Para Fabio Luis Barbosa dos
Santos, professor de Relações Internacionais da Unifesp, deu-se tanto em
Honduras quanto no Paraguai que o Congresso forjasse acusações sem
respaldo jurídico, apenas como pretexto político para depor os
presidentes.
“Nesses países, o Legislativo não tem prerrogativa de
abreviar um mandato por divergência política, apenas se for comprovada a
atuação ilegal do mandatário. Não é como na Venezuela e na Bolívia, por
exemplo, que o Congresso tem poder de convocar um referendo revogatório
e pedir uma espécie de recall do presidente”, observa o especialista que realizou estudos no Paraguai para o Ipea à época.
As manobras em Honduras e no Paraguai, lembra Santos, não
foram apenas ilegais, como também ilegítimas, pois não contaram com
apoio da maioria da população. “Em ambos os países, a
destituição foi arbitrária e impopular. Os desdobramentos mostraram que,
por trás de um discurso de defesa do interesse nacional, a motivação
dos que lideraram os processos foi a retomada do poder político. Em
Honduras retornaram os liberais, e no Paraguai, os colorados.”
Ao analisar os casos de Honduras e Paraguai e traçar um
paralelo com o momento político atual do Brasil, Sosa observa que os
golpes hoje são executados no marco das instituições tidas como
democráticas. “São golpes do século XXI, com uma roupagem
constitucional, mais midiáticos e sem ter os militares como
protagonistas.”
Mais do que heranças do passado ditatorial que amargou a América Latina nas
décadas passadas, os golpes em Honduras e no Paraguai, e a tentativa em
curso no Brasil hoje, representam uma ameaça não apenas às conquistas
feitas, mas também ao futuro da região.
“São movimentos contrários também à
consolidação de uma América Latina mais autônoma”, afirma Rodríguez, ao
ressaltar que não se trata apenas de analisar o passado, mas também
pensar o futuro. “E o Brasil, por sua importância regional, simboliza
essa maior autonomia do nosso continente. Portanto, tudo o que acontecer
com ele será um problema para todos nós.”
*Reportagem publicada originalmente na edição 895 de CartaCapital, com o título "Motivos de inspiração"
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