Apesar de suas falhas profundas, jornais e emissoras não podem ser
culpados pelo ambiente político tóxico que tomou conta do País – o
quadro é muito mais complexo
Este é o segundo texto da série especial produzida pelo Politike e pelo OxPol sobre a crise no Brasil.
Como qualquer país com uma democracia minimamente funcional, o Brasil
tem uma relação ambivalente com sua grande mídia. E, como em todos os
países com uma economia de mercado minimamente funcional, a grande mídia
brasileira tem sido afetada por plataformas digitais personalizadas.
Esses dois elementos, e como eles se emaranharam, são essenciais se
quisermos compreender o papel do sistema de mídia na agitação social que
toma conta do Brasil desde o ano passado. Meu argumento é simples:
apesar de suas falhas profundas, jornais e emissoras não podem ser
culpados pelo ambiente político tóxico que tomou conta do País – o
quadro é muito mais complexo.
Pela primeira vez na história brasileira, a narrativa de uma grave
crise política tem sido construída por um sistema de mídia incrivelmente
fragmentado. Isso, acredito, desafia apontares de dedo simplistas e
afeta o debate sobre quem é de fato moralmente responsável pela erosão
de uma comunalidade sempre frágil.
Algumas ressalvas iniciais. Primeiro, a maior parte do que vou dizer é
baseada apenas em minha avaliação pessoal e observação crítica. Até
onde sei, nenhum trabalho acadêmico (com algumas exceções, conforme
destaco abaixo) explorou essas questões sistematicamente. Em segundo
lugar, minha análise será focada na Operação Lava Jato, a origem
imediata da crise política estrutural brasileira, mas não abordará os
laços entre a mídia e a crise econômica – que é, ao menos, tão
importante quanto a crise política. Finalmente, minhas opiniões são
inevitavelmente moldadas pela minha experiência passada como jornalista
na Folha de S.Paulo.
Grande mídia: concentrada, enfraquecida, odiada
O mercado dos meios de comunicação brasileiro é altamente
concentrado, sabemos. Há três principais emissoras de televisão
nacional: Globo, Record e SBT. Similarmente, a imprensa, com uma audiência relativamente minúscula, é dominada por três tradicionais jornais: Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo e O Globo. O mercado das revistas semanais é ainda menos dinâmico. Apenas duas publicações (Veja e Época)
podem se dizer relevantes em termos de circulação. Jornais e emissoras
possuem seus próprios sites, com enorme audiências. Mas, apesar de
algumas iniciativas interessantes, não há nenhuma empresa robusta de
jornalismo online nativo.
Devemos também levar em conta que a grande mídia (especialmente os
veículos impressos) foi fortemente atingida por enormes dificuldades
financeiras nos últimos quatro anos. Enfrentando uma crise econômica
geral, e sua incapacidade específica de competir com Facebook e Google
por anúncios online, jornais e revistas (e algumas emissoras) realizaram
demissões em massa, dispensando alguns de seus mais experientes
repórteres e editores.
Se historicamente a concentração de mercado cria uma homogeneidade
inter-empresas, demissões têm aprofundado um tipo de homogeneidade no
interior das redações: menos pessoas, menos diversidade, menos
incentivos para repórteres discordarem de ordens de editores e para
editores resistirem a diretrizes impostas de cima para baixo. Não
surpreende o declínio perceptível na qualidade técnica (escrita clara,
análise sofisticada) e a pura falta de mão de obra. Contratar
jornalistas sem experiência, como alguns veículos têm feito, não é o
bastante. A mais importante crise política brasileira em décadas tem
sido coberta por uma imprensa particularmente enfraquecida.
