nquisições
Caça às bruxas
Quando a intolerância triunfa sobre a razão – com o aplauso do público
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Em Florença, o fanático dominicano Savonarola
Caças às bruxas, não importa quando e como tenham acontecido ou estejam acontecendo, costumam merecer o aplausaço
da opinião pública. As sociedades rudimentares – e aí incluo a nossa,
renitentemente escravagista, enfatiotada em privilégios – têm a sanha da
punição antes mesmo de saber o que deve ser punido. Somos linchadores
em potencial. A mídia
gosta. O público dos estádios – aquele que ofende governantes
democraticamente eleitos – ovacionava o ditador de radinho no ouvido. Os
xerifes balofos da TV, em cruzada do olho por olho, são líderes de
audiência.
A Inquisição, ou as inquisições, é um
desses momentos de deleite popular. O historiador inglês Trevor-Roper,
investigando o frenesi antibruxas na Europa dos séculos XVI e XVII,
percebeu: “A semelhança entre a perseguição aos judeus (motivação da Inquisição nos países latinos, submissos ao Vaticano)
e a perseguição às bruxas, que atingiu seu clímax em diferentes lugares
ao mesmo tempo, sugere que a pressão atrás de ambas era social. A
feiticeira e o judeu representam uma forma de inconformismo social”. Os
pretextos, por exemplo as leis da Igreja, só mascaram a verdade.
Trevor-Roper poderia acrescentar ao seu rol de socialmente indesejáveis
os mandingueiros do século XX: os comunistas e os simpatizantes das
causas populares. Para o status quo, bruxas, judeus e vermelhos são todos traidores a ser exemplados.
- Sócrates teve um julgamento político, missão a que se dedicaria, em Florença, o fanático dominicano Savonarola
O fato é que
os sanguinários algozes da Inquisição portuguesa e espanhola (decretada
por bulas papais em meados dos 1500) e os magistrados da França e
Itália a serviço do catolicismo retrógrado da Contrarreforma sempre
caíram nas graças das massas, menos por convicção delas e mais por
pusilanimidade. Aos olhos de seus contemporâneos, Galileu Galilei morreu
como herege – não como herói. O cruel dominicano Savonarola era, na
virada do século XV para o XVI, em Florença, tão popular – e temido –
quanto o juiz Moro,
o carcereiro de Curitiba. Igualmente fanático, se via investido de uma
missão divina. Savonarola foi colhido por seu próprio exibicionismo
messiânico.
Os togados da Bastilha de Curitiba têm,
na história, precedentes em seus prejulgamentos partidarizados e
enviesados. Na França do século XVII, apurou o historiador Robert
Mandrou, os magistrados seculares vieram a substituir os prelados
fanatizados na tortuosa arte de promover, com a fachada da Justiça, os
autos da fé com que a Igreja se notabilizou. Os processos de feitiçaria –
que vitimaram primordialmente as mulheres – eram um ritual que sempre
conduzia ao mesmo resultado: arrastar o suspeito até a fogueira. “A
partir do momento em que o juiz abre um dossiê sobre uma denúncia,
rapidamente confirmada pelo rumor público, o encarceramento, os
depoimentos e interrogatórios, a procura de marcas (que identificariam, em algum pretenso sinal corporal, os possuídos por Satanás)
e a confissão se encadeiam imutavelmente.” A crença do magistrado já
estava absolutamente formada. Testemunhas abundavam – assim como as
intrigas, as mentiras e as pequenas vinganças pessoais. A base de um
processo supostamente laico é forrada por “um maniqueísmo grosseiro,
simplista e terrivelmente eficiente que faz da vida terrestre um
combate constante entre o Maligno e as criaturas”. Criada a legitimação
ética da deduragem, o vizinho passa a ser suspeito de manter um pacto
com o Tinhoso.
