Entrevista - Marcos Otavio Bezerra
"A Lava Jato não vai acabar com a corrupção"
Para antropólogo da UFF, não é o Judiciário que pode pôr um fim às ilegalidades, mas a própria sociedade
por Ingrid Matuoka
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publicado
21/03/2016 05h22
Wilson Dias/Agência Brasil

Manifestantes em Brasília colocam foto de Moro no centro da bandeira brasileira
A Operação Lava Jato
ganhou notoriedade nos últimos meses por sua atuação contra grandes
figuras do governo e empresários, atingindo o ápice do furor coletivo em
março, com a condução coercitiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a divulgação dos grampos na noite anterior à nomeação de Lula para a Casa Civil.
Com isso, Sergio Moro,
o juiz responsável pela Lava Jato, ganhou status de herói e muitos
enxergam no magistrado e na operação a esperança de um fim definitivo da
corrupção no País.
Para Marcos Otavio Bezerra, professor da Universidade Federal Fluminense e autor do livro Corrupção: um estudo sobre poder público e relações pessoais no Brasil, a realidade é outra.
Bezerra, antropólogo especializado nas
relações entre Estado, política e corrupção, avalia que o Judiciário não
tem aparato suficiente para transformar a estrutura que possibilita a
corrupção.
CartaCapital: A Operação Lava Jato tem condições de acabar com a corrupção a longo prazo?
Marcos Otavio Bezerra:
Não, com certeza a Lava Jato não vai acabar com a corrupção. Já
deveríamos estar vacinados contra a expectativa de que uma ação pontual e
espetacular como é a Lava Jato vá pôr fim à questão da corrupção,
porque o judiciário não tem instrumentos para propor uma reflexão e
mudar as condições que favorecem o aparecimento das práticas corruptas.
A maioria dos processos de investigação de corrupção nestes
moldes que já foram feitos no Brasil e em outros países não funcionou.
Um caso exemplar nesse sentido é a Operação Mãos Limpas na Itália, em que a Lava Jato se inspira, e que não conseguiu encerrar a corrupção no país.
O que vemos agora é o Judiciário tomando a frente na investigação e publicando informações
que, antes, eram trazidas a público pelas CPIs e pela imprensa em
reportagens investigativas. E como a experiência já nos mostrou, não é a
investigação de um caso ou de determinados atores sociais que vai
resolver a corrupção.
Isso é até um problema porque a cada denúncia cria-se
a expectativa de que a corrupção terá um fim assim que terminarem as
investigações. Anos depois a gente se depara com novas investigações,
isso cria uma frustração tremenda e dá a impressão de que a corrupção
voltou, quando em verdade ela nunca desapareceu.
CC: Pode acontecer de surgir um "salvador da pátria" ou a corrupção ficar mais sofisticada como aconteceu após a Operação Mãos Limpas na Itália?
MOB: Essa é sempre uma
possibilidade. Para evitar isso, as instituições nacionais e o próprio
Estado precisam refletir sobre o que favorece essas práticas, e debater o
modo de funcionamento do sistema político e a relação do Estado com a
sociedade e a forma como a própria sociedade lida com a administração
pública.
CC: Que medidas podem ser tomadas para evitar que a corrupção aconteça, em primeiro lugar?
MOB: Quando denunciam corrupção
pública, estão dizendo ‘o Estado está sofrendo interferências
econômicas, pessoais, familiares, e esse não é seu princípio fundante e
não queremos que ele continue operando dessa forma’, porque o Estado
deve prezar pela imparcialidade, universalidade, e se sua legitimidade
está assentada na ideia de atender o coletivo.
No entanto, atualmente, as próprias pessoas que
denunciam e querem o Estado funcionando de outra forma também estão
investindo na desconstrução do mesmo, falando sobre Estado mínimo. E
nisso vem uma proposta liberal que investe na deslegitimação do Estado,
funcionando como uma espécie de justificativa para a privatização. Há
concepções de sociedade diferentes em jogo nessas denúncias.
Então as pessoas precisam ter uma compreensão mais
adequada do que significa a corrupção e debater essa questão. E precisam
ter clareza de que nos últimos anos isso virou, país a fora, um grande
tema de acusações e denúncias, um verdadeiro instrumento de lutas
políticas, de acusações de um lado e de outro. Assim as pessoas perdem a
noção do que estão falando e fazendo.
CC: E esse debate político em torno da corrupção tem acontecido?
MOB: Não há um debate
sério sobre a corrupção no Congresso Nacional, que deveria ter
incorporado isso como um elemento da sua agenda desde as manifestações
de 2013. Deveriam trazer propostas de reforma política, pois o sistema
político é uma fonte extremamente importante das irregularidades que se
observam.
No plano da sociedade civil, tem iniciativas
interessantes, mas não é o caso, por exemplo, do Movimento Brasil Livre e
dessas entidades que hoje se organizam pela internet e estão à frente
de muitas das manifestações anticorrupção.
Ali não há espaço para debate nenhum, é uma
intervenção política, mas baseada em reação, não fazem ideia do que
estão falando e nem do que está em jogo no momento em que levantam a
bandeira anticorrupção. É só uma reação a algo que os incomoda de fato, e
com razão, mas não é um engajamento no sentido de elaborar propostas,
de ter medidas.
E acho que não há, inclusive, uma reflexão sobre as
suas próprias práticas cotidianas e sobre como elas agem diante de um
conjunto de regras que são públicas, coletivas e que têm no centro a
ideia do interesse comum.
É muito fácil acusar a alta corrupção, mas as mesmas
pessoas que estão de bandeira na rua são capazes de oferecer dinheiro
para um guarda, ao ser multado; são capazes de tentar fazer com que seus
processos andem mais rápido em uma repartição pública; contatam
conhecidos dentro das instituições quando querem ver seus problemas
resolvidos mais rapidamente; encontram os amigos no âmbito da Justiça
quando querem ter decisões favoráveis a seus interesses.
Há um conjunto de práticas cotidianas que colocam em
xeque essa relação com o interesse público e isso incomoda muito pouco a
maioria das pessoas. Não há uma descontinuidade entre essas práticas
cotidianas que são aceitas e muitas daquelas que são constitutivas
daquilo que se chama de corrupção.
Alguns estudos que fiz mostram que há uma
continuidade entre práticas da vida cotidiana legitimadas pela população
e o modo como elas estão dentro da administração pública. A corrupção
talvez seja menos de um grupo e mais da acepção e modo de lidar que o
brasileiro tem com o Estado.
CC: O STF autorizou prisões após condenação em 2ª instância e o Ministério Público Federal propôs as "10 Medidas Contra a Corrupção". Como o senhor enxerga essas ações?
MOB: Acho que o ponto central é que a
lei é importante, mas não podemos esquecer que ela não funciona
sozinha. O Judiciário é composto por pessoas e elas podem intervir –
como vêm intervindo – no modo como essas leis são lidas e aplicadas.
As elites econômicas e políticas têm uma forte
capacidade de lidar e de intervir no modo como a legislação vai ser
interpretada. Elas participam da formulação dessas leis, o Congresso
regula sobre ele mesmo, e os grandes interesses empresariais têm um
poder forte de intervir na produção delas.
Esses grupos têm recursos econômicos que permitem
contratar grandes juristas e isso interfere em como essa legislação vai
ser aplicada. A simples lei não resolve.
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