Isso explica, em parte, o papel passivo que a grande mídia teve em
toda a cobertura da Lava Jato. Não recordo de um fato importante que
tenha sido descoberto por jornalistas durante o escândalo. Como
já se disse, o que tem sido feito é mais próximo de um “jornalismo sobre
uma investigação” do que “jornalismo investigativo”. Repórteres
basicamente trouxeram à tona o que agentes da Polícia Federal e
procuradores descobriram, com maior ou menor qualidade. Até mesmo a
dinâmica típica deste tipo de cobertura, na qual os “melhores
repórteres” são os que possuem as melhores fontes entre os
investigadores, desempenhou um papel menor na Lava Jato.
Isso porque um considerável número de documentos e decisões judiciais
foram tornadas públicas instantaneamente por meio de um sistema online
operado pelo Judiciário. Uma certa transparência disruptora foi a regra –
uma tática raramente analisada que mudou a escala do escândalo, na
medida em que publicizou um oceano de informação ao qual não apenas
jornalistas profissionais tiveram acesso, conforme digo abaixo.
Essa passividade relativa não é equivalente à neutralidade – isso não existe. Mas diferentes veículos têm diferentes vieses.
A Veja está no extremo ruim do espectro. Em espiral negativa
há pelo menos uma década, a ainda poderosa semanal se assemelha hoje a
um tabloide barato. A revista já publicou histórias delirantes e
repugnantes com a única intenção de atacar pessoalmente a presidente
Dilma Rousseff e o ex-presidente Lula. Outro momento de considerável
ridículo ocorreu quando a GloboNews cobriu alegremente os imensos protestos contra o governo em uma longa transmissão, quase ininterrupta e acrítica. O Jornal Nacional
também gastou uma quantidade de tempo absurda expondo as conversas
telefônicas entre Dilma e Lula, sem questionar a forma como elas foram
expostas por Sergio Moro, juiz responsável pela Lava Jato.
Outros veículos de comunicação têm, contudo, sido mais equilibrados e suas posições anti-governo são mais matizadas. A Folha de S.Paulo e O Globo,
por exemplo, têm sido ferozes críticos de Eduardo Cunha (PMDB-RJ),
presidente da Câmara dos Deputados e nemesis de Dilma. A Folha publicou
um editorial criticando exageros de Sergio Moro. No último domingo, em
editorial de capa, o jornal pediu, em suma, novas eleições — alinhado-se
involuntariamente a grupos de extrema esquerda. E, de maneira geral,
suspeitas sobre opositores do governo também receberam alguma atenção destas publicações.
Parece existir entre os donos de veículos de comunicação a percepção
de que Dilma é tragicamente inepta, e seu impeachment, ainda que não
ideal e possivelmente ilegal, poderia ao menos destravar a atual
paralisia do governo. Mas, diferentemente de eventos históricos
passados, como o golpe militar que inaugurou a ditadura militar
(1964-1985), a grande mídia tem sido, em geral, menos partidária, menos
violenta e mais ambígua.
Ironicamente, isso impulsionou as críticas a ela. Para apoiadores do
governo, a grande mídia é movida por um preconceito classista contra
Lula e seus suposto projeto popular. Para atores anti-governo, ela está
no bolso do Planalto, e qualquer eventual ambiguidade quanto à
necessidade do impeachment é um pecado capital. Todos amam odiar a
grande mídia.
Por que? Há algumas razões, afora os problemas já citados.
Primeiro, o Brasil, assim como outros países, tem assistido à
ascensão de um zeitgeist anti-establishment. Essa crise de
representatividade também afeta a mídia: quem é a imprensa para definir o
que é relevante?, questionam. Segundo, a mídia brasileira tem um
péssimo histórico quando se trata de defender valores democráticos,
conforme o golpe de 1964 demonstra. Terceiro, nos esquecemos que a
compreensão das pessoas do noticiário é tão enviesada quanto à criação
deste pelos jornalistas. Nós, leitores, entendemos o que queremos, e
facilmente esquecemos a notícia que confronta os nossos preconceitos
contra um jornal ou uma emissora. E, por último, as pessoas possuem
agora um sistema de mídia muito mais fragmentado a sua disposição.