Da Inquisição à Lava Jato, passando pelo macarthismo, por Guantánamo, pelo DOI-Codi
e pela prisão de Abu Ghraib, do julgamento de Sócrates na Grécia antiga
(por “não respeitar os deuses da cidade”) ao flagelo das bruxas de
Salem, Massachusetts, na América puritana (acontecimento real que Arthur
Miller transformou em peça), os justiceiros mais arbitrários usam o
pretexto do imperativo moral, é como se esse demônio onipresente e
ardiloso espreitasse por toda parte as pessoas de bem. Se tiver barba,
então, e morar em São Bernardo, é o capeta em pessoa.
Joana d’Arc
pagou, como herege, o preço de um pecado político. Ao tomar partido do
rei da França contra os invasores ingleses e seus aliados do Ducado de
Borgonha, assinou sua sentença de morte. A fase do julgamento foi
comandada pelo bispo de Beauvais. Camponesa e analfabeta, foi imolada
numa fogueira – à moda das feiticeiras – em maio de 1431. Tinha 19 anos.
No século XIX, o Vaticano, em tardio mea-culpa, a proclamou santa.
A maioria das pessoas não consegue distinguir no outro –
aquele que é, pensa, age diferente delas – se não o adversário a ser
castigado, o Belzebu a ser humilhado, o malfeitor responsável por todos
os males do mundo. O discurso moralista divide o mundo entre os maus e
os bons. As grades, as torturas, o justiçamento e a fogueira purgam, no
altar do eterno bode expiatório, a paranoia dos cretinos e dos
medrosos.
A lógica do suplício prescinde de provas. Como demonstrou com raro brilho o historiador Elias Lipiner, num livro de antologia (Terror e Linguagem: Um dicionário da Santa Inquisição – infelizmente
fora de catálogo), a trama inquisitorial não busca a apuração da
verdade; a verdade já está presumida. Aquela verdade que interessa aos
acusadores. Cumpre apenas fazer com que o prisioneiro venha, sob
tortura, suficientemente humilhado, pressionado a algum tipo de delação,
enredar-se nos argumentos que lhe propõem os próprios verdugos. Em nome
da Justiça arma-se a cilada traiçoeira da injustiça.
Está em cartaz Trumbo, de Joy Roach, que teve em
Bryan Cranston indicação para o Oscar de melhor ator – retrato de um dos
mais talentosos roteiristas de Hollywood e uma das vítimas mais
notórias do macarthismo. É um filme incômodo, ainda que não se vá pedir
àquela plateia de um domingão preguiçoso um esforço de reflexão, mínimo
que seja, capaz de relacionar aqueles sombrios tempos de perseguição nos
Estados Unidos dos anos 50 ao que se vê em tempos atuais. É bastante
provável que, ao sair daquela didática lição sobre a intolerância,
troquem o farnel de pipoca pelas panelas rabugentas.
O macarthismo foi
a prova viva de como pode florescer o espírito antidemocrático no país
que sempre quis se fazer passar por campeão da democracia. Imaginem,
então, em outros. Em 1952, quando era o xodó das manchetes de jornais e
dos noticiários de rádio e tevê, o senador Joe McCarthy, o brucutu do
Comitê de Atividades Antiamericanas do Congresso, mereceu na convenção
do Partido Republicano as honras de estrela da festa, ofuscando até
mesmo o candidato à Presidência, general Dwight Eisenhower. Eisenhower
era herói de guerra. Joe McCarthy ia inventar o seu próprio conflito.
Obscuro político do Meio-Oeste em busca de um bom tema, eleito em
Wisconsin com o apoio de sindicatos dominados... pelos comunistas, iria
virar o símbolo e o sinônimo de uma vergonhosa tragédia
político-ideológica, na qual foram cúmplices os norte-americanos
assustados com a Guerra Fria e com o discurso do nós aqui versus os traidores lá.
Na verdade, o macarthismo precedeu a
McCarthy. A Doutrina Truman açulava o delírio antissoviético depois do
armistício de 1945. A conquista do Senado e da Câmara pelos republicanos
iria radicalizar a paranoia. Em novembro de 1947, os Dez de Hollywood –
incluindo o roteirista Dalton Trumbo – eram processados por desacato ao
Congresso. A caça às bruxas focava no cinema. Os chefes de estúdio
covardemente decidiram demitir os suspeitos de “subversão”.
