Talvez não haja ressurreição após a via sacra dos índios no Brasil
POR JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE
Qual é o índio celebrado cada ano, em
abril, que emerge nas narrativas da história do Brasil? O índio de Pero Vaz de
Caminha que permanece no imaginário dos brasileiros? Aquele escravizado pelos
bandeirantes ou o catequizado pelos missionários? O índio da senadora Kátia
Abreu e do agronegócio "obstáculo ao progresso"? Ou o das descrições
etnográficas dos antropólogos, que nos ensina que outro mundo é possível? O
"índio atrasado" ou o que acumulou sofisticados saberes? A vítima do
colonialismo ou o combatente que resistiu?
Afinal, qual o pedaço de nós que
comemoramos no Dia do Índio? Ou ele não é parte de nós? No século XVI, na
polêmica com o advogado Sepúlveda, Bartolomeu De Las Casas afirmou que durante
todo o período colonial milhares de Cristos foram crucificados na América, sem a
esperança da ressurreição. Testemunha da dor, do sofrimento e da resistência dos
índios, Las Casas descreve o trajeto seguido por eles carregando a cruz numa via
sacra dolorosa, que vai do Pretório Ibérico até o Calvário, de 1492 aos dias
atuais.
As
Estações
Logo na 1ª
Estação, o índio é condenado à morte. Colombo e Cabral que aqui
desembarcam com a cruz, perguntam às Coroas Ibéricas: "O que faço com o
índio?" Aqueles que querem se apropriar das terras indígenas gritam:
"Que o crucifiquem". Os reis lavam as mãos e através de leis e ordenações do
Reino, entregam o índio aos seus súditos.
Despojado de suas terras, escravizado, na
2ª Estação, o índio começa a
carregar a cruz às costas, num processo que não terminou. Las Casas registra a
invasão das aldeias, o massacre e a prisão dos índios nas chamadas 'guerras
justas': "Oh! Grande Deus e Senhor, como podiam ser escravizados de
'forma justa' estando em suas próprias terras e em suas casas sem fazer mal a
ninguém?".
Na 3ª
Estação, o índio cai pela primeira vez, numa jornada de trabalho
que dura até 18 horas diárias, segundo Las Casas que detalha o recrutamento de
menores e mulheres gestantes, os acidentes de trabalho, os castigos físicos, as
doenças, a alimentação insuficiente: "E até mesmo as bestas costumam ter
um tempinho de liberdade para pastarem no campo e os nossos espanhóis nem sequer
isto concediam aos índios".
O encontro com a Mãe acontece na
4ª Estação. A Mãe Terra, que dá vida
aos seres do universo, símbolo da fecundidade e da biodiversidade, tem sua alma
transpassada por uma espada. Matas devastadas, minas escavadas em busca de
metais preciosos, rios poluídos, animais, plantas e gente exterminados: a Mãe
Terra é ferida de morte. Acontece a maior catástrofe demográfica da histórica da
humanidade: nunca um continente foi esvaziado tão rapidamente como a América,
escrevem os demógrafos da Escola de Berkeley.
A cruz pesa em demasia. Na 5ª Estação, os soldados obrigam Simão de
Cirene, do Norte da África, a ajudar a carregar a cruz, ao lado do Negro oriundo
do mesmo continente. Com o rosto ensanguentado, sujo, cansado e cheio de
escarros, na 6ª Estação o índio
espera que apareça uma Verônica para enxugá-lo, para deixar a imagem da coroa de
espinhos gravada no lenço. Em vão. Como no poema "Los dados eternos", de César
Vallejo, vem a justificativa: "Tu no tienes Marias que se
ván".
Eliminar
da História
Na 7ª
Estação o índio, esgotado, cai pela segunda vez, depois das
novas investidas dos bandeirantes, cujo modus operandi é descrito por Raposo
Tavares em depoimento ao padre Vieira “Nós damos uma descarga cerrada de
tiros: muitos caem mortos, outros fogem. Invadimos, então, a aldeia. Agarramos
tudo o que necessitamos e levamos para as nossas canoas. Se as canoas deles
forem melhores que as nossas, nós nos apropriamos delas, para continuar a
viagem”.