Passo a focar neste último elemento, o qual considero um componente crítico da crise.
Plataformas: fragmentadas, fortalecidas, adoradas
Em grande medida, a crise tem sido experimentada por meio de e nas plataformas
digitais – o que revela algo sobre os descontentes, uma vez que mais de
40% da população brasileira não tem acesso à internet.
Sim, a grande mídia é quem inventou a crise como um “fato” público. E
esse grande “fato”, constituído por milhares de “fatos” menores, tem
sido uma espécie de fonte oficial de informação, sendo compartilhado,
curtido, encaminhado e “memetizado” milhões de vezes. Aqui reside parte
da ambivalência que mencionei no início deste texto: o mesmo leitor que
odeia a Globo, por exemplo, avidamente utiliza a Globo como uma fonte de
informação confiável de notícias sobre a crise. Sem, imagino, perceber a
extensão da contradição do ato.
Parece claro que foram os jornalistas profissionais, e seus patrões,
quem traduziram a investigação em uma sequência reconhecível de eventos,
em uma narrativa pública, externa e coletiva. É importante, no entanto,
notar que eles fundamentalmente não possuem o controle final sobre essa
narrativa. Na verdade, a própria ideia de que há uma narrativa
monolítica sobre a crise é risível, quando se considera o complexo e
insanamente fragmentado mosaico que chamamos de “mídias sociais”.
As coisas mudaram dramaticamente. Primeiro, a Internet brasileira é
populada por uma quantidade inumerável de atores altamente politizados
(alguns deles ligados a diferentes partidos e grupos políticos
organizados). Presentes em todas as plataformas, e representando todos
os lados da disputa, eles têm sido bem ativos em revelar supostas
“farsas da mídia” sobre fatos específicos ao trazer à luz arquivos
produzidos por investigadores da Lava Jato, ou algumas vezes ao destacar
aspectos esquecidos de arquivos ou decisões já explorados por
jornalistas.
Ações como essas, por um lado, visam alterar a narrativa da grande
mídia. Por outro, elas mesmas são à sua maneira contra-narrativas, sendo
também compartilhadas, curtidas, encaminhadas e “memetizadas” milhões
de vezes, frequentemente com interpretações adicionais pelos leitores.
Muitas destas contra-narrativas são não apenas despudoradamente
partidárias, mas altamente incorretas, sexistas, e intencionalmente
enganosas.
Em segundo lugar, considere que plataformas diferentes possibilitam
experiências diferentes. E isso também é crucial se quisermos entender o
nível de polarização que o Brasil tem experimentado. Redes como o
Facebook, que exalta e incentiva identidades “reais”, são menos
propensas, ainda que nem de longe imunes, a narrativas degradantes,
violentas e lunáticas. Principalmente porque compartilhar ou criar tais
histórias pode resultar em custos sociais para os usuários.
Mas aplicativos como WhatsApp, usados em conversas pessoais ou em
pequenos grupos que não ocupam um espaço nem sequer semi-público, como
as do Facebook, se tornaram um canal importante para rumores
alucinantes, sórdidos e apócrifos. No ambiente confortável e privado de
um aplicativo de mensagens por celular as pessoas podem soltar suas
piores fantasias. Nele, é muito mais simples dizer que comunistas devem
morrer, que Dilma é uma “v….”, ou gozar da deficiência física de Lula. E
há que se levar em conta a enorme quantidade de “robôs” (contas
fantasmas controladas automaticamente por softwares) espalhando esses
boatos.
Uma pesquisa liderada por Pablo Ortellado, da Universidade de São
Paulo, tocou na superfície deste fenômeno, e mostrou que esses rumores
circulando em mídias sociais essencialmente opacas, como o WhatsApp,
desempenharam um papel importante em como indivíduos de classe média e
formalmente educados se (des)informam sobre as investigações. Além
disso, o WhatsApp parece ser a ferramenta mais importante para organizar
protestos “espontâneos”. A grande mídia pode cobrir esses protestos,
mas não os convocou explicitamente, como pessoas e “robôs” no WhatsApp e
outros aplicativos fizeram. No entanto, esse fenômeno é difícil de
detalhar.