O que passou à história com o nome de macarthismo virou a catarse doentia que faz do medo, intolerância. Os Dez de Hollywood
seriam sentenciados em junho de 1950 e foram cumprir pena em presídios
federais. Típico delito de opinião. Prisioneiros políticos. Ou seja, é
um velho filme. Mas iria repetir-se outra vez sob a fanfarronice
caricata do governo de Bush II, então tendo o Islã no papel de inimigo
externo.
A sórdida cruzada de McCarthy e sua trupe de fanfarrões
patriotas (com destaque para cúmplices como John Wayne, no papel de
caubói de si mesmo, e de delatores como Ronald Reagan, futuro presidente
da pátria da liberdade) deu prestígio e ibope, só terminando porque o
senador-justiceiro cometeu o erro de confrontar o Exército. No filme Trumbo,
há uma cena emblemática: no presídio, a plateia de um filme de guerra
aplaude com entusiasmo a pancadaria de soldados americanos contra os japs
(os japoneses). Ou seja, aquelas criaturas condenadas a um desterro
coercitivo confraternizam afetivamente com a América que os afasta do
convívio social, que os despreza, que os humilha.
Nem tudo foi covardia na Operação Lava Jato dos gringos fóbicos. Um talk-show
de tevê, ancorado por Ed Murrow, na CBS, ajudou a sangrar de morte o
macarthismo, ainda que Murrow tenha enfrentado o risco de ser tomado
como um daqueles que se insubordinavam diante da intolerância e da
injustiça. Chamavam-no, como a outros, de “traidor da América”. “Boa
noite e boa sorte”, o bordão de despedida de Ed Murrow, acionava, noite
após noite, uma luz de esperança nos espectadores menos trogloditas (o
âncora mereceu um filme, que estreou em 2005, com direção de George
Clooney e David Strathaim como protagonista).
Antes de Trumbo, os Dez de Hollywood já tinham sido lembrados – e homenageados – em The Front, de Martin Ritt (de 1976), aqui no Brasil Testa de Ferro por Acaso.
A doce vingança de Martin Ritt arrolou para o filme várias figuras que
tinham – assim como o próprio diretor – frequentado a lista negra do
macarthismo: o roteirista Walter Bernstein e os atores Zero Mostel,
Herschel Bernardi, Lloyd Gough e Joshua Shelley.
Mas para chegar às entranhas do terror ideológico do macarthismo nada melhor que um surpreendente faroeste. Em Matar ou Morrer (High Noon),
a alegoria emprestada pelo Velho Oeste olha não tanto para a valentia, e
sim para a covardia. O filme é de 1952, mas o tema é tão atual quanto
foi pertinente na época: a responsabilidade do cidadão. Um xerife
enfrenta, leva a júri e manda para a prisão um assaltante de banco. De
repente, chega a notícia de que o bandido fora solto e seus irmãos estão
na estação esperando pelo trem do meio-dia e pela hora da vingança. O
xerife Kane (Gary Cooper) se vê sozinho, enquanto os chamados cidadãos
de bem, sob pretextos variados, comportam-se como ratazanas assustadas. A
pusilanimidade triunfa, sob as bênçãos do culto dominical.
Hardleyville era, no início dos anos 50, a alegoria
perfeita da América acovardada pela ofensiva do macarthismo, e o diretor
Fred Zinnemann teve de ocultar nos letreiros o nome do roteirista blacklisted
Carl Foreman. A narrativa em tempo real, ritmada pelo agoniante
tique-taque do relógio, e a trilha torturante de Dimitri Tiomkin
aprimoram a tensão dramática na qual, dessa vez, excepcionalmente, não é
o xerife quem promove a barbárie, ao contrário, é vítima dela.
Sessenta anos após o surto macarthista, a América, carola e sem fibra, busca projetar seu medo em figuras salvacionistas como Donald Trump
e os pterodátilos do Tea Party. O Brasil, triste cópia do Império, caça
suas bruxas imaginárias em pretenso exercício de purificação ética,
abrigados os inquisidores em togas negras à guisa de batinas brancas –
mesmo que todos saibam, lá no fundo, que as tais bruxas no las hay.
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