As mulheres de Belém estavam na
8ª Estação, ao lado de Maria
Quitéria de Jesus, a baiana heroína da Guerra da Independência, que depois
recebeu o título de Patrona dos Oficiais do Exército Brasileiro. No encontro com
o índio, as mulheres paraenses e até Maria Quitéria, embora sendo de Jesus, não
choraram por ele, mas por elas mesmas e por seus filhos. Na 9ª Estação, a terceira queda sob o peso da cruz
ocorre, quando Paulo de Frontin, presidente da Comissão do Quarto Centenário do
Descobrimento do Brasil, em 1900, no seu discurso oficial de abertura,
declara:
“O Brasil não é o índio; os selvícolas,
esparsos, ainda abundam nas nossas magestosas florestas e em nada diferem dos
seus ascendentes de 400 anos atrás; não são nem podem ser considerados parte
integrante da nossa nacionalidade; a esta cabe assimilá-los e, não o
conseguindo, eliminá-los”.
As cinco últimas estações da via sacra, a
caminho do Calvário, se localizam já no Brasil republicano. O índio despojado de
sua língua, de seus saberes, é definitivamente eliminado das narrativas sobre a
história do Brasil.
Na 10ª
Estação, o índio é esbofeteado na comemoração do 5° Centenário,
em 2000, quando o então Ministro da Cultura, Francisco Weffort, depois de fazer
uma apologia dos bandeirantes, propõe a criação do Museu Aberto do
Descobrimento, incompatível com a historiografia crítica e com o projeto
intelectual de renovação da cultura brasileira, numa vitória inequívoca do
obscurantismo intelectual.
Anos depois, já como ex-ministro, Weffort
publica o livro "Espada, Cobiça e Fé – As Origens do Brasil".
No desenho que faz do nosso país, ele justifica o calvário dos índios, afirmando
que os bandeirantes faziam "parte de uma cultura na qual a violência na
vida cotidiana e o saqueio na guerra eram recursos habituais. (…) Sei que os
bandeirantes foram brutais e violentos, mas conquistaram esta terra. Todos temos
uma dívida com eles. Então é preciso entendê-los".
Diakui
Abre
Na 11ª
Estação, o índio é ferido de morte pelo escárnio da senadora
Kátia Abreu (PMDB-TO, viche, viche) em artigo no Caderno Mercado da Folha de São
Paulo – Cidadania, e não apito. Presidente da Confederação Nacional da
Agricultura e Pecuária (CNA), ela repete pela milésima vez que o calvário dos
índios se deve ao "difícil acesso à saúde e não à falta de terra", fingindo não
ver a relação entre uma e outra. Admite, no entanto, que "se o problema consiste
em terra, que sejam compradas a preço de mercado" pelo Estado brasileiro "com
seus próprios meios que são os impostos extraídos de toda a populaçao
brasileira".
Na 12 ª
Estação, ela tenta convencer o índio agonizante que gosta dele
e, por isso, "minha homenagem pessoal aos povos indígenas fiz a cada nascimento
de meus filhos que não por acaso se chamam Irajá, Iratã e Iana". Além das
terras, a senadora se apropria também dos nomes indígenas. Anunciará qualquer
dia, no Caderno Mercado, que vai ao Cartório mudar de Kátia para Diakui
Abreu.
Na 13ª
Estação, o deputado federal Osmar Seraglio (PMDB – PR, viche,
viche), relator da Proposta de Emenda Constitucional – a PEC 215 – enfia uma
lança no ventre do índio ao justificar, em artigo na FSP (19/04/14) que o poder
de demarcar terras indígenas deve ser transferido do Executivo para o Congresso
Nacional, atendendo os interesses da bancada ruralista, que torna inviável
qualquer processo de demarcação.
O protagonista da 14ª e última estação é o deputado federal Luis
Carlos Heinze (PP- RS, viche, viche). Ele apoia a Portaria do Ministério da
Justiça que, antes mesmo da aprovação da PEC 215, já permite a ingerência dos
ruralistas nos estudos sobre demarcação de terras indígenas. Na audiência
realizada no município de Vicente Dutra (RS), Heinze afirma que "índios,
quilombolas, gays e lésbicas são tudo o que não presta".
A partir daqui, a via sacra continua,
desdobrando a agonia lenta e inexorável em outras estações, colocando em dúvida
se um dia haverá ressurreição
Minha fé é política porque ela não suporta separação
entre o corpo de Jesus e o corpo de um irmão.
Minha fé é política
porque crê que a economia pode mudar um dia e ser toda
solidária.
Minha fé é política
porque acredito na juventude, na sua força e inquietude, no seu poder de
diferença
e na força da velhice
que com sua sabedoria e experiencia ainda tem muito a colaborar, para um país
justo, igualitário sem tantas injustiças sociais..
Pastoral Fé e Política
Arquidiocese de São Paulo
A
partir de Jesus Cristo em busca do bem comum
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