Logo, além da já mencionada narrativa oficial (composta pela grande
mídia) e as contra-narrativas (disseminadas majoritariamente em mídias
sociais semi-abertas), há também narrativas opacas, que circulam em
mídias sociais privadas, e sobre as quais sabemos muito pouco. Enquanto a
primeira é fortemente escrutinada de acordo com certas tradições de
excelência ética, e a segunda sofre algum controle social, as outras
estão simplesmente flutuando por aí.
Pessoas diferentes experimentam narrativas diferentes ou uma mistura
de narrativas, causadas não apenas pela inescapável interpretação
subjetiva e socialmente situada (o que sempre aconteceu), mas pelo
próprio substrato das mensagens. Isso é novo. Dependendo de quem segue
nas redes sociais, uma pessoa lê sobre uma crise diferente, sustentada
por “fatos” diferentes. Isso está relacionado tanto à seleção
algorítmica executada por plataformas automatizadas, que visam exibir
aos usuários apenas aquilo que eles supostamente querem ver, como com o
velho e humano fato de que pessoas diferentes habitam redes sociais
específicas — online e offline.
Responsabilidade distribuída?
A questão persiste: as instituições de mídia são moralmente
responsáveis por um clima político em que pessoas estão sendo espancadas
por utilizarem camisas vermelhas associadas ao PT?
Afirmar que a grande mídia gesta um golpe ou irresponsavelmente
inflama seu público, como muitos argumentam, é uma ilusão confortável.
Ela nos remete a tempos passados em que os inimigos eram facilmente
identificáveis e as hierarquias mais claras. É sedutor, claro e
reconfortante — nós sabemos como desconstruir a narrativa oficial pois
fazemos isso há décadas. Mas ainda assim é uma ilusão. Não porque os
barões da mídia não queiram o impeachment, ou porque sejam campeões da
democracia, mas porque nem se quisessem eles poderiam, sozinhos, dar um
golpe. A grande mídia, a despeito de todo seu poder, não mais comanda a
narrativa — e, acreditem, ela adoraria comandar. A fragmentação do
sistema midiático também implica em uma fragmentação da ação moral, e
com isso da responsabilidade moral também.
Aqui vai minha ideia um tanto radical, superficialmente tratada aqui,
inspirada no que escreveu o teórico de mídia Roger Silverstone: em um
mundo em que todos têm alguma voz, todos têm alguma
responsabilidade. Em certa medida, todos que postaram, compartilharam,
curtiram ou até mesmo silenciaram sobre a crise são parte do cenário que
agora repudiam. Mas qual parcela cabe a cada um? Como dividir o peso de
forma justa? E qual importância a chamada “nova grande mídia”, os
donos das plataformas, tem? Como as escolhas feitas por essas empresas
para criar a lógica computacional de uma rede, determinando o que é
visível ou invisível, afetam essa fragmentação moral? Ninguém tem uma
resposta minimamente clara.
O sentimento de possuir um poder que não se sujeita a controles
externos é uma das razões pelas quais amamos as mídias sociais. Podemos
finalmente “ser a mídia”, com poucos limites, sem ombudsmen ou
concorrentes, em meio a um excesso de informações que rapidamente apaga
os absurdos que proclamamos todos os dias. O que eventos como a crise no
Brasil – ou mesmo a ascensão de Donald Trump — demonstram é o que já
sabíamos, mas sempre esquecemos: a liberdade de expressão é um direito
individual com sérias consequências coletivas. Não temos ideia de como
modular os efeitos dessas consequências em uma era de mídias
personalizadas. Na verdade, não estamos nem perto.
Apesar de suas falhas profundas, jornais e emissoras não podem ser
culpados pelo ambiente político tóxico que tomou conta do País – o
quadro é muito mais complexo
Este é o segundo texto da série especial produzida pelo Politike e pelo OxPol sobre a crise no Brasil.
Como qualquer país com uma democracia minimamente funcional, o Brasil
tem uma relação ambivalente com sua grande mídia. E, como em todos os
países com uma economia de mercado minimamente funcional, a grande mídia
brasileira tem sido afetada por plataformas digitais personalizadas.
Esses dois elementos, e como eles se emaranharam, são essenciais se
quisermos compreender o papel do sistema de mídia na agitação social que
toma conta do Brasil desde o ano passado. Meu argumento é simples:
apesar de suas falhas profundas, jornais e emissoras não podem ser
culpados pelo ambiente político tóxico que tomou conta do País – o
quadro é muito mais complexo.
Pela primeira vez na história brasileira, a narrativa de uma grave
crise política tem sido construída por um sistema de mídia incrivelmente
fragmentado. Isso, acredito, desafia apontares de dedo simplistas e
afeta o debate sobre quem é de fato moralmente responsável pela erosão
de uma comunalidade sempre frágil.
Algumas ressalvas iniciais. Primeiro, a maior parte do que vou dizer é
baseada apenas em minha avaliação pessoal e observação crítica. Até
onde sei, nenhum trabalho acadêmico (com algumas exceções, conforme
destaco abaixo) explorou essas questões sistematicamente. Em segundo
lugar, minha análise será focada na Operação Lava Jato, a origem
imediata da crise política estrutural brasileira, mas não abordará os
laços entre a mídia e a crise econômica – que é, ao menos, tão
importante quanto a crise política. Finalmente, minhas opiniões são
inevitavelmente moldadas pela minha experiência passada como jornalista
na Folha de S.Paulo.
Grande mídia: concentrada, enfraquecida, odiada
O mercado dos meios de comunicação brasileiro é altamente
concentrado, sabemos. Há três principais emissoras de televisão
nacional: Globo, Record e SBT. Similarmente, a imprensa, com uma audiência relativamente minúscula, é dominada por três tradicionais jornais: Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo e O Globo. O mercado das revistas semanais é ainda menos dinâmico. Apenas duas publicações (Veja e Época)
podem se dizer relevantes em termos de circulação. Jornais e emissoras
possuem seus próprios sites, com enorme audiências. Mas, apesar de
algumas iniciativas interessantes, não há nenhuma empresa robusta de
jornalismo online nativo.
Devemos também levar em conta que a grande mídia (especialmente os
veículos impressos) foi fortemente atingida por enormes dificuldades
financeiras nos últimos quatro anos. Enfrentando uma crise econômica
geral, e sua incapacidade específica de competir com Facebook e Google
por anúncios online, jornais e revistas (e algumas emissoras) realizaram
demissões em massa, dispensando alguns de seus mais experientes
repórteres e editores.
Se historicamente a concentração de mercado cria uma homogeneidade
inter-empresas, demissões têm aprofundado um tipo de homogeneidade no
interior das redações: menos pessoas, menos diversidade, menos
incentivos para repórteres discordarem de ordens de editores e para
editores resistirem a diretrizes impostas de cima para baixo. Não
surpreende o declínio perceptível na qualidade técnica (escrita clara,
análise sofisticada) e a pura falta de mão de obra. Contratar
jornalistas sem experiência, como alguns veículos têm feito, não é o
bastante. A mais importante crise política brasileira em décadas tem
sido coberta por uma imprensa particularmente enfraquecida.
Isso explica, em parte, o papel passivo que a grande mídia teve em
toda a cobertura da Lava Jato. Não recordo de um fato importante que
tenha sido descoberto por jornalistas durante o escândalo. Como
já se disse, o que tem sido feito é mais próximo de um “jornalismo sobre
uma investigação” do que “jornalismo investigativo”. Repórteres
basicamente trouxeram à tona o que agentes da Polícia Federal e
procuradores descobriram, com maior ou menor qualidade. Até mesmo a
dinâmica típica deste tipo de cobertura, na qual os “melhores
repórteres” são os que possuem as melhores fontes entre os
investigadores, desempenhou um papel menor na Lava Jato.
Isso porque um considerável número de documentos e decisões judiciais
foram tornadas públicas instantaneamente por meio de um sistema online
operado pelo Judiciário. Uma certa transparência disruptora foi a regra –
uma tática raramente analisada que mudou a escala do escândalo, na
medida em que publicizou um oceano de informação ao qual não apenas
jornalistas profissionais tiveram acesso, conforme digo abaixo.
Essa passividade relativa não é equivalente à neutralidade – isso não existe. Mas diferentes veículos têm diferentes vieses.
A Veja está no extremo ruim do espectro. Em espiral negativa
há pelo menos uma década, a ainda poderosa semanal se assemelha hoje a
um tabloide barato. A revista já publicou histórias delirantes e
repugnantes com a única intenção de atacar pessoalmente a presidente
Dilma Rousseff e o ex-presidente Lula. Outro momento de considerável
ridículo ocorreu quando a GloboNews cobriu alegremente os imensos protestos contra o governo em uma longa transmissão, quase ininterrupta e acrítica. O Jornal Nacional
também gastou uma quantidade de tempo absurda expondo as conversas
telefônicas entre Dilma e Lula, sem questionar a forma como elas foram
expostas por Sergio Moro, juiz responsável pela Lava Jato.
Outros veículos de comunicação têm, contudo, sido mais equilibrados e suas posições anti-governo são mais matizadas. A Folha de S.Paulo e O Globo,
por exemplo, têm sido ferozes críticos de Eduardo Cunha (PMDB-RJ),
presidente da Câmara dos Deputados e nemesis de Dilma. A Folha publicou
um editorial criticando exageros de Sergio Moro. No último domingo, em
editorial de capa, o jornal pediu, em suma, novas eleições — alinhado-se
involuntariamente a grupos de extrema esquerda. E, de maneira geral,
suspeitas sobre opositores do governo também receberam alguma atenção destas publicações.
Parece existir entre os donos de veículos de comunicação a percepção
de que Dilma é tragicamente inepta, e seu impeachment, ainda que não
ideal e possivelmente ilegal, poderia ao menos destravar a atual
paralisia do governo. Mas, diferentemente de eventos históricos
passados, como o golpe militar que inaugurou a ditadura militar
(1964-1985), a grande mídia tem sido, em geral, menos partidária, menos
violenta e mais ambígua.
Ironicamente, isso impulsionou as críticas a ela. Para apoiadores do
governo, a grande mídia é movida por um preconceito classista contra
Lula e seus suposto projeto popular. Para atores anti-governo, ela está
no bolso do Planalto, e qualquer eventual ambiguidade quanto à
necessidade do impeachment é um pecado capital. Todos amam odiar a
grande mídia.
Por que? Há algumas razões, afora os problemas já citados.
Primeiro, o Brasil, assim como outros países, tem assistido à
ascensão de um zeitgeist anti-establishment. Essa crise de
representatividade também afeta a mídia: quem é a imprensa para definir o
que é relevante?, questionam. Segundo, a mídia brasileira tem um
péssimo histórico quando se trata de defender valores democráticos,
conforme o golpe de 1964 demonstra. Terceiro, nos esquecemos que a
compreensão das pessoas do noticiário é tão enviesada quanto à criação
deste pelos jornalistas. Nós, leitores, entendemos o que queremos, e
facilmente esquecemos a notícia que confronta os nossos preconceitos
contra um jornal ou uma emissora. E, por último, as pessoas possuem
agora um sistema de mídia muito mais fragmentado a sua disposição.
Passo a focar neste último elemento, o qual considero um componente crítico da crise.
Plataformas: fragmentadas, fortalecidas, adoradas
Em grande medida, a crise tem sido experimentada por meio de e nas plataformas
digitais – o que revela algo sobre os descontentes, uma vez que mais de
40% da população brasileira não tem acesso à internet.
Sim, a grande mídia é quem inventou a crise como um “fato” público. E
esse grande “fato”, constituído por milhares de “fatos” menores, tem
sido uma espécie de fonte oficial de informação, sendo compartilhado,
curtido, encaminhado e “memetizado” milhões de vezes. Aqui reside parte
da ambivalência que mencionei no início deste texto: o mesmo leitor que
odeia a Globo, por exemplo, avidamente utiliza a Globo como uma fonte de
informação confiável de notícias sobre a crise. Sem, imagino, perceber a
extensão da contradição do ato.
Parece claro que foram os jornalistas profissionais, e seus patrões,
quem traduziram a investigação em uma sequência reconhecível de eventos,
em uma narrativa pública, externa e coletiva. É importante, no entanto,
notar que eles fundamentalmente não possuem o controle final sobre essa
narrativa. Na verdade, a própria ideia de que há uma narrativa
monolítica sobre a crise é risível, quando se considera o complexo e
insanamente fragmentado mosaico que chamamos de “mídias sociais”.
As coisas mudaram dramaticamente. Primeiro, a Internet brasileira é
populada por uma quantidade inumerável de atores altamente politizados
(alguns deles ligados a diferentes partidos e grupos políticos
organizados). Presentes em todas as plataformas, e representando todos
os lados da disputa, eles têm sido bem ativos em revelar supostas
“farsas da mídia” sobre fatos específicos ao trazer à luz arquivos
produzidos por investigadores da Lava Jato, ou algumas vezes ao destacar
aspectos esquecidos de arquivos ou decisões já explorados por
jornalistas.
Ações como essas, por um lado, visam alterar a narrativa da grande
mídia. Por outro, elas mesmas são à sua maneira contra-narrativas, sendo
também compartilhadas, curtidas, encaminhadas e “memetizadas” milhões
de vezes, frequentemente com interpretações adicionais pelos leitores.
Muitas destas contra-narrativas são não apenas despudoradamente
partidárias, mas altamente incorretas, sexistas, e intencionalmente
enganosas.
Em segundo lugar, considere que plataformas diferentes possibilitam
experiências diferentes. E isso também é crucial se quisermos entender o
nível de polarização que o Brasil tem experimentado. Redes como o
Facebook, que exalta e incentiva identidades “reais”, são menos
propensas, ainda que nem de longe imunes, a narrativas degradantes,
violentas e lunáticas. Principalmente porque compartilhar ou criar tais
histórias pode resultar em custos sociais para os usuários.
Mas aplicativos como WhatsApp, usados em conversas pessoais ou em
pequenos grupos que não ocupam um espaço nem sequer semi-público, como
as do Facebook, se tornaram um canal importante para rumores
alucinantes, sórdidos e apócrifos. No ambiente confortável e privado de
um aplicativo de mensagens por celular as pessoas podem soltar suas
piores fantasias. Nele, é muito mais simples dizer que comunistas devem
morrer, que Dilma é uma “v….”, ou gozar da deficiência física de Lula. E
há que se levar em conta a enorme quantidade de “robôs” (contas
fantasmas controladas automaticamente por softwares) espalhando esses
boatos.
Uma pesquisa liderada por Pablo Ortellado, da Universidade de São
Paulo, tocou na superfície deste fenômeno, e mostrou que esses rumores
circulando em mídias sociais essencialmente opacas, como o WhatsApp,
desempenharam um papel importante em como indivíduos de classe média e
formalmente educados se (des)informam sobre as investigações. Além
disso, o WhatsApp parece ser a ferramenta mais importante para organizar
protestos “espontâneos”. A grande mídia pode cobrir esses protestos,
mas não os convocou explicitamente, como pessoas e “robôs” no WhatsApp e
outros aplicativos fizeram. No entanto, esse fenômeno é difícil de
detalhar.
Logo, além da já mencionada narrativa oficial (composta pela grande
mídia) e as contra-narrativas (disseminadas majoritariamente em mídias
sociais semi-abertas), há também narrativas opacas, que circulam em
mídias sociais privadas, e sobre as quais sabemos muito pouco. Enquanto a
primeira é fortemente escrutinada de acordo com certas tradições de
excelência ética, e a segunda sofre algum controle social, as outras
estão simplesmente flutuando por aí.
Pessoas diferentes experimentam narrativas diferentes ou uma mistura
de narrativas, causadas não apenas pela inescapável interpretação
subjetiva e socialmente situada (o que sempre aconteceu), mas pelo
próprio substrato das mensagens. Isso é novo. Dependendo de quem segue
nas redes sociais, uma pessoa lê sobre uma crise diferente, sustentada
por “fatos” diferentes. Isso está relacionado tanto à seleção
algorítmica executada por plataformas automatizadas, que visam exibir
aos usuários apenas aquilo que eles supostamente querem ver, como com o
velho e humano fato de que pessoas diferentes habitam redes sociais
específicas — online e offline.
Responsabilidade distribuída?
A questão persiste: as instituições de mídia são moralmente
responsáveis por um clima político em que pessoas estão sendo espancadas
por utilizarem camisas vermelhas associadas ao PT?
Afirmar que a grande mídia gesta um golpe ou irresponsavelmente
inflama seu público, como muitos argumentam, é uma ilusão confortável.
Ela nos remete a tempos passados em que os inimigos eram facilmente
identificáveis e as hierarquias mais claras. É sedutor, claro e
reconfortante — nós sabemos como desconstruir a narrativa oficial pois
fazemos isso há décadas. Mas ainda assim é uma ilusão. Não porque os
barões da mídia não queiram o impeachment, ou porque sejam campeões da
democracia, mas porque nem se quisessem eles poderiam, sozinhos, dar um
golpe. A grande mídia, a despeito de todo seu poder, não mais comanda a
narrativa — e, acreditem, ela adoraria comandar. A fragmentação do
sistema midiático também implica em uma fragmentação da ação moral, e
com isso da responsabilidade moral também.
Aqui vai minha ideia um tanto radical, superficialmente tratada aqui,
inspirada no que escreveu o teórico de mídia Roger Silverstone: em um
mundo em que todos têm alguma voz, todos têm alguma
responsabilidade. Em certa medida, todos que postaram, compartilharam,
curtiram ou até mesmo silenciaram sobre a crise são parte do cenário que
agora repudiam. Mas qual parcela cabe a cada um? Como dividir o peso de
forma justa? E qual importância a chamada “nova grande mídia”, os
donos das plataformas, tem? Como as escolhas feitas por essas empresas
para criar a lógica computacional de uma rede, determinando o que é
visível ou invisível, afetam essa fragmentação moral? Ninguém tem uma
resposta minimamente clara.
O sentimento de possuir um poder que não se sujeita a controles
externos é uma das razões pelas quais amamos as mídias sociais. Podemos
finalmente “ser a mídia”, com poucos limites, sem ombudsmen ou
concorrentes, em meio a um excesso de informações que rapidamente apaga
os absurdos que proclamamos todos os dias. O que eventos como a crise no
Brasil – ou mesmo a ascensão de Donald Trump — demonstram é o que já
sabíamos, mas sempre esquecemos: a liberdade de expressão é um direito
individual com sérias consequências coletivas. Não temos ideia de como
modular os efeitos dessas consequências em uma era de mídias
personalizadas. Na verdade, não estamos nem perto.
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